A FESTA DO CÍRIO E OS PERIQUITOS

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Autoria de Antônio Messias Costa papagaio

O Círio de Nazaré é, sem dúvida, uma festa religiosa contagiante e comovente, atraindo multidões de turistas brasileiros e de todo o mundo, o que torna Belém a capital da fé em um período de quinze dias do mês de outubro. Chama a atenção a procissão da corda, a procissão dos navios e as diferentes formas de pagamento de promessas. Também é um período de banquetes festivos, onde a exótica culinária paraense apresenta a maniçoba e o pato no tucupi, partes integrantes da gastronomia comemorativa.  No decorrer dos dias, os estampidos sinalizam as comemorações, cuja intensidade é maior no encerramento, em frente à igreja de Nossa Senhora de Nazaré, onde os foguetes são utilizados de forma prolongada e intensa.

A cidade de Belém, com seus 400 anos de existência, está localizada em uma área outrora da mais rica biodiversidade Amazônica, com elevado grau de endemismo, ou seja, com muitas espécies de animais que só aqui existiam. Ainda nos dias de hoje, foi descoberta uma nova espécie de aranha, no Bosque Rodrigues Alves, uma mata primária ainda mantida, graças a Deus, que contribui para amenizar o rigor do clima na região. Também o gavião-real, a maior ave de rapina, hoje ameaçada de extinção, existia na região da cidade. Belém, com suas mangueiras e áreas verdes, ainda é local de uma riquíssima avifauna. Até mesmo poraquês e sucuris, nas “águas altas”, visitam locais da cidade, onde os canais podem leva-los. No entanto, a festividade do Círio de Nazaré vem trazendo conflitos, que a cada ano tornam-se maiores, envolvendo diferentes entidades: religiosa, de proteção animal e órgãos de fiscalização animal e de direito. Trata-se de uma situação complexa, em que a tomada de decisão deve ser bastante analisada e justa, tanto para os homens quanto para os animais aqui citados.

O ponto do conflito é o foguetório do encerramento da festividade, em frente à Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, situada em frente à Praça do CAM, onde centenas de periquitos-de-mangueira escolheram as antigas sumaumeiras como dormitório e abrigo, principalmente na época das festividades do Círio de Nazaré, aproveitando as mangueiras, para se banquetearem na época de sua frutificação.

Numa rápida enquete com vendedores ambulantes, lojista, devotos e moradores dos arredores da Praça, posso afirmar com segurança que 90% deles, embora enfatizem a importância da tradição, anseiam por uma solução, para que os periquitos-de-mangueira não sejam molestados pelo barulho do foguetório. Para melhor entender a complexidade do problema é importante conhecer o significado do estresse para a vida desses animais, com riscos de morte, sendo, portanto, necessário levar em conta os princípios humanitários.

Primeiramente é preciso compreender que existem dois tipos de estresse. O bom, que é aquele que nos mantém vivos e atentos à nossa segurança, e o ruim que, ao contrário, provocado por fatores externos, hostis aos nossos sentidos auditivos, visuais e olfativos, interfere negativamente na vida do indivíduo.

Temos conhecimento de que animais da floresta são atletas, aptos a fugir ou lutar sob ameaças, ao contrário dos que vivem em cativeiro, que não mais reconhecem as ameaças externas, são portadores de obesidade e hipofunção da adrenal, uma glândula localizada próxima a cada rim, responsável pela produção de hormônios que elevam a taxa cardiorrespiratória, oxigenando mais o cérebro, requerendo mais glicose que é o combustível vital ao bom funcionamento da máquina corporal. O cortisol é o hormônio ruim resultante do estresse negativo, que diminui a imunidade do organismo, e o predispõe a fratura.

Alguns podem questionar: já que os periquitos são atletas e são livres por que não se mudam para uma área mais segura, fugindo dos fatores de estresse, ou seja, do foguetório? Acontece que no mundo natural funcional, custo x benefício é balanceado. Os periquitos têm abrigos, são pouco hostilizados na maioria do tempo, dispõem de fontes de alimento (mangueiras, sumaumeiras) de fácil localização e baixa competição, daí se manterem nas sumaumeiras da CAN, apesar do estresse ruim que os acomete. E a situação dos urubus? E os cães comidos em países asiáticos? E o cavalo que tem sua carne oferecida em restaurantes franceses? E as touradas na Espanha? Como visualizar neste contexto a proteção dos periquitos, em uma festa, cujo ponto alto do encerramento é o foguetório?

Em primeiro lugar é importante compreender que pertencemos à classe dos mamíferos, à qual pertencem inúmeras outras espécies. Diferenciamo-nos por ter consciência, pois, se assim não fosse, não compartilharíamos todas as benesses científicas (medicamentos, tecidos, vacinas) que tiveram os animais, principalmente os primatas, como cobaias de pesquisa biomédica. Assim é ético e moral que tenhamos um compromisso com esses nossos companheiros de planeta.

Voltando às indagações anteriormente feitas, os urubus são verdadeiros “cidadãos” urbanos, resistentes às infecções e bem adaptados às mais diversas agressões do meio urbano. Possuem um papel ecológico muito importante por agirem como lixeiros. As questões que envolvem o uso de animais domésticos como alimento requerem o entendimento de que o homem faz um investimento na alimentação, saúde e criação desses, dando-lhes qualidade de vida. Estes seriam os princípios éticos que, infelizmente, o mundo desenvolvimentista eliminou. É importante que o abate desses animais atenda a princípios éticos e humanitários, de modo que a morte seja rápida e com quase ausência de dor. O escritor Desmond Moris, no seu livro “O Contrato Animal”, retrata com clareza tais princípios.

O cavalo e o cão são espécies que contribuíram para o desenvolvimento da humanidade, principalmente o cavalo, utilizado em guerras, correios, explorações e ainda hoje, juntamente com o cão, torna a nossa vida mais alegre e mais viável. O consumo desses animais “afetivos” e vinculados à nossa existência sinaliza o grau evolutivo de quem os consome, e se torna mais grave no aspecto humanístico, se alternativas alimentares existirem. Assim é fácil compreender que a miséria e a fome, que imperam nas baixas castas na Índia, não se justificam com tanta abundância de vacas. A tradição, neste caso, cria uma situação injusta em razão da ignorância.

Outro ângulo da questão é a relação presa x predador. Neste caso há uma oportunidade de fuga e luta, sendo que algumas espécies, como a dos roedores, existem em grande número para serem consumidas por outras. Diferentemente do que acontece com o homem, os mecanismos reguladores nas outras espécies animais existem para mantê-las, enquanto nós proliferamos, tomamos e invadimos espaços dos animais, desertificamos e contaminamos o planeta com agrotóxicos.

Mas o que tem a ver tudo isto com a questão dos periquitos? É simples. A necessidade de se buscar uma solução em respeito a esses animais não reside em “se morreram apenas 3, 5, ou 100”, mas no simbolismo que o respeito à vida representa, em um mudo de taxas de violência alarmantes, insegurança e competição desenfreada. Se religião é o modo como interagimos entre nós, humanos, e entre as outras formas de vida, comecemos por respeitar a vida, por menor que ela possa parecer. Assim, a comunhão entre homem e natureza merecerá verdadeiramente as bênçãos da Virgem de Nazaré.

4 comentaram em “A FESTA DO CÍRIO E OS PERIQUITOS

  1. messias

    Obrigado Edward,

    Como veterinário mineiro na Amazônia, sinto-me no dever de dar a minha parcela, só assim poderemos contribuir para um planeta onde todos possam vivem em paz.

    Abs.

    Messias

    Responder
  2. Edward Chaddad

    Messias

    Maravilhoso texto. Aprendi muito com ele e compartilho inteiramente com sua preocupação.
    Não entendo como o ser humano pode fazer festa que agride animais dentro de um ambiente de conservação. E o Círio de Nazaré é uma festa cristã. Penso que o dinheiro com este foguetório poderia ser muito melhor empregado, pois a compaixão é a verdadeira alegria que deveria animar os cristãos. Ou é uma festa pagã?

    O ser humano tem que entender que a vida é interdependente. Nunca poderemos viver sós sem a vida de outros seres em nosso planeta, seja animal, seja vegetal:

    ” Sem o corpo não pode haver sombra. Analogamente, sem a vida, o ambiente não pode existir, embora a vida seja sustentada pelo seu ambiente.” (Nitiren Daishonin)

    Temos que ser inteligentes. E Gaia certamente irá agradecer.

    Parabéns pela excelência de seu texto.

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  3. LuDiasBH Autor do post

    Messias

    Imagino como os bichinhos devem ficar assustados com tanto foguetório, além do alarido causado pelas pessoas.
    O caso merece realmente uma atenção por parte das autoridades e pelos responsáveis pela festa.
    Achei interessante suas sugestões.

    Abraços,

    Lu

    Responder
    1. Messias

      Lu,
      Estivemos na festividade, foi horrível assistir às revoadas dos periquitos desorientados, socorremos alguns que foram recuperados, outros não. Mas há uma grande vontade dos promotores da festa e entidades em se buscar uma solução, já para a próxima festa.

      Abraços

      Messias

      Responder

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