E SE ELE MORRESSE NAQUELA NOITE?

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Autoria de Lu Dias Carvalho ute12

A noite estava fria. O vento zunia nas calçadas levantando papéis e o que ali se encontrasse. A chuva não tardaria a desabar com vontade daquele céu de chumbo. As pessoas corriam apressadas, trombando umas nas outras. Algumas sombrinhas e guarda-chuvas já se encontravam abertos, talvez na tentativa de proteger seus portadores do vento gélido. Os motoristas buzinavam apavorados com a iminência do temporal. Ninguém queria ser pego longe da quentura do lar.

Mulher e marido saíram apressados da sala do dentista. Um táxi não seria a melhor solução, diante do pandemônio que se formava, com as ruas abarrotadas de pessoas e automóveis tentando forçar a passagem a qualquer preço. Caminhar seria bem mais viável para quem morasse próximo ao centro. E assim, o casal alargou os passos, agarrados um no outro, tentando vencer o tempo e a distância de casa.

Ele estava na calçada. Um idoso franzino trajando uma camisa fina e um short velho. Nos pés, apenas um tênis velho, desacompanhado de um par de meias que pudesse lhe aquecer os pés. As pessoas passavam esbaforidas por ele. Talvez nem o vissem. Mas ele estava ali, tremendo, tentando ultrapassar as portas de aço de uma loja já fechada, como se assim pudesse mitigar a frieza do tempo e das pessoas.

A mulher viu-o. Nada comentou com o marido. Seu coração e alma doíam de compaixão. Ela se emudeceu por fora e por dentro encheu-se de porquês que jamais teriam resposta alguma. O casal seguiu em frente, ziguezagueando entre as pessoas, aguardando sinais, atravessando ruas, buscando calçadas, aquecendo seus corpos com os braços, querendo se salvar do temporal que já quase beijava o chão.

Eu vou voltar para levar-lhe um cobertor e comida – martelava a mulher em sua mente compassiva e indignada. Ela chegou à casa junto com o temporal. Juntou-se à família no jantar, depois veio o banho quente, a colônia costumeira, a cama acolhedora e os braços carinhosos do marido. Pela janela do quarto entravam apenas a luz dos relâmpagos que avivam a promessa que fizera a si mesma: levar cobertor e comida para o homem idoso na calçada de uma noite gélida. O marido dormiu, mas a mulher não, com a imagem daquele ser repassando diante de seus olhos, num vai e vem sem fim. E se ele morresse naquela noite? E se ele amanhecesse morto na calçada gélida?

A mente sábia foi acalmando o coração da mulher de mente conturbada pela promessa não cumprida. Era preciso dormir, pois, a madrugada já rompia para dar lugar a um novo dia. Ela dormiu. Acordou pensando no homem na calçada álgida, de uma noite frígida, com um vento cortante em meio a tantos corações gélidos, inclusive o dela.

A mulher teve medo de ler o jornal, no dia seguinte, e de ver os noticiários televisivos. Amedrontava-lhe a ideia de que a morte do homem pudesse se estampar diante de seus olhos. Ela tinha medo de que o tivesse matado pelo seu desamor e pela palavra dada ao coração, descumprida.

6 comentaram em “E SE ELE MORRESSE NAQUELA NOITE?

  1. Patricia

    Lu,

    sinto-me a cada dia mais incapaz perante tanta miséria no mundo. Ultimamente existem muitas campanhas solidárias. Até onde há o oportunismo? Em quem acreditar?
    Enquanto existe dúvida… os pequenos atos, talvez, sejam uma solução para acalmar o coração daqueles mais sensíveis as desigualdades.

    Bjos.

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Pat

      Sempre haverá desigualdade no mundo, pois, o homem jamais deixará de ser ambicioso e egoísta. Talvez seja ela uma maneira de botar à prova a nossa sensibilidade.
      Se cada um fizer um pouquinho, o sofrimento diminuirá.

      Beijos,

      Lu

      Responder
  2. Adevaldo Rodrigues

    Lu,
    Gostei da publicação e estou pensando de outra forma: não da culpa e sim da ação. Às vezes nós queremos realizar uma boa ação e somos impendidos de realizá-la no momento da necessidade. Temos entusiasmo, entretanto não agimos como um entusiasta. Por quê?

    Abraço,

    Devas

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Devas

      Não adianta pensarmos numa ação e não a concretizarmos.
      Muitas vezes arranjamos mil desculpas para fugirmos de nossos compromissos.
      E a mulher do caso usou a piora do tempo.

      Penso que o defeito está em nós mesmos: somos seres imperfeitos.

      Abraços,

      Lu

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  3. Mário Mendonça

    Lu Dias

    Porque sempre nos punimos pelos erros dos outros?
    Estamos presos num abismo débil mental que não temos e não devemos.
    Mas estamos, por culpa nossa culpa.

    Abração

    Mário Mendonça

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Mário

      Você tem razão, de certa forma.
      Penso que seja uma coisa chamada consciência.
      E aí não adianta achar que não se é responsável por certa ação.

      Abraços,

      Lu

      Responder

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