RAM MUNDA (9) – UM SANTO DALIT

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Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun IX

Ram Munda descobre que a melhor refeição do mundo é aquela  que enche o estômago vazio e leva à mente a sensação de saciação, mesmo numa taverna. Para ter direito a essa comida mendigou, foi humilhado e desprezado como indivíduo. Ao comer, usa os dedos da mão direita, utilizando pedaços de pão, como colher, para pegar a papa, de modo a não levantar a menor suspeita. O uso da mão esquerda denunciá-lo ia. Os hindus nunca a usam para comer. Após o almoço, volta a seu lugar de véspera, na tentativa de fazer amigos. Algumas mulheres cozinham. Ele entabula conversa com um casal e descobre que os intocáveis, na sua imensa maioria, não sabem contar os meses e os anos. Nunca mais volta a encontrar os novos amigos.

Amanhece! Ram Munda resolve ir para o Ganges, onde já se encontram muitos mendigos, que se posicionam no ghat sagrado, esperando esmolas. No entanto, observa que não há compaixão por parte dos doadores. Apenas se conformam com a ordem universal, em que os ricos dão aos pobres. O que importa é o que se ganha através do ato generoso, como numa barganha com o divino. A doação aperfeiçoará o carma do doador e, consequentemente, sua próxima reencarnação. Segundo o hinduísmo, a caridade é um dever do hindu, de modo que os devotos têm que cumpri-lo, ainda que seja com repugnância em relação ao pedinte. Ram Munda é impedido, por um membro da máfia dos pontos, de esmolar no ghat escolhido por ele. Apenas se levanta e sai. Senta-se distante, onde fuma um biri. Não pensa em mais nada. Sabe que apenas existe como um legume ou qualquer outra coisa e nada lhe resta, senão aceitar os fatos.

Baba é um termo honorífico para os santos e anciãos. No subúrbio sul de Benares, Baba Gulla e Baba Detra são os deuses da maconha. Para comer, nesse novo dia, resolve procurar o templo dedicado a Baba Khichari, onde servem uma mistura aos pobres. Ao se aproximar do caldeirão, no fogão de barro, é afastado com um movimento desdenhoso, pelo homem que mistura a pasta viscosa. Mas é preciso aguardar, pois não come nada desde o dia anterior. A seu lado há dezenas de homens de 20 a 30 anos, crianças seminuas e algumas mulheres intocáveis. Não se falam e nem ao menos trocam olhares entre si. Tudo parece ilusão. A fome, o tédio, a sujeira e a falta de dormir tiram-lhes a vontade de conversar entre si.

Quando a papa fica pronta, dois ajudantes do cozinheiro ordenam que eles se assentem, em fila, na calçada, de costas para a circulação de veículos e de vacas. Jogam-lhes pratos de folha de mahua, de modo a não tocar neles. Um dos ajudantes usa uma panela velha como concha, que corresponde a uma porção. A mistura está muito quente, a ponto de lhe queimar os dedos e a boca, pois a fome não permite esperar que o alimento esfrie. Apesar do gosto de queimado, acha a comida (papa de arroz com lentilha) deliciosa. É a fome! Come apenas a metade e já sente o estômago cheio. A partir daí precisa empurrar, pois ninguém se levanta antes de ter comido tudo. Nunca se sabe quando será a próxima refeição. É preciso fazer como os camelos.

O sol forte dos trópicos curte a pele e provoca transpiração excessiva. Caminhar torna-se penoso. A solidão pesa-lhe na alma. É preciso encher o vazio. Foi informado de que há um templo dedicado a Ravidas, para os intocáveis. Trata-se de um santo intocável, originário de Benares. No século XV, ele combateu as superstições e as injustiças sociais perpetradas em nome do hinduísmo. Pregava a igualdade de todos os homens e de todas as religiões. E, apesar de intocável, tornou-se um guru. Sua mensagem era fundamentada na fraternidade, no direito de todos os indivíduos serem respeitados. Foi considerado um revolucionário por seus seguidores. Opunha-se à prática da intocabilidade e declarava:

Não se deve perguntar onde fica o templo de Ravidas, pois isso significaria dizer que é um intocável. E ser intocável significa ser maltratado e desprezado.

O local em volta do templo destila a miséria e o tédio. Não há peregrinos, nem turistas, mas camponeses esfarrapados, casebres feitos de barro, vacas esqueléticas que defecam pelo caminho e cachorros pelados latindo. No templo é informado de que não se passa uma semana sem que um “filho de Deus” seja espancado, queimado ou violado. As castas dos intocáveis não são unidas. Muitas se consideram intocáveis entre si. Eles se dilaceram nas suas próprias entranhas. A mensagem do guru Ravidas continua atual.

A visita ao templo dos intocáveis deu a Ram Munda forças, fazendo-o sentir-se digno de respeito. Ali foi tratado como igual. Chamado de “senhor”. Não se sente mais sozinho, depois de ser tratado como um irmão, pelos fiéis do templo.

A seguir o capítulo 10…

Nota: Imagem copiada de http://curiosidadeseculturas.blogspot.com.br

Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Editora Bertrand Brasil

8 comentaram em “RAM MUNDA (9) – UM SANTO DALIT

  1. LuDiasBH Autor do post

    Luna

    Eles se acham os tais, ainda que masquem fumo e cuspam em qualquer lugar… risos. Aguarde o texto que irei publicar, dizendo o que eles acham de nós, ocidentais.

    Beijos,

    Lu

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  2. Luna

    Achei muito interessante, pois esclarece muito sobre a espiritualizada Índia e suas castas. Pensava que isso não existisse mais, e para ele nós somos como “dalits” por sermos estrangeiros. É uma triste realidade contada por quem sentiu o que é ser um intocável na própria pele.

    Parabéns por compartilhar conosco essa experiência.

    Responder
  3. Vivian

    Lu, estou acompanhando mais esse post aqui, gosto de estar inteirada sobre a cultura de outros povos, sempre gostei muito de estudar “História”, estou adorando toda as informações culturais! É triste a realidade desse povo, é desumano, mas podemos tirar disso lições. E aprender a valorizar a nossa cultura, a nossa vida, que diante da realidade descrita aqui nesses textos, é quase perfeita. Como gostaria que toda essa desigualdade acabasse e a situação dessas pessoas melhorasse, é tudo muito triste. Estou aguardando o próximo texto.
    Abraço!

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Vivian

      Que bom tê-la aqui, acompanhando esta triste história dos “dalits”.
      Apesar de o livro ser mais antigo, tudo continua igual.
      E essa gente ainda fala em espiritualidade.

      Beijos,

      Lu

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