O BRASIL E SEUS FALSOS HERÓIS

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Adevaldo Rodrigues de Souza

Aquele homem era um depósito de calma, generosidade e compaixão, entretanto, teve uma noite tumultuada em que o desgosto varria tudo. O relógio de parede – herança de várias gerações – marcava o compasso de seus pensamentos, sempre voltados para os noticiários da mídia nacional. Bebeu um copo de água e tentou dormir, mas não conseguia adormecer. Sua mente permanecia ligada àquela cena marcante: um famoso político morto dentro de um caixão, sendo levado pelo carro do Corpo de Bombeiros, aplaudido por uma multidão, como se fosse um herói nacional. Para compor e impactar o espetáculo, certa rede de televisão adicionou uma música do cantor Milton Nascimento, como se a vida fosse uma peça de teatro que permitisse ensaios após a morte. A encenação cruel e demagógica da mídia levou à comoção toda uma nação despreparada e ingênua.

Aquele homem teve uma noite mal dormida em meio a sobressaltos e pesadelos. Levantou-se cedo, tomou um banho quente e, após o desjejum, deitou-se na velha rede armada na varanda de sua casa.  Queria parar de pensar e mergulhar-se no mais profundo silêncio, mas não conseguia. Os passos firmes e apressados de um vizinho chamou-lhe a atenção. O homem cumprimentou-o com um sorriso acanhado e disse-lhe: “Viu o noticiário de ontem, ‘fulano’ mereceu aquela homenagem, ele foi um herói, e isso faz a gente ficar satisfeita e trabalhar com mais entusiasmo.” O  pensador sentiu-se ainda mais entristecido.

 No fundo da mente do homem reflexivo descortinou-se a verdade: a cenografia montada estava materializando-se no imaginário popular, levando o povo a sofrer com aquela representação grotesca. A “encenação” da mídia tinha um motivo lógico: criar um herói, mesmo que fosse uma figura ilusória. O Brasil necessitava de um mito para conservar o poder dominante naquele momento. Se fosse criado um personagem, ainda que mitológico, esse iria satisfazer as nostalgias secretas dos cidadãos diante das agruras sofridas. Poria um fim – ainda que ilusoriamente – ao sofrimento, ao medo, ao desemprego, à fome e à violência, dentre outros problemas vigentes no país. Para os criadores de heróis, a vida seria um teatro, mesmo que sem roteiro, onde as pessoas entram e saem de cena usando o mesmo figurino, maquiagem e sonoplastia. A peça é sempre a mesma, pois a mentira, o engodo e a corrupção continuam empobrecendo o país e seus filhos mais carentes, enquanto enriquece os “afortunados” pelo poder político, os agraciados pela política e pela mídia.

O homem lembrou-se de outros fatos da história de seu país, como a construção de seus heróis, assim como o ostracismo relegado àqueles que realmente trabalharam em prol de sua grandeza. Um deles foi o título ofertado ao pseudo herói Duque de Caxias, considerado um sanguinário na Guerra do Paraguai, mas que voltou como um mito nacional. Por outro lado, a importância dada ao grande estadista Teófilo Benedito Otoni na história oficial do país – com seu espírito pioneiro e ideias liberais democráticas – foi praticamente nula. Seu nome nem mesmo frequenta as páginas dos livros da história da nação.

Os fatos repassavam na mente do homem pensativo como se fora um filme, uns se antepondo aos outros. E já cansado de tanto vislumbrar mazelas, ele foi sentindo que seu pensamento adormecia lentamente. E sonhou. Sonhou que a peça grotesca daquele teatro bizarro tinha acabado. A cortina fechara-se sem nenhum aplauso, pois a plateia era inteligente e não se deixava mais se manipular. Os diretores foram obrigados a rasgar aquele roteiro nefasto e reescrever uma nova história que revelasse a verdade com maestria e arte. Um novo horizonte abria-se para seu país… E ele continuou a dormir em paz.

O homem acordou-se bem-humorado e com esperança renovada… Mas não demorou a descobrir que a vida no Brasil continuava a mesma. A peça imoral ainda se encontrava em cartaz. Ele então chorou amargamente… Talvez seus netos pudessem – num futuro longínquo – mudar o roteiro. A ele só restava a vã esperança, a mesma que habita o coração dos retirantes.

Nota: Retirantes, obra de Candido Portinari

5 comentaram em “O BRASIL E SEUS FALSOS HERÓIS

  1. João Carlos Rodrigues

    Adevaldo

    Realmente é um belo texto, representa com galhardia e dureza a realidade brasileira, onde a maioria da população vive numa ilusão perpetrada pela elite dominante através da mídia corrupta.

    Responder
    1. Adevaldo Rodrigues

      João Carlos,

      obrigado pelas palavras de incentivo. Escrevi este texto em 2017, quando me levantei chateado e com vontade de dizer alguma coisa sobre a capacidade crítica de nosso povo. É triste notar que nada até hoje. Penso que só haverá mudanças quando chegar ao fundo do poço e, pelo andar da carruagem, falta pouco.

      Abraço,

      Adevaldo

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  2. Edward Chaddad

    Devas

    Disse Joseph Campbell que “Uma das muitas distinções entre a celebridade e o herói é que um vive apenas para si, enquanto o outro age para redimir a sociedade. O objetivo último da busca não será nem evasão nem êxtase para si mesmo, mas a conquista da sabedoria e do poder para servir os outros.”

    Máxime em nosso país, que ceifou os planos de educação crítica, desde 1970, ao vigorar do ato institucional nº 5, a grande maioria de nosso povo não possui condições de refletir sobre o que está ocorrendo, sendo, assim, manipulado facilmente pelos meios de comunicação, eis que não são plurais, são uníssonos, apresentando uma verdade que lhes interessa e à classe dominante. Assim produzem falsos heróis e os verdadeiros ficam esquecidos.

    É importante, aqui, refletir sobre o pensamento de André Malraux : “não existe herói sem platéia.” Somos plateia, porém manipulada, enganada, pois a verdade não nos chega. Pode existir meia-verdade, um “fake news”, como milhares estão sendo divulgados. E a meia-verdade acaba escondendo o lado mentiroso, que a ela vem atrelado. Somos, portanto, enganados, com exceção, é claro daqueles que buscam analisar, v. gratia, as notícias pela mídia internacional, ou ainda por dados oficiais – dos agentes públicos – estes que não a escondem, pois, por lei, são obrigatoriamente contabilizados.

    A história, cá entre nós, sempre dividiu o seu relato entre os bons e os ruins. Uns são santos, outros,covardes. É claro, há os heróis e aqueles que traidores, são os bandidos. Vendo o mundo descortinando hoje a verdade que se percebe e a falsidade que nos chega pelo noticiário da televisão, é fácil entender como o mundo humano se revela: escolhe o que interessa e o que não interessa esconde.

    Adorei seu texto, pois permite uma reflexão profunda sobre o nosso presente.

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  3. LuDiasBH Autor do post

    Devas

    O seu brilhante texto leva-nos a uma profunda reflexão, pois o que temos realmente em nossa país é uma corja de anti-heróis que jamais se preocuparam com a “Pátria Mãe”, enquanto os verdadeiros jazem no mais profundo esquecimento, como se por terras brasileiras jamais tivessem passado. E o povo brasileiro? Esse dorme profundamente num berço não tão “esplêndido”.

    Parabéns por este texto incomparável!

    Abraços,

    Lu

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