Arquivo da categoria: Crônicas

Abrangem os mais diversos assuntos.

CARL SAGAN – DEMÔNIOS DE ONTEM E DE HOJE (V)

Autoria de Lu Dias Carvalho

Só confie numa testemunha quando ela fala de questões em que não se acham envolvidos nem o seu interesse próprio, nem as paixões, nem os seus preconceitos. (Thomas Henry Huxley)

Os seres humanos sempre tiveram necessidade de acreditar em algo. Tem sido assim durante toda a história da humanidade. Para preencher as lacunas daquilo que desconhecem, criam entidades sobrenaturais para preenchê-las. Culturas antigas, como a egípcia e a greco-romana, tinham uma grande variedade de deuses, cujo objetivo era explicar tudo aquilo que desconheciam, satisfazendo-lhes as necessidades e a curiosidade. Assim, elas se sentiam mais tranquilas em relação à vida cheia de indagações não respondidas e de acontecimentos imprevisíveis. Quanto maior o desconhecimento num certo campo, mais “atuavam” tais divindades.

Segundo o cientista Carl Sagan em seu livro O Mundo Assombrado pelos Demônios, a crença em demônios era totalmente aceita no mundo antigo, só que, diferentemente dos tempos de hoje, eles eram tidos como seres naturais e não como sobrenaturais. O filósofo Sócrates explicava que sua inspiração filosófica advinha de um demônio pessoal que era muito bom. O filósofo Platão também tinha a mesma visão de seu mestre. Para ambos os demônios eram entidades do bem. Platão afirmava que “Deus, por amor à humanidade, colocou acima de nós os demônios, que são uma raça superior, e eles, de forma fácil e prazerosa para si mesmos, e não menos prazerosa para nós, tornam as tribos dos homens felizes e unidas, ao cuidar de nós e nos dar paz, reverência, ordem e justiça que nunca falham”.

Toda essa visão sobre demônios mudou com os platônicos que se seguiram, sendo que os neoplatônicos contaram com grande influência da filosofia cristã. Passaram, então, a afirmar que existiam demônios do bem e demônios do mal, contrariando a visão anterior dos filósofos que afirmavam que tais seres eram do bem. Os primeiros dirigentes cristãos, contudo, na ânsia para se desvincular totalmente das crenças pagãs (existentes antes da vinda de Cristo), passaram a alegar que todos os demônios eram maléficos, não havendo, portanto, demônios do bem. Era de seu interesse apenas manter os demônios do mal, a fim de amedrontar e sujeitar seus adeptos ao novo credo. E assim, desapareceram os demônios benfazejos, ainda que esses estivessem ligados apenas à crendice.

Em suas pesquisas o cientista Carl Sagan encontrou um caso em que certo padre do deserto sugere que os demônios encontram-se dentro do próprio homem, algo inusitado para a época, ao afirmar que “Os nossos próprios desejos tornam-se demônios, e são eles que nos atacam”. Tal visão está em concordância com o pensamento de muitas pessoas nos dias de hoje, contrariando a cantilena dos credos religiosos, pois, para eles, o “demônio de chifres” doa-lhes um grande número de fiéis e rende-lhes mais benefícios financeiros.

Vivemos no século XXI e não mais na Antiguidade Clássica ou Idade Média. Vivemos numa época em que a imensa maioria dos credos religiosos vivificam a presença do demônio com prazer, pois é ele quem enche os templos e seus cofres. É, sem dúvida, o mais comprometido e promissor sócio. Deus não passa de um garoto propaganda, enquanto o suposto demônio é o fiel cobrador do propalado dízimo. Pobre humanidade, não aprende nunca! Enquanto colocar de escanteio a Ciência, será sempre uma presa fácil dos espertalhões religiosos, presentes em cada quarteirão.

Ilustração: O Pesadelo, 1781, obra de Johann Heinrich Füssli

Fonte de pesquisa
O mundo assombrado pelos demônios/ Companhia de Bolso

Indicação: Site “Além da Fé” no You Tube.

CARL SAGAN – CIÊNCIA x PROFECIAS (IV)

Autoria de Lu Dias Carvalho

É preciso estar atento à tentação poderosa de procurar as evidências e aparências que estão a favor de nossos desejos, e desconsiderar as que lhe fazem oposição […]. Acolhemos com boa vontade o que concorda com nossas ideias, assim como resistimos com desgosto ao que se opõem a nós, enquanto todo o preceito do bom senso exige exatamente o oposto. (Michael Faraday)

“Profetizar” parece ser a palavra mais em moda na maioria das religiões (ou seitas). Tem-se profetizado sobre tudo em nome de Deus. Um sem conta de indivíduos passaram a profetizar mundo afora, embora as “profetadas” percam cada vez mais sua credibilidade. Quando coincidem é porque “assim Deus falou” ao profeta de araque e, quando não dão certo, é porque “Deus mudou de ideia” por isso ou por aquilo”, pois tal indivíduo jamais mente, jamais engana, jamais faz de seus devotos um bando de idiotizados. Trata-se de uma maneira de ganhar adeptos, de mostrar poder, de ajuntar dinheiro com facilidade. O que certas religiões querem é validar sua igreja através do engano. Elas seguem ainda hoje o mesmo ritual das pitonisas da Roma antiga, quase nada diferindo das chamadas “religiões pagãs”.

Ao contrário das profetadas, vários ramos da Ciência acertam em cheio ao predizer o futuro, após estudos rigorosos. A Ciência pode, por exemplo, prever com exatidão muitos acontecimentos que estão por vir. Ela é capaz, por exemplo, de afirmar quando acontecerá o próximo eclipse solar, um milênio antes, com exatidão de minutos. Pode prever o que acontecerá ao planeta, se a camada de ozônio continuar sendo destruída. Pode dizer o que acontecerá à floresta Amazônica, se continuar sendo devastada. Ao contrário das religiões que se colocam como intocáveis, de modo que seus dogmas de fé não podem ser examinados à luz da razão, a Ciência, ao contrário, não apenas estimula, como valoriza a diversidade e o debate.

As religiões não aceitam ser criticadas ou questionadas. Não favorecem o debate e tampouco aceitam as indagações. Dizem que suas doutrinas são perfeitas, inquestionáveis. Se é assim, porque o cristianismo, por exemplo, dividiu-se em tantas ramificações? O que há de errado com cada uma delas? Por que essa ou aquela se diz a mais correta? Há algo de estranho nesta seara. O intercâmbio de ideias é o que alimenta a Ciência. Ela é extremamente humilde, ao contrário das religiões. Por mais importantes que tenham sido os feitos dos cientistas do passado, os de hoje estão sempre em busca de falhas em suas pesquisas, aprimorando-as. Eles vão além do evidente em suas pesquisas.

A Ciência, embora seja, muitas vezes, empregada para fins ruins, ela é ainda o caminho mais eficaz para derrotar a miséria e a situação de atraso em que se encontram as nações emergentes, ao contribuir para impulsionar a economia mundial. É ela que alerta a respeito das tecnologias destrutivas que alteram aquilo que é mais importante para a vida humana – o meio ambiente. Ela bota a boca no mundo, fazendo antecipadamente o alerta de perigo. E só não a ouve quem não quer. Carl Sagan explica que a democracia e a Ciência têm muito em comum: ambas requerem raciocínio adequado, argumentos coerentes, padrões rigorosos de evidência e honestidade. Isso mesmo, honestidade, o que tem faltado em muitos segmentos religiosos.

Fonte de pesquisa
O mundo assombrado pelos demônios/ Companhia de Bolso

CARL SAGAN – CIÊNCIA x PENSAMENTO (III)

Autoria de Lu Dias Carvalho

Os benefícios da Ciência não são para os cientistas, mas sim para a humanidade. (Louis Pasteur)

Duas coisas são infinitas: o Universo e a estupidez humana. (Albert Einstein)

A Ciência é mais do que um corpo de conhecimento, é um modo de pensar. (Carl Sagan)

É um paradoxo ver governantes fazendo campanhas contra a Ciência. No mundo global em que vivemos, segundo Carl Sagan, tudo depende da Ciência: o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto. Entendemos que, ao se colocar numa postura de independência em relação à Ciência, atrelando-se ao conhecimento convencional ou às suas próprias convicções ou às de pessoas inescrupulosas, os governantes deixam a população em palpos de aranha. Muitos há que refutam olhar o mundo tal como é, porque preferem que deva ser como desejariam que fosse.

É aceitável que em tempos idos – por causa razão da ignorância do povo – toda e qualquer doença, assim como os flagelos da natureza, fossem atribuídos à bruxaria. Já naquele tempo havia os espertalhões que usavam e abusavam das crenças para ganhar dinheiro.  Usavam da fraude para enganar o povo, apavorado com acontecimentos dos quais desconheciam a origem. O medo que o mundo exterior e o desconhecido causavam nas pessoas faziam com que elas aceitassem qualquer explicação. O conhecimento da microbiologia e da meteorologia pela Ciência, contudo, minou o campo dos espertalhões, demagogos e falsos profetas, mas não foi suficiente para que uma parte da população deixasse de crer em superstições e mentiras, muitas delas nascidas no seio dos credos religiosos. É o domínio através do terror!

Thomas Andy, um dos palestrantes e autores mais famosos do Reino Unido, alerta em seus escritos para o fato de que as nações poderiam sucumbir por falta de conhecimento científico. Será que a Ciência sabe tudo? Claro que não e será assim para sempre, num Universo cujo tamanho e idade fogem à percepção humana. Os cientistas trazem consigo a certeza de que não sabem tudo, pois nenhum conhecimento é completo ou perfeito, sendo necessária uma evolução permanente em suas pesquisas. Mas eles, usando a razão, submetem-se a vastas e cansativas horas de estudos e experiências, para trazer benefícios à humanidade, como comprovam as vacinas que salvam vidas. Mas há os que ainda as negam – os chamados negacionistas.

Carl Sagan, um dos mais renomados cientistas da história, explica que o pensamento científico é ao mesmo tempo imaginativo e disciplinado. A Ciência ensina que é preciso ajuntar os fatos, ainda que esses pareçam não se encaixar nas nossas percepções. Trabalharmos com hipóteses alternativas e observarmos qual delas coaduna melhor com a realidade. Ainda que as ideias sejam heréticas, isso não pode servir de barreira para um exame cético ainda mais exigente. Ele conclui: “Toda vez que fazemos autocrítica, toda vez que testamos nossas ideias no mundo exterior, estamos fazendo Ciência. Quando somos indulgentes conosco mesmo e poucos críticos, quando confundimos esperanças e fatos, escorregamos para a pseudociência e a superstição.”

O mais belo na Ciência é o fato de que ela está sempre buscando o aperfeiçoamento, a suplantação dos erros. Cada geração tem a possibilidade de corrigir e aprimorar, partindo do ponto que a anterior deixou. Em se tratando de Ciência é importante levar em conta um dos seus mais importantes mandamentos: “Desconfie dos argumentos de autoridade”, diz Sagan e continua: “As autoridades devem provar suas afirmações como todo mundo”. Se os cientistas são passíveis de erro, imaginem elas!

Fonte de pesquisa
O mundo assombrado pelos demônios/ Companhia de Bolso

CARL SAGAN – CIÊNCIA X PSEUDOCIÊNCIA (II)

Autoria de Lu Dias Carvalho

Moralmente é tão condenável não querer saber se uma coisa é verdade ou não, desde que ela nos dê prazer, quanto não querer saber como conseguimos o dinheiro, desde que ele esteja na nossa mão. (Edmund Way Teale)

Ainda seguindo a linha de raciocínio do cientista Carl Sagan (1934-1996), quanto mais compreensão o humano tiver sobre si mesmo e sobre o Universo, mais estará contribuindo para a sobrevivência da sua espécie. Assim argumenta Sagan: “Nutrir a noção de que somos uma combinação especialmente complexa de átomos em vez de um sopro de divindade, pelo menos intensifica o nosso respeito pelos átomos.” Foi ao descobrir isso que os cientistas passaram a tomar cada vez mais consciência do funcionamento do corpo humano, salvando vidas e contribuindo para a sua longevidade. Sem isso, ela ainda estaria patinando na Idade Média, quando se achava que a epilepsia, por exemplo, era “coisa divina”, por não compreenderem o seu mecanismo de funcionamento.

A superstição e a pseudociência, segundo Sagan, ainda dominam um vasto território na Terra, isto porque as respostas fáceis são sempre as mais buscadas pelos seres humanos, uma vez que a postura cética exige raciocínio, análise elaborada, paciência e grande uso de tempo. Sabe-se que a pseudociência traz respostas imediatas que não exigem argumentação, resultados de comparação, sendo muito fácil de ser compreendida e, além de muito popular, está presente em todos os lugares. Outro ponto que favorece a pseudociência é que ela dá “respostas” para as necessidades emocionais, ainda que essas se mostrem desprovidas de respostas efetivas para os problemas, principalmente os relativos à saúde mental. Não é à toa que prolifera a indústria dos livros de autoajuda, sendo alguns da pior qualidade. Não são poucos os escritores dessa seara que enchem linguiça, produzindo inúmeros livros, sendo que, na prática, mudam apenas a capa.

Não é surpresa para ninguém saber que em muitos pontos a humanidade ainda vive na Idade Média, bastando ver as superstições que ainda proliferam em todo o mundo. É possível observar com tristeza que o ensino público da Ciência vem dando lugar à superstição e à ignorância, alimentando a pseudociência, quando se sabe que o progresso da humanidade está ligado ao avanço científico.  Temática esta que pode ser exemplificada com o mito da Terra plana, alardeada até mesmo num país de primeiro mundo como é o caso dos EUA, tendo adeptos no Brasil.

Carl Sagan apresenta as principais diferenças entre Ciência e pseudociência:

  • A Ciência quando detecta seus erros, elimina-os um a um, sem se perder em conjeturas.
  • A Ciência trabalha, sim, com conclusões falsas, mas elas são apenas tentativas de acertos, sendo logo descartadas.
  • As hipóteses não são tidas como convicções, mas são formuladas para serem refutadas, se não corresponderem ao que delas é esperado.
  • Hipótese alternativas são testadas com experimentos e observação, sendo eliminadas as que não possam corresponder às expectativas.

A pseudociência não passa por nenhum dos pontos acima. Suas hipóteses são tidas como corretas, invulneráveis, definitivas, mas na prática não passam de meras convicções, incapazes de resistir a qualquer análise. A pseudociência não aceita o exame minucioso e cético da Ciência.

Segundo o escritor Thomas Gilovich, nós, humanos, estamos propensos ao erro, sendo que as pessoas erram sistematicamente na compreensão dos números, ao rejeitar uma evidência desagradável e ao ser influenciada pela opinião dos outros. William Shakespeare complementa “O homem é um ser leviano”, pois se esquece de que é inclinado ao erro e suas percepções são falíveis, sendo ele vítima de ilusões óticas e de alucinações. É daí que nasce a necessidade do rigor cético, responsável e austero da Ciência, segundo Sagan, pois sua responsabilidade não é dizer o que queremos ouvir, mas a verdade, para que possamos ser parte da evolução humana e da evolução do planeta Terra como um todo.

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O mundo assombrado pelos demônios/ Companhia de Bolso

CARL SAGAN – A COISA MAIS PRECIOSA (I)

Autoria de Lu Dias Carvalho

Não deixem nada ao acaso. Não percam nenhum detalhe. Combinem as observações contraditórias. Não tenham pressa. (Hipócrates de Cós)

Toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos (Albert Einstein).

Carl Edward Sagan (1934-1996)  foi um dos mais importantes nomes da Ciência do século XX. Além de ter sido um notável cientista, era também professor, escritor, astrônomo e biólogo. Tinha, portanto, um grande conhecimento sobre a vida. Marcou presença no desenvolvimento de programas espaciais para a Nasa. Publicou mais de 20 livros de ciência e ficção científica, além de 600 publicações sobre os mais diversos assuntos. Em seu mais famoso livro “O Mundo Assombrado dos Demônios”, o cientista norte-americano Carl Sagan aborda questões importantíssimas sobre o desconhecimento da Ciência em todo o mundo, o que propicia um campo fértil para a pseudociência e, em consequência, aumenta a colheita de superstições, enganadores charlatães e fakenews. Só para se ter uma ideia dessa realidade perversa, ele cita que 95% dos norte-americanos são “cientificamente analfabetos”.

Carl Sagan levanta os males que esse desconhecimento causa: ignorância sobre o aquecimento global, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo, o desflorestamento tropical, o crescimento exponencial da população, entre outros. O cientista afirma que a maioria da humanidade prefere ver tudo como divino, ao invés de reconhecer a sua ignorância, pois é muito mais fácil passar toda a responsabilidade para um “deus das lacunas” em vez de buscar respostas geradas pela Ciência. Lembra que o filósofo grego Hipócrates de Cós – o pai da medicina – que viveu nos séculos IV e V a.C., foi o responsável por introduzir elementos do método científico no diagnóstico das doenças, recomendando a observação cuidadosa e meticulosa: “Não deixem nada ao acaso. Não percam nenhum detalhe. Combinem as observações contraditórias. Não tenham pressa”.

Afirma Sagan que a ciência e a tecnologia também têm sido responsáveis por coisas ruins como as armas nucleares, a produção da talidomida, o agente laranja, os gases que atacam o sistema nervoso, a poluição do ar e da água, as extinções das espécies, etc. Contudo, afirma ele: “As vidas salvas pelos progressos na medicina e na agricultura são muito mais numerosas que as perdidas em todas as guerras”. Ou seja, diz que, apesar das desgraças criadas pela Ciência, os ganhos que ela trouxe para a humanidade são muito maiores, basta ver a expectativa de vida que vem se ampliando a cada decênio.

Como demonstrado por Sagan, a Ciência é uma espada que traz consigo dois gumes e exige que cientistas e governos assumam responsabilidade em relação à vida humana e à vida do planeta como um todo. Eles têm o dever de estar atentos às consequências de longo prazo da tecnologia, “evitando os apelos fáceis do nacionalismo e do chauvinismo”, tão comuns aos dias de hoje, apesar de todo o progresso científico.

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O mundo assombrado pelos demônios/ Companhia de Bolso

A ORIGEM DA PROPRIEDADE PRIVADA

Autoria de Fernando Carvalho

Enquanto houver burguesia não vai haver poesia. (Cazuza)

Para o filósofo Jean-Jacques Rousseau a propriedade privada teve início quando um sujeito cercou um pedaço de terra, que não tinha dono, e disse: “Isso aqui agora é meu” e encontrou gente ingênua o suficiente para acreditar naquilo.

A origem da propriedade privada foi uma das revoluções, se não a mais importante, por que passou a humanidade. Vamos tentar inferir aqui algumas consequências desse ato histórico fundamental. A mais imediata foi o surgimento do “outro” (o inferno são os outros, segundo o filósofo francês Paul Sartre). Antes havia o “nós”. Por exemplo: “Nós”, dizia o troglodita, “precisamos de comida”. E os homens se reuniam para caçar um mamute e distribuir a carne do bicho entre eles.

A solidariedade era natural entre os homens. A propriedade privada acabou com isso. Com o advento da propriedade e o consequente surgimento do cultivo de alimentos e a criação dos animais, os que ficaram sem terra naquele tempo passaram a ter que pagar pela carne e pelos grãos necessários à sua alimentação. Assim temos que a propriedade privada criou um problema novo para a humanidade, a fome. Antes a fome era um problema individual que um peixe assado resolvia. A propriedade privada engendrou a fome de coletividades inteiras. O dono de um terreno plantava e criava animais para ele e os seus comerem e o possível excedente era destinado ao escambo com outros proprietários de terras. Os “sem-terra” que não tinham sangue de barata para morrer de fome roubavam ou furtavam comida dos proprietários. Assim, temos ainda que a propriedade privada deu origem ao roubo e ao ladrão.

Ao dividir a humanidade em duas partes, aquela que tem as coisas e a outra (maioria) que nada tem, a propriedade privada deu também origem a duas coisas que a humanidade não conhecia: quem tem se acha melhor que quem não tem. Aqui tiveram origem os sentimentos de superioridade e inferioridade nas pessoas e os corolários: a prepotência de um lado e a inveja do outro.

Acabaram com a solidariedade e instituíram a concorrência e com ela a deslealdade entre as pessoas. E como resultado disso houve a concentração da propriedade por um lado e o aumento da miséria por outro. Nos dias de hoje só se vê os resquícios daquela solidariedade natural que havia entre as pessoas, durante algumas catástrofes, como um terremoto por exemplo, quando a propriedade privada perde o significado e as pessoas estão mais preocupadas em salvar a própria pele.

Quando um proprietário de um automóvel atropela um pobre, e isso é mais comum do que a gente pensa, ele lamenta muito mais o estrago feito em seu carro que a dor que a vítima (ou a família) possa estar sentindo. E se sujar o banco do carro de sangue, a raiva do atropelador será extensiva à mãe do infeliz atropelado. Uma das páginas mais tristes na crônica da propriedade privada é quando o burguês, depois de ter trabalhado a vida inteira, formado uma família e construído um patrimônio a duras penas, depois de tudo, já velho e doente, mas lúcido e com a sensibilidade não embotada, percebe que os familiares estão como que a torcer para que “o velho” morra logo, a fim de poderem pôr as mãos na herança.

Assim, temos que a propriedade privada deu origem também a mais esse fato insólito na história da humanidade: a torcida pela morte do próximo, mesmo um pai ou uma mãe. E a atração da propriedade privada é tão terrível que os filhos da burguesia não apenas “torcem” e procuram acelerar o processo, passando um atestado de caduco para o velho, ou encomendando a morte como fez aquela menina de nome Suzane aos pais Hichthofen.

Como o leitor pode perceber, a propriedade privada é a mãe de todos os males.

 

Nota: imagem copiada de https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/a-logica-senil-da-propriedade-privada/