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Textos sobre variados tipos de arte

Cano – VIRGEM DO ROSÁRIO

Autoria de Lu Dias Carvalho

O pintor, arquiteto e escultor espanhol Alonso Cano (1601 – 1667) teve as primeiras lições de desenho arquitetônico e de talha de madeira com seu pai, um famoso fabricante de retábulos, demonstrando ainda novo o seu grande talento. Em Sevilha foi aluno de Francisco Pacheco del Río – mestre de Velázquez, estudando escultura com Juan Martínez Montañés. O artista estimulou a pintura de Granada/Espanha – sua terra natal – ao voltar de Madri. Suas obras figuravam entre o maneirismo italiano e o barroco. Embora vivesse numa época em que o tenebrismo de Caravaggio estivesse no auge, foi capaz de ser colorista em seus trabalhos. Recebeu o título de Mestre Pintor. O artista deixou um importante legado de belas obras para a catedral de Granada e também um grupo de seguidores responsável por levar seu estilo até o final do século XVII, tais como Juan de Sevilla, Pedro Bocanegra e Juan Niño de Guevara.

A composição intitulada Virgem do Rosário é uma obra-prima de cunho devocional, pintada pelo artista um ano antes de sua morte, sob a encomenda do bispo Dom Alonso do Santo Tomás em Málaga/Espanha. Mostra a influência da pintura renascentista (especialmente na simetria da composição, pincelada solta e intervalo cromático) na obra do pintor. Feito nos últimos anos de vida do pintor, quando ele se encontrava na sua maturidade criativa. É tida como uma pintura harmoniosa e terna – com formas suaves, refinada gradação de cores e uso prodigioso de luz – na qual a Virgem, o Menino Jesus e os putti formam um triângulo quase perfeito, tendo abaixo um grupo de santos.  É considerada uma das melhores composições de Cano e também da pintura espanhola do século XVII .

A Virgem, vestida com uma túnica avermelhada e um manto azul, encontra-se sentada sobre um trono de nuvens, apoiado em duas colunas caneladas, trazendo seu filho no colo. A mão esquerda da Virgem e o pé esquerdo do Menino sustentam o globo terrestre e um anjinho abraça-o. Os seis pequenos anjos em meio às nuvens que formam o assento do trono fazem a ligação entre o plano terreno e o divino.

Quatro putti entregam aos santos seus atributos. Dois deles faz a entrega de um rosário e uma cruz a São Domingos Guzmán e a São Francisco de Assis (abraçados). Além dos dois citados são eles (a começar da esquerda para a direita): Santa Tereza de Jesus (recebe a caneta), Santo Ildefonso (recebe o cajado), Santa Catarina de Siena (recebe a coroa) e São Tomás de Aquino (recebe a caneta). Os santos, postados no plano terreno, mostram-se espantados com a visão divinal. É provável que o cliente tenha sido o responsável pela escolha dos santos que deveriam aparecer na pintura.

O artista fez um grande contraste entre a cena divina e a terrestre. A primeira é representada em uma atmosfera de tons vibrantes e dourados em que se destacam a túnica vermelha e o manto azul da Virgem, enquanto na segunda os tons escuros prevalecem. A instituição milagrosa do Rosário tinha especial importância para os dominicanos. O rosário é visto como um instrumento de salvação, através do qual a Virgem dá sua ajuda aos fiéis.

Alonso Cano não se atém às representações comuns, trazendo novos elementos iconológicos relacionados a questões marianas de grande transcendência na época, como a intercessão de Maria junto a Jesus Cristo ou à doutrina da Imaculada Conceição. O artista possuía grande formação humanista.

Ficha técnica
Ano: 1665/67
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões: 350 x 213 cm
Localização: Catedral, Málaga, Espanha

Fontes de pesquisa
Pintura na Espanha/ Cosac e Naify Edições
https://translate.google.com/translate?hl=pt-BR&sl=en&u=https://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/birth-virgin&prev=searchhttps://es.wikipedia.org/wiki/Virgen_del_Rosario_(Alonso_Cano)
https://www.enriquecastanos.com/cano_rosario.htm
https://cvc.cervantes.es/actcult/cano/pintor/pintor09.htm


Juan Rizi – S. FRANCISCO RECEBENDO…

Autoria de Lu Dias Carvalho

O pintor espanhol Frei Juan Andrés Ricci, também conhecido como Frey Juan Rizi (1600 – 1682), era filho do pintor italiano Antonio Ricci de Ancona que se mudou para a Espanha, juntamente com Zuccaro em 1585, e irmão de Francisco Rizi. Seu pai foi provavelmente seu primeiro professor. Rizi, pintor do período do Barroco, destaca-se entre os pintores mais conservadores e comoventes da Idade do Ouro espanhola no que diz respeito às suas obras religiosas, tidas como excepcionais. Sofreu influência dos trabalhos de Carducho. Grande devoto da Virgem Maria, o pintor, aos 17 anos de idade, escreveu um livro sobre ela, o que o levou a ingressar no mosteiro beneditino de Montserrat, onde foi professor. Em Madri ele trabalhou como mestre de desenho do príncipe Baltasar Carlos. Escreveu um tratado sobre a arquitetura e a geometria da pintura, intitulado “Pintura Sábia”. Veio a morar na Itália, onde faleceu.

A composição intitulada São Francisco recebendo os Estigmas, e também São Francisco e o Anjo, é obra do artista. Foi pintada para o coro da catedral de Burgos. A pintura, carregada de rara imaginação e intensidade, é dotada de um vocabulário formal simples – peculiar ao pintor – em que as figuras fazem uso de uma vestimenta pesada e são colocadas num espaço sem profundidade, iluminadas por uma réstia da luz da lua, vista no céu à esquerda, num misterioso pedaço de céu azul.

A cena acontece na escuridão da noite, ao ar livre, sendo iluminada apenas por um pedaço da lua crescente. São Francisco encontra-se de pé em meio ao cenário, quando, surpreso, recebe a visita de um anjo que, ao abraçá-lo, com o toque de suas mãos vai imprimindo nele os mesmos estigmas recebidos por Jesus Cristo durante sua crucificação. Observem que o anjo possui seis asas (duas nas costas, duas na cabeça e duas nas pernas). Um irmão franciscano encontra-se à frente do santo, na parte inferior direita da tela, com os braços cruzados no peito. Atrás estão seus objetos de oração. 

A pintura baseia-se na história do santo:

“São Francisco amou tanto a Deus que não só no espírito, mas também no corpo, assemelhou-se a Nosso Senhor Jesus Cristo. Cerca de dois anos antes de sua morte foi agraciado com as marcas da Paixão de Cristo, passando a ter nas mãos e nos pés as feridas correspondentes à crucifixão. Na mesma ocasião também foi dotado de uma chaga correspondente à que foi feita pelo soldado que, com a lança, transpassara o coração de Jesus. Os estigmas da Paixão foram concedidos a São Francisco em seguida a um momento de profunda oração contemplativa no Monte Alverne, quando o Crucificado lhe apareceu sob a forma inicial de um Serafim com seis asas. Registrou-se que suas mãos e pés pareciam atravessados bem no meio pelos cravos, aparecendo as cabeças no interior das mãos e em cima dos pés, com as ponta saindo do outro lado. Os sinais eram redondos no interior das mãos e longos no lado de fora, deixando ver um pedaço de carne, como se fossem pontas de cravos entortados e rebatidas, saindo para fora da carne. Também nos pés estavam marcados os sinais dos cravos, sobressaindo da carne. O lado direito parecia atravessado por uma lança, com uma cicatriz fechada que muitas vezes soltava sangue, de maneira que sua túnica e suas calças estavam muitas vezes banhadas no sagrado sangue. Ele tinha muito cuidado em esconder os estigmas dos estranhos e ocultava-os mesmo dos mais chegados. Até os irmãos que eram seus companheiros e seguidores mais devotados não souberam delas por muito tempo”.

Ficha técnica
Ano: 1656/59
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões: x
Localização: Catedral, Burgos, Espanha

Fontes de pesquisa
Pintura na Espanha/ Cosac e Naify Edições
(http://www.fatima.org.br/blog/sao-francisco-de-assis-e-os-estigmas-da-paixao/)

Hamen – NATUREZA-MORTA COM FRUTAS…

Autoria de Lu Dias Carvalho

O pintor espanhol Juan van de Hamen (1596–1631) teve uma boa educação, juntamente com seus dois irmãos, pois era filho de um nobre flamengo. Ele escolheu a pintura como arte. Não tardou muito para que viesse a criar naturezas-mortas, tendo estudado tal gênero tanto no que diz respeito aos artistas espanhóis quanto aos flamengos. Logo cedo começou a produzir naturezas-mortas para a corte espanhola. Suas pinturas apresentavam suntuosos objetos, o que o tornava muito admirado pelas classes mais altas. Suas naturezas-mortas, com o passar dos tempos, iam se tornando cada vez mais complexas, pois além de mostrar os objetos em níveis diferentes, o pintor brincava com contrastes e harmonias de formas, texturas e cores. Hamen, que morreu muito cedo, tornou-se conhecido, sobretudo por seus retratos e naturezas-mortas que se encontram entre as mais apuradas até então criadas.

A composição intitulada Natureza-morta com Frutas e Objetos de Cristal é uma obra do artista em que dispõe os objetos em composições assimétricas e em três diferentes níveis, representando-os magistralmente. Ele se concentra na reprodução de cada coisa em particular, aumentando a sensação de corporalidade e textura. Uma cesta com romãs está posicionada no patamar mais alto. Abaixo estão dois recipientes de cristal, um prato com cachos de uvas e um galho de ameixa. No patamar inferior encontra-se um melão e duas romãs. Os objetos estão colocados diante de um fundo escuro e capturados por uma luz poderosa. Uma das características da pintura de natureza-morta pela qual Hamen era mais conhecido encontra-se na representação de artigos de vidro caros e luxuosos, como as duas peças vistas aqui.

O observador deve sempre se lembrar de que a habilidade do artista em pintar naturezas-mortas, à época, não lhe conferia status, uma vez que tal gênero, embora interessante, era tido como uma arte menor.

Ficha técnica
Ano: 1626
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões: 84 x 111 cm
Localização: Museum of Fine Arts, Houston, EUA

Fontes de pesquisa
Pintura na Espanha/ Cosac e Naify Edições
https://en.m.wikipedia.org/wiki/Juan_van_der_Hamen

DEUTSCH – SÃO JOÃO BATISTA DECAPITADO

Autoria de Lu Dias Carvalho

                                                 (Clique na imagem para ampliá-la.)

São João Batista foi preso porque era muito popular. Ele anunciava a chegada do Messias, exortava à conversão e batizava os crentes no Jordão. Na Galiléia sua eloquência atraiu tantas pessoas que os romanos temiam que ele levasse o povo à insurreição. (Flávio Josefo)

Enquanto o rei celebrava um banquete com seus convidados, a filha de Herodias entrou e, dançando, agradou a Herodes e a seus convidados. Então o rei fez um juramento a Salomé: “Tudo o que você me pedir, eu lhe darei, mesmo que seja metade do meu reino”. (São Marcos)

O dramaturgo, artista gráfico e pintor alemão Niklaus Manuel, conhecido como Deutsch, ou seja, Alemão, (c.1484-1530) é o criador da obra intitulada São João Batista Decapitado ou Decapitação de João com Relâmpagos e Trovões que apresenta o momento em que o santo acaba de ser decapitado.

O corpo do santo está sendo retirado do ambiente numa maca. Um dos carregadores é visto em sua totalidade, mas do outro só se vê a bota, pois ele já acabara de transpor o portal. Segundo uma passagem bíblica, São João Batista teve a coragem de acusar publicamente Herodes e sua esposa de adultério, pois o rei havia esposado a mulher de seu irmão Filipe, o que a deixou muito irritada. Para se vingar dele, ela incitou Salomé, sua filha e enteada do rei Herodes, a pedir a cabeça do santo.

No meio da composição encontra-se o carrasco. A cabeça ensanguentada de João Batista, segura pela barba, pende em sua mão esquerda. Seus olhos estão voltados para a bandeja de prata que lhe é oferecida, onde depositará a cabeça da vítima. Três mulheres (Herodias, Salomé e uma anciã), à esquerda, aguardam o presente pedido ao rei. Elas olham para a bandeja com visível satisfação.

O grupo de mulheres parece representar as “três idades da vida”. A velha tanto pode representar uma amante a participar da trama assassina ou o próprio Satanás. Em certas peças sobre São João, populares nos séculos XV e XVI, o demônio aparece sob a figura de uma velha que visita Herodias para intrigá-la contra o santo. O trio de mulheres também simboliza “o poder das mulheres”, pois no caderno de esboços do artista há atraentes figuras femininas quase sempre armadas com cordas de nó corrediço, espadas ou adagas. Ele associava mulheres, beleza e erotismo com sangue e morte, e essa tendência à crueldade é um reflexo dos costumes de sua época.

A cena se passa num terraço aberto, onde se vê uma paisagem sombria com um castelo, rochas escarpadas e árvores açoitadas pelo vento, embora os Evangelhos cristãos não declarem onde a cabeça foi entregue. É noite. Nuvens pesadas e escuras erguem-se no céu.

No intuito de mostrar que a morte de São João foi marcada por acontecimentos sobrenaturais, o pintor criou um fenômeno apocalíptico em que estrelas e o arco-íris (um dos principais signos celestiais à época) apresentam-se no céu ao mesmo tempo. Atrás das nuvens aparece uma estrela extremamente brilhante. Naquela época, pensava-se que fenômenos naturais desconhecidos, como cometa ou eclipse do Sol, sinalizavam eventos importantes e anunciavam catástrofes.

Salomé olha para a bandeja com aparente normalidade, como se estivesse satisfeita com o presente recebido. Seu vestido decotado e de saia aberta sobre anáguas transparentes mostra um pouco de sua pele branca. Ela usa sandálias “italianas”, mangas bufantes e cintas da última moda à época. Embora fosse uma personagem secundária no que diz respeito ao martírio de João Batista, ela está presente em todas as pinturas devotadas ao santo, sendo uma das figuras prediletas de pintores, poetas e compositores, inspirados por sua dança.

O carrasco veste uma roupa extravagante à maneira dos suíços. Sobre uma camisa de mangas largas, plissada e branca, usa uma jaqueta de veludo assimétrica e calças coloridas, tendo a perna esquerda enfeitada com listras ao longo do comprimento, enquanto a outra está orlada e cortada, mostrando por baixo o forro de seda. Sua atitude é provocante, debochada. Exibe-se como se fosse um dançarino ou um esgrimista. Apresenta uma mão forte e confiante.

A assinatura do artista, um monograma dourado, está presente na metade superior do quadro, onde se vê uma adaga. Ocupa um lugar de destaque, repassando a ideia de que ele estava satisfeito com seu trabalho ou que a obra fora feita para si mesmo.

Ficha técnica
Ano: c. 1517
Técnica: pintado a têmpera e envernizado sobre madeira
Dimensões: 34 cm x 26 cm
Localização: Kunstmuseum, Basel, Suíça

Fonte de pesquisa
Los Secretos de las Obras de Arte/ Taschen

Zurbarán – HÉRCULES E ANTEU

Autoria de Lu Dias Carvalho

Hércules era o herói clássico por excelência, cujos feitos de força e perseverança em face da adversidade e a transfiguração num status quase divino tornaram-no uma figura indispensável à iconografia principesca. (Jonathan Brown)

Percebendo os truques de Anteu, Hércules ergueu-o no ar e apertou-o tão poderosamente entre seus braços que a criatura morreu. Tal foi a vitória de Hércules nesta luta.[…] Diz-se que a cobiça ou o desejo carnal nasceu da Terra e, por isso, foi incorporado por Anteu. (Juan Pérez de Moya)

O pintor barroco, desenhista e gravador espanhol Francisco de Zurbarán (1598-1664) foi aluno de Pedro Diaz de Villanueva em Sevilha. Ele fez inúmeras obras para o Convento de Sevilha. Sua fama levou-o a receber o título de pintor honorário dessa cidade. Trabalhou para a corte de Madri no governo de Filipe IV. É tido como um dos mais importantes pintores espanhóis do século XVII, ao lado de Velázquez, Ribera e Murillo. Ele se tornou conhecido, sobretudo, por suas obras religiosas, que descrevem monges e mártires, e também pelas suas maravilhosas naturezas-mortas. A maioria de suas pinturas era destinada às ordens religiosas espanholas, tendo criado muitas pinturas religiosas durante a era barroca.

A composição intitulada Hércules e Anteu – ou também A Luta de Hércules com Anteu – é uma obra do artista que em razão de seu grande sucesso como pintor foi convidado pela corte espanhola a participar da decoração do “Salão dos Reinos”, criando pinturas sobre os “Doze Trabalhos de Hércules”. As críticas não foram unânimes quanto às 10 obras criadas pelo artista. Alguns as acharam deficientes se comparadas à antiga lenda, enquanto outros viram nelas uma concepção totalmente original. O fato é que o artista foi muito corajoso ao desviar-se das abundantes imagens desse herói grego, encontradas em esculturas, dentro dos protótipos clássicos, ao criar sua obra.

O Hércules de Zurbarán é mostrado como um personagem poderoso e desajeitado que necessita de muito esforço para derrotar seus inimigos. O artista não o idealiza como o semideus descrito na lenda, mas como um homem comum dotado de uma estupenda força. E por isso, ele necessita de força de vontade para atingir seus objetivos. Aqui, Hércules é visto com Anteu (o gigante norte-africano), filho da deusa Gaia (a Terra) em seus braços.

A tarefa de Hércules para derrotar o gigante não era fácil, pois toda vez que ele era derrubado, sua mãe dobrava-lhe a força, exigindo ainda mais esforço de Hércules. A luta entre os dois personagens acontece diante de uma caverna escura, sendo ambos apresentados verticalmente, o que deixou Anteu com pouco espaço na parte superior da tela, tendo seu braço e mão esquerda praticamente incompletos.

Ficha técnica
Ano: 1634/35
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões: 136 x 153 cm
Localização: Museu do Prado, Madri, Espanha

Fontes de pesquisa
Pintura na Espanha/ Cosac e Naify Edições
https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-work/hercules-fighting-with-antaeus/b50a7459-d674-4ce1-8da7-ecbe3120b9c9

MESTRE DESCONHECIDO – LÓ E SUAS FILHAS

Autoria de Lu Dias Carvalho

A composição do mestre flamengo desconhecido, criada por volta do ano1530 ou antes disso, intitulada Ló e Suas Filhas, tem como inspiração uma passagem bíblica (Gênesis). Ela acontece em dois planos diferentes. O primeiro apresenta Ló, sobrinho de Abraão, e suas duas filhas em Sodoma. O segundo mostra o mundo vitimado pela destruição. Os dois cenários são moldados por duas composições triangulares (uma à esquerda e outra à direita), ambas do mesmo tamanho, com ângulos agudos que se localizam na diagonal. Estão unidos por uma semiescuridão. Uma grande árvore parece ter o objetivo de delimitar os dois acontecimentos.

Ló e suas duas filhas, presentes em primeiro plano, são apresentados em tamanho grande. Já em segurança, o grupo encontra-se diante de uma luxuosa tenda vermelha, com duas outras atrás, rodeados por três moringas bojudas de bebida e farta comida, ali se vê inclusive ossos de animal. De acordo com o texto bíblico, as filhas de Ló criam que toda a humanidade havia perecido, exceto eles. Por esta razão a mais velha argumenta com a mais nova: “Não há mais nenhum homem na Terra que entre em nós segundo o costume. Venha, deixe nosso pai beber vinho e durmamos com ele e preservaremos a geração de nosso pai”. E assim, agiram sem que Ló percebesse.

O pintor não mostra o incesto na sua obra, mas insinua que a iniciativa foi do pai, ao mostrar a postura rígida e passiva da filha abraçada, o que não significa falta de maestria, uma vez que ele apresenta a filha que serve o vinho graciosamente. O artista ignora em sua criação a narrativa de que as filhas enganaram o velho e piedoso pai. Apenas transforma a dor das fugitivas numa cena de amor convencional com matizes bucólicos, convencional também no sentido de que é o homem quem toma a iniciativa e não uma de suas filhas, de acordo com a postura de Ló, abraçando a filha.

O homem e suas duas filhas são vistos bem pequenos em segundo plano, caminhando calmamente sobre uma frágil e estreita ponte de madeira, erguida sobre paus. Uma das moças leva uma trouxa sobre a cabeça. Atrás do pequeno grupo segue um jumento carregado com seus pertences. Apesar da periculosidade do local, eles caminham lado a lado e não em fila única. A esposa de Jó e mãe das moças é vista atrás, à direita, transformada numa estátua de sal. O pequeno grupo parece caminhar tranquilamente, sem demonstrar terror com o acontecido.

A destruição de Sodoma é mostrada de forma dramática, com casas desmoronando e caravelas afundando. O fogo, representado na forma de projéteis, despenca do céu devorando a cidade que traz uma parte em chamas. A chuva de projéteis desce de um buraco no céu sobre a cidade. Os prédios inclinam-se e tombam. A cidade desgoverna-se para a esquerda, sendo engolida pelo mar. A igreja, mais ao fundo, tem a sua torre quebrada, prestes a tombar. As caravelas presentes no mar parecem rachar ao meio e afundar. Uma cidade situada ao longe, bem próxima à linha do horizonte, recebe projéteis vindos de outro buraco aberto no céu.  Uma segunda cidade que se eleva à esquerda na parede rochosa não é atingida pela catástrofe, assim como a torre presente na margem direita da pintura. A água mostra-se inalterável, trazendo sua superfície tranquila.

A composição apresenta o contraste entre a planície e a paisagem montanhosa, entre o fogo e a água. A árvore solitária corta quase toda a tela na vertical em direção ao céu. A existência de catástrofe e de tranquilidade, presentes nas duas cenas principais e também dentro da própria cena de destruição, reforça o sentimento de inquietação e incompreensibilidade sobre o que está a ocorrer.

Curiosidade: Os geólogos creem poder datar a destruição de Sodoma e cidades vizinhas em 4350 a.C, aniquiladas por um violento terremoto que sacudiu a região ao redor do Mar Morto. O hidrocarboneto que brotou das profundezas ardeu e o dióxido de enxofre ocasionou uma chuva ácida que matou pessoas, animais e plantas. As grossas nuvens negras tornaram a paisagem morta, podendo ser vista à distância.

Ficha técnica
Ano: c.1530
Dimensões: 58 cm x 34 cm
Técnica: óleo sobre painel
Localização: Museu do Louvre, Paris, França

Fonte de pesquisa
Los secretos de las obras de arte/ Taschen