Guignard – FAVELA CARIOCA

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Autoria do Prof. Pierre Santos

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A primeira obra feita por Guignard, após o retorno ao Brasil, aconteceu ser um desenho, tendo escolhido para tema uma típica favela do Rio de Janeiro. A assinatura ainda é a usada anteriormente – Da Veiga Guignard – pois foi o primeiro aqui realizado. Já no trabalho seguinte, assinaria apenas Guignard e só muito esporadicamente retomaria a antiga firma. Andava ansioso para focalizar aspectos paisagísticos significativos e tipicamente característicos do Rio, compreendidos dentro daquela luminosidade exclusiva do tropicalismo por ele recém-descoberta – e a escolha para começar não poderia ter sido melhor: um morro carioca bem referente, com todos os condimentos que, reunidos, dessem-nos a compreensão universal daquela realidade, não só em termos urbano-paisagísticos, mas também em termos humanos e sociais.

Aí está a vida passada numa favela, sintética e expressivamente caracterizada diante de nós, como exemplo vivo desta realidade setorialmente considerada. A favela vai subindo o morro com seus postes, seus barracos, sua vegetação e com tudo que nela existe, do sopé à crista, sempre arriba, até chegar “pertinho do céu”, como diria o compositor Herivelto Martins. Guignard intuiu e concebeu este corte de favela, tomando posição, com sua prancheta preparada, uns três metros aquém da rua que passa em ligeira diagonal na parte inferior, e olhasse o morro, como de fato olhava, de baixo para cima, inscrevendo-o assim numa composição ascensional. Para tanto, induz nossa vista a seguir a evolução de alguns elementos colocados em pontos chaves da composição, que vão se correspondendo em ziguezague, a saber: do lampião, à direita, ao poste um pouco acima, à esquerda; deste, à única palmeira ali existente, que se destaca acima do meio do plano total, à direita e, da palmeira, ao galho cheio de folhas lá no alto, à esquerda, sozinho, evanescente tal se fumaça fosse, avultado contra o que seria céu.

Os dois elementos que iniciam a leitura são tão dinâmicos na diagonal na qual estão inscritos, que arrastam em sua evolução todas as conotações formais do desenho – pessoas transitando por lá, caminhos sinuosos, vegetações laterais, barracões que também ziguezagueiam e dos quais as janelas são olhos a olhar-nos – como diria Drummond – como se as encaminhasse no sentido ascensional. Por onde quer que olhemos o desenho, nossa vista é sempre atraída por esses elementos, que estão sempre, em seu conjunto, esforçando-se para chegar ao céu.

A vida ali flui devagar no meio de árvores e arbustos, na tortuosidade das direções possíveis tomadas pelas aleias, por onde pessoas descem e sobem o morro. Algumas carregam latas d’água na cabeça, ironicamente vazias na descida e cheias na volta, porquanto, por não haver água canalizada nas moradias, obrigam-se a apanhá-la na bica comunitária, que sempre fica lá em baixo, no princípio da rua, à entrada da favela. Outras descem simplesmente com o fim de irem ao armazém também localizado no princípio da rua. Galinhas ciscam. Alguns indivíduos sobem a rua, à procura do atalho mais fácil, que os conduza aos seus barracos. Um burro sobe lentamente a ladeira; um moleque e seu cachorro descem-na… Ora! Vejam o Drummond aí outra vez:

Casas entre bananeiras./Mulheres entre laranjeiras./Pomar amor cantar.
Um homem vai devagar./Um cachorro vai devagar./Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham./Eta vida besta, meu Deus!

Carlos Drummond de Andrade escreveu este pequeno poema exatamente em 1929, o mesmo ano em que nasceu o pequeno desenho de Guignard, e intitulou-o Cidadezinha Qualquer, mas poderia ser também Favelinha Qualquer, teria dado na mesma. Se o poeta tivesse feito apenas o poema citado, já teria deixado patente sua enormidade poética. Assim também, se Guignard tivesse parado de desenhar depois de Favela Carioca, sua enormidade como desenhista já teria ficado provada. Mas, felizmente, ambos foram anos luz à frente.

Drummond, no simples verso com que encerra o poema, sintetiza tudo quanto Guignard passa-nos a respeito da existência num morro, porque tudo ali está focalizado com verdade. A identidade entre esses dois artistas no desenho e no poema era tão grande, que até ficou parecendo, por magia alheia e independente de tempo, de matéria e de tudo mais quanto possa condicionar a vida, que os dois estavam ali juntos, a observar o morro, um brincando de desenhar e o outro brincando de poetar.

Algumas pessoas descem e outras sobem o morro, galinhas ciscam por ali, um burro sobe a ladeira… Eta vida besta, meu Deus!

Nota: G-706-Des-002–Favela Carioca, nssp, 28 X 18 cm, 1929

 

8 comentaram em “Guignard – FAVELA CARIOCA

  1. Manoel Matos

    Professor Pierre
    Achei muito interessante o quadro de Guingnard, assim como tudo que ele fez. Parabéns por resgatar o trabalho desse artista genial.

    Abraços

    Manoel

    Responder
    1. Pierre Santos

      Obrigado, Manoel. Você é uma pessoa assídua e fiel neste blog, sempre nos encorajando. Por isto, agradeço-lhe as palavras incentivadoras que sempre tem para quem aqui escreve. 0brigado!

      Responder
  2. José Sebastião da S. Lobato

    Caríssimo Dom Pierre
    O desenho de Guignard, o poema de Drummond e a monografia de Pierre Santos merecem exibição e admiração ladeando-se. Parabéns!

    Responder
    1. Pierre Santos

      Dom Lobato, obrigado por sua opinião. Depois aperto mais sua língua, pois sei que sairá muito mais coisas do que esse laconismo que, embora já diga alguma coisa, não diz tudo o que você pensa. Tá vendo como o conheço?! Obrigado!

      Responder
  3. Pierre Santos

    Oi, Dulce, tudo bem? Não há dilema nenhum, minha querida, porque obviamente, a arte imortal de Guignard fascina milhões de vezes mais do que as palavras de um poetinha qualquer. Guignard foi na verdade imenso e fascinante é a obra que deixou, consciente, objetiva em seu fazer e profunda na mensagem que encerra. Agora, com ele ombreia, sem a menor dúvida a poesia do poetão Drummond, v. não acha:
    Beijos, minha querida.

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  4. DULCE FRAGA

    Na verdade, não sei o que me fascina mais. A arte imortal de Guignard ou a poesia infinita do meu amigo Pierre. Sua sensibilidade me encanta. Maravilhoso. Abraço

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  5. LuDiasBH Autor do post

    PP

    Fiquei encantada com este trabalho de Guignard.
    E fico pensado como seria, se pintada fosse.
    Pela sua exímia descrição, subimos ladeira, transitamos por caminhos sinuosos, passamos debaixo das árvores, deixamo-nos ser lambidos pelos cães e gatos, bicados pelas galinhas, entramos nas casas das pessoas e com elas até tomamos um cafezinho, tamanha é a simplicidade e generosidade da gente do lugar.
    E a vida deixa de ser besta, para se transformar em pura magia.

    Também sou apaixonada por este poema de Drummond.
    Quantas vezes eu não exclamo para mim mesma:
    – Eta vida besta, meu Deus!

    Feliz por ver mais um artigo seu no blog, deixo-lhe o meu abraço,

    Lu

    Responder
    1. Pierre Santos

      Obrigado, Lu, por seu comentário, que, aliás, até contribuiu para melhor entendimento dos leitores sobre o poema. Você é ótima. Espero, Lu, que nossos leitores gostem. Quanto ao poema do Drummond, também ele o tinha como um dos seus preferidos. Certa ocasião fiz um espetáculo sobre poesia mineira no auditório do Automóvel Clube e tive na plateia o próprio Drummond, que estava a passeio em BH, Bueno de Rivera e o Barão de Barba Bela. Depois saímos para jantar e o poeta me fez várias revelações sobre o imenso poeminha. Viu que sorte a minha?!
      Outra vez obrigado, minha guru, meu goró, minha goiabeira.
      Abraços

      Responder

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