Filme – A DOCE VIDA

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Autoria de Lu Dias Carvalho

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O filme é uma sucessão de noites e madrugadas e de idas e vindas. É uma alegoria, um grito de alerta sobre um homem sem rumo. (Roger Ebert)

Filme limítrofe entre uma maneira antiga –linear- de fazer cinema e o modo novo de organizar a história em grandes blocos autônomos. A Doce Vida libera o imaginário de Fellini e abre para ele as portas do onirismo e da psicanálise, um mundo em que as certezas se esgarçam. (Jean A. Gill)

A primeira vez que vi Anita Ekberg foi numa fotografia de uma revista americana.  A poderosa pantera se fingia de garotinha, deslizando pelo corrimão de uma escada. Tornei a sentir aquela sensação de maravilha, de estupor, de incredulidade que se experimenta diante de criaturas excepcionais como a girafa, o elefante, o baobá, quando a vi, anos mais tarde. Ela é, além de tudo, fosforescente. (Fellini)

Os filmes do cineasta italiano Federico Fellini sempre foram dissecados pela crítica com suposições muitas vezes absurdas. Uma delas era a de que eles eram autobiográficos, suposição que o deixava muito chateado. Com relação ao filme A Doce Vida (1959), a teoria era a de que o diretor classifica ali os sete pecados capitais, tendo sido rodado nas sete colinas de Roma, num período de sete noites e sete madrugadas. Não acredito que o cineasta tenha se preocupado com isso. O que Fellini deixa claro é que se trata de um filme totalmente inventado, que não se baseia em nada que ele tenha conhecido: “A Roma de que falo é uma cidade do interior, tem uma topografia toda espiritual. Eu, por exemplo, nunca conheci nenhum aristocrata, nunca fui a uma festa de aristocracia, nunca participei de orgias e, algumas vezes, passo de carro pela Via Veneto.”. O filme foi rodado em Roma, na Via Veneto, onde se encontram muitas casas noturnas, cafés na calçada e muita badalação.

Marcello (Marcello Mastraioanni), figura central de A Doce Vida, é um jornalista que escreve uma coluna de sensacionalismo, o que o leva a transitar pelas ruas de Roma à cata de notícias referentes à aristocracia decadente, playboys já fora de forma, estrelas de segunda categoria e mulheres do comércio. Além disso, acompanha uma hipotética aparição de Nossa Senhora a duas crianças, nos arredores da cidade. Marcello tem como trabalho falar sobre a vida dos outros, mas se vê envolvido na sua própria história. Embora bonito, charmoso, cheio de conhecidos e com o hábito de tentar agradar a todos, Marcello mostra-se desiludido e sem direção. Ele se encontra exausto e chateado com a vida que leva, com noites vazias e madrugadas solitárias, mesmo quando se encontra rodeado de pessoas. Não gosta do que faz e tem vontade de escrever um livro. Mas tudo se limita apenas ao sonho, pois parece haver um ímã entre ele e o ambiente em que vive, à procura de mulheres e de histórias. Ele sonha com a felicidade, mas não faz nada para obtê-la, deixando-se levar. Apesar do glamour, é apenas uma vítima de suas próprias escolhas.

A vida do jornalista bonitão já começa complicada em casa, ao lado de Emma (Yvonne Furneaux), sua noiva ciumenta, insegura, temperamental, chantagista, pegajosa e suicida. Outra mulher que aparece em sua vida é Madalena (Anouk Aimée), uma socialite promíscua que o jornalista encontra numa casa noturna, com quem sai logo a seguir, acabando juntos no quarto de uma prostituta. Eles se reencontram no transcorrer da história, quando falam de suas carências, e ela lhe pede que se case consigo, mas, imediatamente cai nos braços de outro. Na sua vida sem rumo certo, Marcello frequenta casas noturnas subterrâneas, bordéis, uma antiga catacumba, sobe no domo da igreja de São Pedro e na galeria do coro, depois de ter sobrevoado a cidade de helicóptero, quando uma estátua de Cristo é transportada.

Sylvia (Anita Ekberg) é uma atriz sueca que chega a Roma para estrelar um filme a cores. Marcello, ao cobrir sua passagem pelo país, vê-se caído de desejos pela atriz que não fala a sua língua. Sobe com ela até o topo da igreja de São Pedro e a leva a vários lugares da cidade. A cena em que ela encontra um gatinho e pede ao jornalista que arranje leite para ele, assim como a que imita o uivo de cachorros são inesquecíveis. Mas a cena primorosa é a que acontece na mesma noite, quando, já alvorecendo, ela entra na Fontana di Trevi e ele, hipnotizado por sua beleza, faz o mesmo. Apesar de seu deslumbramento, nada acontece entre os dois. Ela está sempre fora de seu alcance.

Steiner (Alai Cuny) é um intelectual que recebe poetas, cantores folclóricos e intelectuais em seu luxuoso apartamento, cheio de obras de arte. Possui uma bela mulher e dois filhos lindos. Aparenta ser extremamente feliz com a vida que leva. É superestimado pelo jornalista que o admira e o inveja, e que pretende passar mais tempo em sua companhia. É ele quem o estimula a escrever seu livro. Por isso, quando Steiner mata os dois filhos e suicida, após uma viagem da esposa, Marcello fica decepcionado, pois a paz e a alegria, que o amigo mostrava ter, não passavam de engodos.

O filme A Doce Vida é bem mais profundo do que se pode imaginar, havendo implícitos falha de comunicação, tristeza e desencanto para com a vida. Dizer que causou escândalo quando foi lançado parece até brincadeira, se o compararmos com as produções atuais. O fato é que a Igreja e os conservadores da época viram-no como um desrespeito aos bons costumes e um incentivo à amoralidade. Contudo, não existe a certeza de que Marcello tenha feito sexo com alguém.

A Doce Vida, filme franco-italiano, em preto-e-branco, é uma crítica a algo que conhecemos muito bem: o endeusamento das celebridades, voltadas totalmente para as aparências, que nos dias de hoje são cada vez mais instantâneas, além de fazerem qualquer coisa para permanecerem em cena, ainda que nada acrescentem à história da humanidade. O filme não apresenta uma história com início, meio e fim, mas é montada a partir de uma série de encontros, que vão dando vida à trama. Fellini arranja os episódios com as várias passagens da vida do repórter, cujo resultado final nada mais é do que um retrato da vida de seu país entre os anos de 1950 e 1960.

Cenas imperdíveis:

  • Steiner tocando Bach na galeria de uma igreja;
  • a câmara de eco, quando a rica socialite pede que Marcello case-se com ela;
  • a missa da alvorada;
  • a desesperançada orgia final;
  • o comovente encontro de Marcello com o pai e a sua vontade de tê-lo por perto por mais tempo;
  • o palhaço que leva as bisnagas atrás de si ao tocar seu pistão;
  • a cena do banho na Fontana di Trevi.

A trilha sonora do filme, composta por Nino Rota, é muito rica: jazz, rock e canções populares.

A Doce Vida é visto como um clássico do cinema e uma das obras-primas do diretor Federico Fellini, ao lado de 8 ½ e Amarcord, igualado por muitos a Cidadão Kane. Encontra-se na lista dos 1000 melhores filmes de todos os tempos pelo The New York Times e, segundo o site Melhores Filmes, ocupa o 19º lugar entre os melhores de todos os tempos.  Roger Ebert, falecido crítico de cinema, colocou-o na lista de seus dez filmes favoritos e como o melhor de Fellini.

A famosa cena de abertura, na qual uma estátua de Cristo é transportada sobre Roma por um helicóptero, é associada ao final, em que pescadores encontram dentro da rede um monstro marinho. Dois símbolos de Cristo: a escultura “maravilhosa”, porém falsa, o peixe “horrendo”, mas verdadeiro. (Roger Ebert)

Curiosidades:

A pedido do site de VEJA, José Wilker, ator e cinéfilo, comentou a obra e o que faz dela um clássico:

1. Comece interpretando o título
Uma das coisas mais importantes e significativas é a ironia do título. A “doce vida” é, na verdade, uma vida miserável. Fellini retrata uma cidade absolutamente decadente depois da guerra, tentando agir como metrópole, o que não era mais. No lançamento, o filme provocou sensação, mas também escândalo. Como se alguém revelasse um segredo que só se pudesse contar dentro de casa, para as pessoas mais intimas – a decadência, a falta de direção do que seria considerado um bom comportamento.

 2. Perca-se no labirinto de Fellini
A Doce Vida segue o espírito do diretor, que nunca contou uma história em linha reta. Mas seus emaranhados de ideias em labirinto ganham forma clara ao final. O livro Fellini’s Book of Dreams, que reúne as ilustrações que ele fazia de seus sonhos noturnos, me ajudou a olhar sua obra. Ele filmava os próprios sonhos. E a desordem dos seus sonhos apresentava uma ordem fantástica.

3. Perceba as cores do preto e branco
O uso da fotografia em preto e branco é notável. Você olha uma Roma em p&b que é colorida – na verdade, sempre tive a sensação de que o filme era colorido, ainda que em tons sombrios, ao me lembrar de cenas dele, tempos depois de ter visto.

4. Confira a assinatura da obra
Uma vez perguntaram a Fellini: “Mestre, o senhor improvisa muito?”. Ele respondeu: “Sim, evidentemente. Mas, antes disso, eu ensaio muito”. Tenho a impressão de que ele trabalhava com amigos, mais do que com uma equipe, que era sempre a mesma. Dá para perceber que eles falavam a mesma língua. É por motivos como esse que a obra é precursora de filmes como Blow-up – Depois Daquele Beijo (1966, de Michelangelo Antonioni) e de Taxi Driver (1976, Martin Scorsese), por exemplo.

5. Visite a Roma de Fellini
Fellini lança um olhar singular sobre a arquitetura de Roma. A própria cena da Anita Ekberg se banhando na Fontana di Trevi é isso: a fonte é para tomar banho e não para ser admirada. Faço uma analogia com a minha mãe, que jogou meus bonecos de Vitalino no lixo, pois para ela aquilo eram coisas velhas. Ele olhava pra Roma com grande paixão, mas com grande clareza em relação à cidade se reconstruindo da guerra.

6. Note a atuação
Fellini fez com que seus atores sonhassem os mesmos sonhos que ele. Marcello Mastroiani não era um ator que, segundo consta, gostasse de trabalhar; percebi isso quando filmamos Gabriela, Cravo e Canela aqui no Brasil (1983). Ele dormia! [Risos] Ele pedia para ser acordado, ia lá e gravava. Isso só acontece com quem tem uma profunda formação e uma imensa intuição. Já a Anita Ekberg é uma figura exótica, devastadora. Acho que Fellini foi o único a arrancar dela, ela mesma. E um poder de sedução que provavelmente a atriz não sabia que tinha.

7. “Olhe” para o som
É difícil ver Fellini sem ouvir, mentalmente, o trabalho do compositor Nino Rota, que assina a trilha sonora. Quando ele esteve no Brasil, perguntei-lhe sobre a colaboração com o diretor. A impressão que me deu é a de que ele nem tinha visto o filme, como se já soubesse o que tinha que fazer. Bem, é claro que ele viu… A trilha é genial.

Fontes de Pesquisa:
A Magia do Cinema/ Roger Ebert
Cine Europeu/ Coleção Folha
Site da Veja

2 comentaram em “Filme – A DOCE VIDA

  1. Cristine Martin

    Olá Lu querida!

    Seu artigo está excelente, apesar de não ter visto o filme (estou percebendo que sou uma “analfabeta cinéfila”, rs), pude captar o clima de sonho e simbolismo do filme na descrição que você fez. Realmente o cinema é uma ferramenta riquíssima para se contar histórias, e nas mãos dos mestres são produzidas verdadeiras obras-primas. 🙂

    Gostei também dos comentários do José Wilker, bem divertidos!

    Beijos, e um ótimo domingo!

    Cris

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Cris

      Sempre que faço um artigo sobre cinema, penso logo em você.
      Sei que é uma cinéfila ardorosa.

      Também amo cinema e, para minha alegria, tem sido um assunto muito procurado no blog.

      Não deixe de ver este filme.
      Já o vi três vezes.

      Beijo no coração,

      Lu

      Responder

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