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Crítico de Arte – Professor Pierre Santos

A LINGUAGEM HERMÉTICA DE SÃO JOÃO

Autoria do Prof. Pierre Santos

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“Porque é vindo o grande dia da sua ira; e quem poderá resistir?” (São João, Apocalipse, 2:28)

O livro de São João vem provocando confusões na humanidade, desde então e até hoje. Certamente, antes mesmo de ser mandado para o exílio, o santo já pensava em escrever as suas Revelações e já havia matutado um bocado a respeito das mesmas, quando sua prisão retardou o projeto. Por conseguinte, só depois de ‘instalado’ em sua gruta num dos montes de Patmos, pôde se entregar – e o fez encarniçadamente – à realização daquele plano, porquanto, envelhecido como já se encontrava, tinha necessidade de se apressar, pois temia que a vida não lhe desse tempo de concluir o planejado.

Dadas às conjunturas políticas da época, entendeu que devia recorrer a uma linguagem profundamente simbólica, afundada em intrincado hermetismo, que só iniciados poderiam compreender, pois antes de chegarem a um destino seguro, como foi para eles o arcano do Canon, poderiam os textos cair em mãos erradas, como as da polícia imperial, e todo seu esforço e até sua vida iriam por água abaixo, ou, melhor dizendo, por azeite fervilhante adentro (não foi assim que ele quase já a havia perdido?).

Acontece, porém, que o santo exagerou na dose, atravessou todas as barreiras da lógica e nadou de braçada no mar do mistério, tornando-se complexo até mesmo para os iniciados. Os dirigentes da Igreja, na época, certamente discutiram sobre o aspecto confuso e hermético do texto, mas optaram mesmo assim pela inclusão do Livro do Apocalipse no Canon, em face da encantadora carga poética nele contida, embasada na inabalável fé do autor, na esperança de que os pósteros viessem a compreender melhor aquele conteúdo.

São João, em toda a simbologia usada e o tempo todo só se referia a aspectos do Estado Romano. O escritor Dale Smelser, em seu texto intitulado Armagedom, assim explica e sintetiza os símbolos usados pelo apóstolo:

 “A Besta do Mar é a Roma Imperial; a Besta da Terra é a idolatria pagã praticada pelos romanos; e a Grande Meretriz representa a imoralidade e a devassidão de Roma”.

Por outro lado, a Batalha Final – aquela em que Satanás, figurado por um dragão de sete cabeças, pretende através de Roma destruir Cristo e seu reino – se daria no Har Meggido, já citado. Ora, a região de Meggido fica bem longe de Roma, lá no Oriente Médio, na parte extrema do território de Israel, exatamente na ponta sul da grande enseada onde acaba o Mediterrâneo, enquanto a Itália situa-se ali na ponta da Europa, portanto um bocado afastada de lá. Hoje temos embarcações tão velozes, que fazem o trajeto Itália – Israel em menos de um dia. Mas, naquele tempo, não. Levar um exército respeitável, de pelo menos quatrocentos ou quinhentos guerreiros, em quatro ou cinco galares com suas galés abarrotadas de remadores, alimentando o tempo todo esse pessoal, era uma aventura no mínimo absurda. Demoraria perto de um mês, se tudo corresse bem, saindo do porto ocidental de Roma, descendo o Mar Tirreno paralelamente ao cano da bota, para atravessar o Estreito de Messina a fim de encurtar caminho, navegando uma boa parte do Mar Jônico, atravessando o sul do Mar Adriático e chegando afinal no Mar Mediterrâneo, para singrar por sua parte mais extensa, até chegar a algum local, onde pudessem desembarcar, mais perto de Meggido. Ufa! Não. Os romanos não fariam isto.

Então, como se pode explicar a referência de São João àquela planície? É simples: usou-a como um mero símbolo e nada melhor do que ela para simbolizar o local da derrocada do soberbo Império Romano, já que a Planície de Meggido foi outrora palco de dezenas de batalhas e nenhuma outra região do planeta viu tanto sangue derramado nessas lutas, quanto aquela e, Roma, afinal, acabou sendo a Har Meggido, ou seja, o Armagedom citado pelo apóstolo.

Em 476, portanto quase quatro séculos depois da morte de João Evangelista, os hérulos (povo germânico originário da Escandinávia, que já havia aparecido na história algumas vezes), comandados por Odoacro, após submeterem, em sua descida pela península desde o norte, várias regiões italianas, saquearam Roma, destruindo impiedosa e barbaramente o que encontravam pela frente e matando todos quantos lhes atravessavam o caminho.  Invadiram o palácio de Rômulo Augusto – o último soberano do Império Romano do Ocidente – que foi feito prisioneiro, pondo fim àquele Império, antes tão extenso.

Afinal, a Batalha do Armagedom foi realizada e o   Apocalipse, cumprido, naturalmente sem ultrapassar, por mais brutal que tenha sido, os limites da lógica verista do ser humano, ou seja, sem aquelas imaginações hiperbólicas do Evangelista.

Nota: Pat Marvenko Smith, ilustração de Apocalipse 8:1 e 2. 1. E, havendo aberto o sétimo selo, fez-se silêncio no céu quase por meia hora. 2. E vi os sete anjos, que estavam diante de Deus, e foram-lhes dadas sete trombetas.

SÃO JOÃO E SUA LINGUAGEM DE SIMBOLISMOS

Autoria do Prof. Pierre Santos

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“E ouvi, vinda do templo, uma grande voz, que dizia aos sete anjos: Ide e derramai sobre a terra as sete taças da ira de Deus” (João, Apocalipse, 16:01)

Uma vez em Patmos, São João indagou a ilhéus sobre algum lugar calmo, no qual pudesse permanecer em sossego. Indicaram-lhe montes cobertos de florestas, onde havia grutas ótimas para se abrigar, e o filho de Zebedeu partiu à procura delas, encontrando uma à medida. Era seu objetivo dar ali o desfecho ao seu evangelho, para o que levou consigo uma boa quantidade de pergaminho virgem, penas e tinta. Mas, quando quis dar início às escrituras, eis que começou a ter aquelas visões assustadoras, premonitórias e admoestatórias, frutos de sua alucinação e, para descrevê-las, pôs a seu serviço toda a sua irascibilidade e veemência.

O apóstolo, certamente, teve acesso aos antigos textos deixados pelos profetas, sobretudo por Daniel, além do que teria ouvido muitas vezes citações a respeito. A verdade é que alguns deles serviram de inspiração em determinadas passagens de seu livro. Obcecado pela impossível meta de extirpação do pecado da face da terra, para salvação da humanidade, naturalmente seguindo ‘ao pé da letra’ as palavras de Cristo, João queria prevenir a cada ser humano existente, e que viesse a existir, sobre o perigo a que todos estavam e estamos sujeitos de condenação ao eterno fogo infernal. Mas usar para tanto a linguagem trivial e coloquial só iria comover minúscula parte dos seres, deixando insensível às suas pregações o bruto da humanidade. Era preciso uma linguagem penetrante, contundente, demolidora mesmo, que sacudisse a consciência de todo mundo e inoculasse em cada indivíduo o temor do pecado. Por isto, São João recorreu a uma linguagem desestruturante, incomum, de vocabulário hiperbólico, que acendesse na consciência de cada um o sinal vermelho do perigo. Para tanto, projetou na tela panorâmica de sua imaginação as imagens terrificantes do que entendeu por ‘apocalipse’, ‘armagedom’ e ‘desforço derradeiro’ do bem contra o mal. Assim, foram criados a ‘Parúsia’, que significa a volta de Cristo no final dos tempos (idem, 1:08 – “Eis que vem com as nuvens, e todo o olho o verá, até os mesmos que o traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele”), ‘Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse’ (idem, 6:01 a 08), a ‘Besta’, o ‘dragão’ e o ‘Falso Profeta’ (idem, 16:13 e 14 – “E da boca do dragão, e da boca da besta, e da boca do falso profeta vi saírem três espíritos imundos, semelhantes a rãs”), o ‘Juízo Final’ (idem, 1:10 ao 20 – “E virei-me para ver quem falava comigo. E, virando-me, vi sete castiçais de ouro; E no meio dos sete castiçais um semelhante ao Filho do homem, vestido até aos pés de uma roupa comprida, e cingido pelos peitos com um cinto de ouro”) e o Armagedom (idem, 6: 12 a 14 – E, havendo aberto o sexto selo, olhei, e eis que houve um grande tremor de terra; e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua tornou-se como sangue… E o céu retirou-se como um livro que se enrola, e todos os montes e ilhas foram removidos dos seus lugares), entre muitas outras peripécias intermediárias. A parúsia foi uma previsão que não se cumpriu.

Entretanto, se havia absurdo no que criava, para acionar um alarme irrefutável, absurdo algum havia em seu propósito, qual seja o de salvar, mesmo através do pânico, o imenso conjunto de seus semelhantes. Daí ter recorrido a um estilo enigmático, numa linguagem transbordante de simbolismos, que poucos, na verdade, poderiam ter entendido ou, pelo menos, assimilado o essencial de seu conteúdo, mas que, dado o seu teor bombástico, bastante confuso, haveria de abranger em seu conjunto todos os seres vivos, animais e vegetais, particularmente os humanos, que só poderiam divisar nessa linguagem o alerta da premonição. É o quanto, desesperadamente, o santo pretendia.

Não vou entrar no mérito da simbologia intuída pelo apóstolo. Os simbolistas desde sempre vêm fazendo isto e é vasta a literatura a respeito. Meu propósito é escrever mero artigo sobre o tema, enquanto curioso. Mas não posso deixar de registrar aqui as minhas impressões sobre a matéria pesquisada. Ora, em primeiro lugar, São João declarou ter tido todas aquelas visões e as anotou, ditadas pelos anjos a mandado do Senhor (1:1 – “Revelação de Jesus Cristo, a qual Deus lhe deu, para mostrar aos seus servos as coisas que brevemente devem acontecer; e pelo seu anjo as enviou, e as notificou a João seu servo”).

Aí, ocorre-me perguntar: então o apóstolo mentiu? Não. João não mentiu. Teve realmente aquelas visões, tal como as escreveu. Explico: disse atrás que ele projetou todas aquelas visões na tela de sua imaginação – e foi o que aconteceu. Há pessoas que têm esta capacidade de projetar visões em sua mente, como se as tivessem vendo na realidade, processo este que a psicologia denomina de clarividência profética ou precognição e explica de maneira convincente a existência e o significado disto. Creio ter sido isto que ocorreu ao santo, o que em nada diminui o seu impulso e o propósito de estar fazendo algo profundamente útil. Para que esta suposição não pareça gratuita e como não sou psicólogo colecionador de exemplos na matéria, digo que tenho na família uma pessoa com esta capacidade de ter visões e consegue visualizar pessoas que já se foram, os cavaleiros do apocalipse, campos de batalha e coisas assim. Este fato familiar, desde que eu era pouco mais que adolescente, sempre me impressionou e hoje me sugere a idéia exposta.

Claro que as opiniões a respeito exaradas são de um leigo, no que se refira à parapsicologia. Entretanto, há coisas intrigantes que são do conhecimento geral. Quem nunca ouviu, por exemplo, falar sobre telepatia? Ela, comprovadamente, existe. E sobre pessoas capazes de movimentar objetos só com a sua vontade, sem neles tocar, poder este chamado pelos especialistas de telecinese? Dizem até que há pessoas capazes de, só com a força da mente, provocar incêndios. Há muitas outras coisas dentro desta matéria que a parapsicologia vem estudando e demonstrando-lhes a veracidade. Por que não haveria de haver quem visse, visualizasse mesmo, coisas fora de sua realidade, perdidas em algum lugar do tempo, umas no passado, outras no presente e outras ainda no futuro? Essas previsões em cima do futuro, particularmente chamadas clarividências proféticas ou, mais especificamente ainda, precognição, segundo verifiquei na pesquisa, são as que ora nos interessam.

É muito provável que as visões e previsões joaninas tenham ocorrido desta maneira. Os profetas escreviam, intuindo coisas do futuro. Assim escreveu o apóstolo, profetizando. Algumas raras pessoas têm esta qualidade e pressentem acontecimentos para além do momento em que os captam, geralmente não demasiadamente adiantados com relação àquele momento. Já os profetas conseguem, em suas intuições, ir muito além, no futuro. Em São João, esta qualidade era bem mais intensa e extensa, pois não só conseguia prever coisas que aconteceriam quase quinhentos anos à frente (tempo até bem mais longo do que aquele brevemente que ele mesmo escreveu em seu texto), como ainda conseguia criar em seu subconsciente imagens que ilustravam o escrito e jogá-las como sensação ótica para o seu campo real de visão, como se estivesse enxergando os seus pensamentos – tal a precisão com que os ia pondo em letra de forma. O divino não estava naquele texto, mas sim na formação do santo ao longo do exercício atribulado e sofrido do apostolado.

(*) Viktor Vasnetsov, Os quatro Cavaleiros do Apocalipse, 1887, ost.

APOCALIPSE – O FIM DO IMPÉRIO ROMANO

Autoria do Prof. Pierre Santos

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E outro anjo seguiu, dizendo: Caiu, caiu Babilônia, aquela grande cidade, que a todas as nações deu a beber do vinho da ira de sua prostituição (São João, Apocalipse, 14:8)

A propalada catástrofe do Apocalipse já aconteceu. Senão, vejamos. São João nutria uma verdadeira ojeriza, ódio mesmo, do Império Romano, que tantas atrocidades fazia contra os cristãos. Em tudo quanto escreveu, sempre denominando, simbolicamente, Roma de Babilônia, profetizava a catastrófica derrocada daquele Império, algo, aliás, previsível, embora naquele tempo ele fosse extenso e firme; mas nada há que dure para sempre, mormente um sistema político. Hoje em dia é quase unânime a concordância dos especialistas, considerando que a queda do Império Romano, o maior de todos os tempos, significou o cumprimento das profecias do apóstolo.

Todavia, a este respeito, há algumas observações a serem postas. Considere-se, antes de tudo, a visão de mundo que o apóstolo tinha, do qual apenas um quarto era conhecido e, dessa parte, João conheceu tão somente pequena parcela circunscrita num perímetro de mil quilômetros, se tanto, estendido do Oriente Médio à Ásia Menor (fora desse arco, apenas chegou até o leste do Egeu, na Ilha de Patmos), percurso esse que se fazia a pé ou em lombo de burro, por caminhos mal construídos, na maioria das vezes meras trilhas. Assim, para ele, previsão a surtir efeitos quase dois mil anos depois seria algo temerário, vago e inócuo, além do que era impensável.

Embora tenhamos várias referências de como era o mundo naquele tempo, é-nos quase impossível imaginarmos como teria sido então a vida do homem comum. No mínimo, bastante insípida. O indivíduo não tinha absolutamente nada à sua disposição. Não tinha rádio, jornal, televisão, celular, caneta ou lápis e papel para escrever (São João, como foi referido, escrevia seus textos em pergaminho, com materiais próprios, hoje fora de uso, o que lhe impunha a necessidade da síntese, como severamente sintéticos são eles). Diversões só havia para os abastados, assim mesmo bastante primárias. As moradias eram toscas, de móveis toscos e de toscas instalações, como eram as fossas mal cheirosas em ‘casinhas’ no quintal. Não havia eletricidade: o escurecer do princípio da noite era iluminado por velas ou lâmpadas de azeite, pois nem lampião de camisa de vidro existia ainda, pois este só seria inventado muitos séculos depois.

Para melhor compreendermos o que é o nosso tempo, em matéria de evolução, permito-me citar aqui um trecho do livro Arte e Comunicação, publicado em 1973, autoria de Jacob Klintowitz, um dos mais importantes críticos de arte das Américas, atuante em São Paulo, sendo este o seu livro de estreia. Diz ele à pág. 21: “Se os últimos 50 mil anos da existência do homem fossem divididos em períodos de vida de 65 anos cada, haveria 800 períodos. Desses, 650 foram passados nas cavernas. Somente nos últimos 70 períodos foi possível haver uma efetiva comunicação entre um período e outro, com o surgimento da escrita. Apenas nos últimos seis períodos viu o homem sua palavra impressa. Só nos últimos quatro pode-se medir o tempo com precisão. Nos dois últimos, alguém usou um motor elétrico pela primeira vez. E a maioria dos bens materiais, usados na rotina diária, foi desenvolvida no último período. Neste, alterou-se a relação dos homens com os recursos. No campo econômico isso pode ser verificado com facilidade. Nos últimos 65 anos a agricultura, base original de todas as civilizações, perdeu seu domínio em todas as nações desenvolvidas; nas outras, o esforço é no mesmo sentido. E mesmo a sociedade industrial que substituiu a agrícola, começa a perder-se no tempo. Num único período”.

Se naquele momento, quando Klintowitz escreveu o texto acima transcrito, a sua conclusão (quanto ao último período dentre os 800 nos quais dividiu os últimos 50 mil anos da existência humana) já era impactante, deixando-nos boquiabertos – que espécie de impacto causa em nós hoje o fato de que, só nos quase 40 anos passados desde a publicação de seu notável livro, portanto um tempo menor do que um período de 65 anos, o homem já fez muito mais, mas muito mais mesmo, do que pôde fazer da pré-história até o ano de 1973?! Aí, fico pensando o seguinte: se os grandes inventores desde o século XVIII – Samuel Morse, do telégrafo, em 1837; Graham Bell, do telefone, em 1876; Thomas Edison, da lâmpada elétrica, em 1879; os irmãos Lumière, do cinematógrafo, em 1895; Gugliermo Marconi, do rádio, em 1901; e Santos Dumont, do aeroplano, em 1906, entre outros, como os ligados à computação – levantassem da sepultura e viessem ver em que resultaram suas invenções, iriam ficar estupefatos, talvez chocados, com o que veriam.

Voltemos agora ao nosso São João. O mundo em seu tempo de vida era tão atrasado com relação ao nosso, que ele nem de longe poderia intuir, sequer fazer uma vaga ideia do que é nossa realidade – e nem estava preocupado com isto, pois o total de suas preocupações centrava-se no Império Romano e todas as suas previsões a ele se dirigiam e não demoraria o seu cumprimento. São João tinha plena consciência de suas limitações temporais, pois várias vezes frisou que tudo, quanto previa, não demoraria a acontecer.

Nota: Os Cavaleiros do Apocalipse, det. do mural Guerra e Paz, de Cândido Portinari, exposto na Onu, USA.

PIERRE SANTOS – COMO ME TORNEI CRÍTICO DE ARTE

Autoria do Prof. Pierre Santos

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Dediquei minha vida praticamente à arte e seu mister, como crítico e professor de História e Crítica de Arte. Conheci Guignard em Belo Horizonte, quando começou realmente meu interesse pela arte, o que devo a ele. Acabei sendo seu Procurador e, juntos, dirigimos a Escola Guignard uma boa temporada. Não raro, quando saía para pintar — Sabará, Lagoa Santa, Ouro Preto e outras localidades – e me era possível, ia junto com ele, pois sempre estava ali outra oportunidade para aprender um pouco mais.

Em 1944, quando Guignard veio morar em Belo Horizonte, eu tinha apenas treze anos e ainda morava em Passos. Vim para Belo Horizonte em 1949; aqui me instalei e fiz minha vida. A forma como o conheci foi inesperada e muito interessante. Estava fazendo vestibular e precisava de um lugar para estudar, pois na pensão onde morava, na Avenida João Pinheiro, era praticamente impossível. Descobri que na rua Guajajaras, a duas quadras da pensão, estava instalada a biblioteca da Universidade. Procurei o Diretor e pedi-lhe para estudar ali. Ele foi receptivo, deixando-me à vontade para consultar os livros de que precisasse. Chegava cedo, saía para almoçar, voltava e ficava até o fim tarde. Depois de uns quinze dias, começaram a chegar rapazes e moças, que passavam por mim e se dirigiam lá para o fundo do casarão, acompanhados por um homem grandão, um alemãozão forte, conforme pensei na época. Era o Professor Guignard, segundo explicou o Diretor, que estava ministrando no salão de trás, emprestado pela Biblioteca, seus cursos de desenho e pintura.

Um dia, como estava muito curioso para ver o que era uma aula de arte, perguntei ao Diretor se podia ir até lá, para dar uma sapeada. Consentiu. A aula já estava instalada, com o pessoal desenhando em papel preso numa prancheta, tendo como modelo uma porção de frutas postas em cima de uma mesa. Guignard me pegou pelo braço e disse: “Vem cá!”. Levou-me até um cavalete vazio e, vendo que eu não havia levado material, pediu ao aluno que estava ao lado para arrumar-me papel e lápis. Quis explicar-lhe que não tinha nada a ver com aquilo, mas nem chance me deu. Então, comecei a desenhar. Depois de algum tempo, o mestre veio observar o que eu estava fazendo. Então falou: Escute, você não tem jeito para isso, não – e tirando o lápis de entre meus dedos, acrescentou — Venha ver comigo os outros desenhos e comente-os para mim. À medida em que fui comentando, ele foi ficando admirado, pois gostou do que eu falava e disse: Para fazer você não tem jeito, mas pode ser um crítico. Sente-se aqui” – e pôs à minha frente, numa mesinha, lembro-me bem, um livrão sobre Botticelli. Achei interessante, mas logo lhe disse que não sabia francês, ao que me respondeu: Não sabe hoje, mas amanhã já saberá e passou-me um dicionário, explicando: Vá lendo e procurando o significado das palavras aqui; hoje pode ser demorada a leitura, mas amanhã, no máximo depois de amanhã, você já estará sabendo francês. E foi verdade. Sempre tive boa memória e, depois de uma semana, já havia decorado um número grande de palavras e estava lendo quase correntemente em francês. Na sequência daquele dia, emprestou-me outros livros, os quais eu comentava e discutia com ele durante o almoço, que era sempre no Tip Top, e assim foi todo o semestre, após o que tínhamos nos tornado amigos.

Aquele dia, em que não consegui desenhar, ficou inesquecível para mim, porquanto então se deu o nosso primeiro encontro. Sempre, a partir dali, acabada a leitura de um livro, ele sempre me emprestava outro, todos em francês. O interessante é que, por causa dele, acabei aprendendo aquele idioma, pois fazia questão de, durante os nossos almoços, só conversar comigo em francês; no princípio, era uma gagueira danada de minha parte, mas ele sempre me socorria, pelo que acabei aprendendo pelo menos o trivial; além disso, tornei-me o único aluno que mestre Guignard teve de Crítica de Arte.

PERGAMINHO, SALTÉRIOS E MONGES COPISTAS

Autoria do Prof. Pierre Santos

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O pergaminho substituiu o papiro no qual se registraram os primeiros códices, porque era mais duradouro. Sua designação deriva do nome de Pérgamo, cidade da Ásia Menor, onde foi melhorada a invenção do pergaminho, que logo se difundiu pelo mundo.

Nos saltérios eram também registrados cânticos do Novo e do Antigo Testamento, Ladainhas de Todos os Santos e Ladainhas gerais, músicas devocionais de reza coletiva, etc. Os monges copistas foram se especializando cada vez mais, a ponto de criarem, para valorização dos textos, riquíssimas iluminuras ornamentais e ilustrativas, a saber, que todas as páginas passaram a ser iluminadas até com sofisticação, havendo desenhos que atingiram o nível de sublimes obras de arte. Quando incluso numa bíblia, o saltério ocupava sempre a parte central, significando o momento de descanso, relaxamento e enlevo, tal a sutileza dos salmos, em face do caráter sisudo do texto bíblico.

O cântico dos salmos na Idade Média era acompanhado pelos sons dolentes e gentis tirados das cordas beliscadas ou batidas por um plectro de um instrumento musical homólogo, do qual o saltério (o livro) tirou o seu nome. Por conseguinte, o saltério (do grego: pali = psalterion) é um instrumento musical de madeira de forma triangular ou trapezoidal, tocado na horizontal (portanto apoiado num móvel), que serve de caixa de ressonância para os sons, em cuja madeira são fixadas várias cordas por cavilhas (também do grego: sali = psalmós, que significa cordas em grego), podendo ser beliscadas pelos dedos ou tocadas pelo plectro, espécie de varinha de marfim, com que se tangem as cordas dos instrumentos, sendo o saltério da ordem da harpa, da cítara, da lira e do violino. Os salmos desta forma cantados e acompanhados pelo instrumento estão na origem da missa cantada.

O saltério não era um instrumento fácil de ser manuseado, pois, por ser um tanto quanto primitivo em face da harpa, por exemplo, exigia do instrumentista um virtuosismo bem maior do que os outros instrumentos, para que o acompanhamento chegasse ao nível da música entoada. Assim, o tocador tinha o tempo todo que reinventar a música, tirando os sons com o plectro e, com a ponta dos dedos, abafando ou alteando a sonoridade, conforme a entonação do coro.

Havia saltérios em que as cavilhas eram dispostas em forma de arco, ou seja, de forma abaulada, e as cordas nelas fixadas tinham de ser tocadas, ou seja, tangidas por um arco do tipo daquele com que se toca violino. Os saltérios deste tipo, quando mais longos, permitiam que dois arcos fossem usados ao mesmo tempo, um na parte inferior e outro na superior. Claro que os sons assim emitidos eram diferentes: os da parte inferior saiam mais baixos e os da superior, mais altos; disto resultava uma espécie de dueto, em que um fazia a primeira pauta e o outro a segunda, como num dueto cantado, em que uma pessoa fazia a primeira voz e a outra a segunda. Os saltérios de cavilhas presas no mesmo nível eram mais comuns.

Fecho os olhos e fico imaginando o quanto a união entre vozes em coro e sons tirados do instrumento, seja com o plectro, seja com os dedos, devia resultar em algo divino e embevecedor, a reboar espaço afora.

Ilustrações
 1.Livro em pergaminho e em rolo, medieval.
2. Saltério medieval de 21 cordas, séc. X.

A MAGIA DO PONTO DE FUGA

Autoria do Prof. Pierre Santos

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Quando fiz a análise da “Santa Ceia” de Leonardo, citei o fato de o pintor ter posto no olho direito de Cristo o ‘ponto de fuga’ do que estava em sua mira representar; e disse mais: que, se fizéssemos a projeção de todas as linhas arquitetônicas, todas elas, sem exceção, iriam morrer no olho direito citado. Uma só delas que não fizesse corretamente este percurso, comprometeria composicionalmente todo o conjunto. Para facilitar a visualização deste efeito técnico, tirei uma cópia da obra que inclui no meu texto, fiz a projeção em vermelho das linhas da arquitetura, “escaneei” o quadro assim preparado  para ilustrar este texto.

Só para se compreender melhor ainda, inclui também o afresco “Santíssima Trindade com os doadores” de Tomaso Masaccio, feito na Igreja de Santa Maria Novella, de Florença, Itália (na qual já estive ajudando quando da restauração das pinturas da abside), exatamente a obra em que se usou pela primeira vez na história a perspectiva científica. O ‘ponto de fuga’ foi posto no pé da cruz e para ali, como pode se ver na reprodução anexada, todas as linhas da cobertura do altar convergem, conforme marquei também em vermelho. Tanto aqui, como na obra de Da Vinci, o que se quis atingir foi o trompe l’oeil, literalmente o engana olho, ou seja, a ilusão de ótica, pois o espectador vai ver ali uma profundidade que não existe, a não ser virtualmente. Observe o leitor, que no afresco de Masaccio marquei também, em azul, dois triângulos, que são o ponto de partida para toda a composição que se desenvolveu para delas, um englobando apenas os componentes da Trindade, o outro englobando também Nossa Senhora e São João, deixando de fora o casal dos patrocinadores da obra, ajoelhados nas laterais.

O leitor vai observar também que Masaccio pôs o ‘ponto de fuga’, como disse, na base da cruz, pelo seguinte: tratando-se de um grande afresco feito em parede, o ponto de vista do espectador está abaixo da imitação de altar, em cujo bojo só há o esqueleto de alguém que ali foi inumado, com a legenda: “Já fui o que tu és; ora sou o que tu serás”. Este ponto de vista obriga quem olha o afresco de frente a erguer bem os olhos para ver direito, o que amplia a profundidade da composição num efeito de estéreo-perspectiva, como se pudéssemos subir até ali e, passando por trás da cruz e ir encostar-se à parede de fundo. É uma coisa mágica, não é mesmo? Mais para frente, quando estiver tratando, no momento oportuno, do vestíbulo renascentista, analisarei mais detalhadamente esta obra de Masaccio, pois um montão de coisas ainda há a se falar dela, inclusive de sua teatral inauguração.

1.Leonardo da Vinci, Santa Ceia, Convento della Gracia, Milão, Itália (com as linhas de sua perspectiva)
2.Tomaso Masaccio, Santíssima Trinidade, 1425, Igreja de Santa Maria Novella, Florença.