O DIA EM QUE A VIRGEM CHOROU…

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Autoria do Dr. Ivan Large

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Sai o torcedor de futebol, e entra na minha sala um religioso, vestido com sua tradicional batina. É frei Chico, parecendo muito apressado, como de costume. Essa impressão se confirma quando, havendo-lhe perguntado como está, ele me responde, com um ar de ironia, que estaria muito melhor se eu não o tivesse feito esperar mais de meia hora, antes de ser atendido.

Einstein já demonstrou a relatividade do tempo. Agora é minha vez de demonstrar que o humor do Frei Chico também é relativo e, sem mais nem menos, pergunto-lhe se soube de uma Virgem Maria que chorou alguns anos atrás, lá na minha terra natal, no Haiti. A sua expressão de contrariedade dá lugar a uma de curiosidade e, tal como Sherazade, aproveito para iniciar esta história:

Tudo começa num domingo, na igreja Santa Maria da Consolação, na pequena cidade de Jacmel. São dez horas da manhã. A igreja está lotada. São fiéis de todas as idades vindos para assistir à missa “dos Ramos”. Enquanto esperam, aproveitam para treinar os cânticos que serão entoados durante a celebração religiosa.

Num canto um pouco isolado da igreja, um grupo de mulheres vestidas de preto, os rostos cobertos por um véu de renda da mesma cor, seguram entre os dedos os grãos de seus rosários. Rezam em voz baixa, ajoelhadas aos pés de uma pequena estátua de Santa Maria da Consolação. De repente, nesse canto da igreja, ecoa um grito estridente. Todos os olhares convergem em direção a uma mulher desmaiada aos pés da estátua. Todos querem prestar socorro à pobre devota que, apesar do excesso de zelo da assistência, consegue, após alguns minutos de palmadas e copos de égua fria no rosto, recuperar os sentidos. Ainda no chão, sustentada por suas companheiras, aponta um dedo trêmulo em direção à estátua, enquanto tenta balbuciar palavras incompreensíveis Após algumas tentativas, acaba pronunciando as palavras: “Lágrimas, lágrimas…  Virgem…”

Todos olham para a estátua e veem, consternados, uma lágrima escorregando no rosto de madeira. Uma crise de histeria coletiva toma posse de todos os presentes. Atraído pelos gritos, o padre chega correndo. Sumariamente informado pelo sacristão sobre a causa de tal desordem, afasta os curiosos agrupados à frente da estátua e, após examiná-la, cuidadosamente, confirma com voz solene:

– A Virgem está chorando!

A notícia extraordinária percorre o país inteiro num tempo recorde. A partir desse momento, a pequena cidade torna-se o centro das atenções. Todos, mesmo os menos crédulos, querem testemunhar o milagre.

No mesmo dia, as autoridades eclesiásticas fazem um relatório detalhado a seus superiores, no Vaticano, pedindo-lhes que a cidade de Jacmel seja transformada, urgentemente, num centro de peregrinações, a ser visitado pelos católicos do mundo inteiro. A grande burguesia da cidade já está se articulando a fim de preparar, o mais rápido possível, uma infraestrutura para receber os futuros turistas, com investimentos pesados na construção de luxuosos hotéis.

Apenas um jornalista meio ateu quer comprovar o milagre. Com um tubo de ensaio na mão, vai para a igreja a fim de recolher uma lágrima da Virgem, com a intenção de submetê-la a análises laboratoriais. Não é autorizado a aproximar-se da estátua, que está atrás de um vidro à prova de balas, sob a guarda de militares armados até os dentes. A Virgem encontra-se sob a proteção do exército, por ordem expressa do Presidente da República, que espera tirar o melhor partido deste “boom” na economia do país.

Entretanto, numa outra igreja, um jovem padre, que um dia se tornará um grande líder político, pronuncia um sermão, no qual deixa pairar a seguinte dúvida: As lágrimas da Virgem são de alegria ou de tristeza? Imaginando que seja de tristeza, qual seria a causa dessa tristeza? Seria ela a situação deplorável na qual se encontra o país? E se a moda pegar? E se todos começarem a chorar? Então, todos os esforços do governo, para dar alegria ao seu povo, com festividades carnavalescas e partidas de futebol, teriam sido desperdiçados em vão? Todas essas dúvidas levam os donos do poder a concluir que essas lágrimas podem ser interpretadas como uma forma de contestação contra a sua autoridade, e por isso devem parar.

De santa, a Virgem vira demônio. Numa reunião organizada dentro do palácio, o Ministro da Guerra e Cultura ordena que a igreja seja imediatamente queimada. O arcebispo lembra que tal atitude poderia atrair a ira divina e aconselha uma medida menos drástica. Sugere que a Virgem seja colocada numa pequena sacristia inacessível ao público. Sua ideia é aceita e, durante a noite, a estátua é transportada sob forte escolta, para o subsolo da mais terrível cadeia do país, e instalada numa minúscula jaula, cuja entrada é murada.

Nunca mais, alguém a verá chorar…

Contam que, décadas depois, durante a revolta que colocara um término à ditadura dos Duvalier, a cadeia é tomada pelos revolucionários. Eles derrubam o muro que impede a entrada da jaula, onde está escondida a estátua, mas no seu lugar encontram um ramo de salgueiro petrificado. Este fato é interpretado por alguns como um novo milagre. Mas isso é outra história, que eu prefiro reservar para a próxima consulta do Frei Chico.

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