UM MENINO CHAMADO PETER

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Autoria do Prof. Rodolpho Caniato*

Os mesmos fatos podem ser registrados em diferentes pessoas de formas e intensidades muito distintas, com significados às vezes opostos.

Corria o ano de 1937. Desde o começo desse ano eu frequentava o primeiro ano de minha primeira escola, o Colégio Teuto Brasileiro ou Deutsche Brasilianische Schule, na Rua Siqueira Campos, em Copacabana. Já o ano letivo havia começado e todos os alunos daquela minha turma se conheciam, quando apareceu um novo aluno que não falava português. Era o Peter. Ele estava recém-chegado da Alemanha e ainda vinha com suas roupas tipicamente alemãs, com suspensórios e peitoral de couro.

Eu ia e voltava a pé, numa caminhada de algumas quadras, desde o “Atalaia” até nossa escola. Nosso novo colega não falava português.  Ele morava numa travessa, quase esquina, da Rua Barata Ribeiro, a meio caminho de meu trajeto diário para a escola. Passamos a voltar juntos todos os dias, cada um com sua maleta de couro às costas. Por isso ficamos amigos. Ele ia aprendendo um pouco de português e eu podia entendê-lo. Muitas vezes eu o acompanhei até a entrada do pequeno apartamento térreo em que morava com seus pais, sempre ausentes.

Numa das vezes fiquei conhecendo sua mãe. Peter sempre trazia a chave de sua casa pendurada num cordão ao redor do pescoço. No mais das vezes, ficava sozinho em sua casa e com ordens taxativas de sua mãe para que, depois de comer, fosse dormir, precisamente às três horas da tarde. Ele seguia essas ordens com um rigor simplesmente germânico. Nunca me contou a razão da vinda de sua família da Alemanha para o Brasil. Sabendo, por meus relatos, que ele sempre comia sozinho e depois ia dormir, minha mãe insistiu para que eu o convidasse para vir almoçar comigo, em nossa casa.

Ele veio várias vezes. Numa dessas, minha mãe, suíça, havia feito uma comida brasileira que ela sabia ser desconhecida para o Peter. Por isso, explicou-lhe, em alemão, que não precisava comer aquilo  que não fosse de seu agrado. O surpreendente foi sua resposta pronta e taxativa, também em alemão: “muss alles gegessen werden” (“tudo (que vem à mesa) tem que ser comido”). Depois do almoço ainda tínhamos  tempo para alguma brincadeira ou conversa fiada. Às vezes, minha mãe contava alguma história que ela mesma ia criando e contando para o nosso convidado.

Outro aspecto curioso era o rigor com que o Peter seguia as ordens de sua mãe ausente. Às três horas em ponto ele saia, interrompendo qualquer coisa que estivéssemos fazendo, para usar a chave que trazia pendurada ao pescoço e, mesmo sozinho, obedecer à ordem de ir dormir. Só muitos anos depois eu fiquei sabendo que sua família, como milhares de outras, fugiam da Alemanha por sua origem judia ou simplesmente por serem contrárias a Hitler. Estávamos nos anos próximos à eclosão da Segunda Guerra Mundial.

Esses episódios ligados ao Peter ficaram para sempre lembrados e relembrados na história de nossa família. Era algo muito diferente de nossos hábitos, a obediência intransigente a alguma ordem “superior”, ainda mais numa criança de sete anos. A imagem daquele meu colega de infância ficara indelevelmente gravada em minha memória, talvez por isso.

No ano seguinte, em 1938, nós nos mudaríamos do Rio para Corrupira e nunca mais eu soube de qualquer daqueles amigos de minha infância. Tudo foi ficando num distante passado. Nunca mais tive qualquer notícia do Peter. Mais de setenta anos depois, eu, aposentado, fazendo uma caminhada pela praia de Copacabana, vejo um casal que vem caminhando, em direção contrária, bem em frente e próximo. Reconheci imediatamente o Peter. Em poucos instantes vi e revi nos arquivos de minha memória aqueles traços de um rosto conhecido de tantos anos passados. Hesitei em abordá-lo. Era demais. Seria mesmo o Peter? No momento em que nos cruzamos, bem de perto, achei que era ele.

Segui caminhando e procurando me certificar se não estava sendo enganado por alguma confusão na memória e pela emoção que isso provocava em mim. Durante os dez metros, depois de nos cruzarmos, vi e revi os  arquivos de minhas memórias. Tive certeza de que era mesmo o Peter. Certo de estar vivendo um encontro extraordinário e de repetição improvável, resolvi voltar, passar bem à frente do casal, garantir mais uma dianteira e a volta para repetir a observação que me desse mais uma oportunidade de nos vermos cara a cara.  Quando nos aproximamos pela segunda vez, tive certeza de que era ele.

Resolvi abordá-lo: desculpe-me, o Sr. se chama Peter? – Sim, foi a resposta. Seu sobrenome é Fulano? Era mesmo o Peter Fulano. Eu estava tomado de grande emoção. Ele, de nenhuma. Relatei então brevemente as circunstâncias em que nossas vidas se haviam cruzado, mais de setenta anos atrás. Diante de minha insistência ele me contou que era médico e que também estava aposentado. Logo percebi que do lado dele não havia ficado qualquer registro importante do nosso encontro da infância. Diante da frieza e desinteresse de meu interlocutor, pedi desculpas pela abordagem, despedi-me e segui minha caminhada pela praia.

Muito pensei, depois, sobre esse encontro. Eu levava na memória uma história cheia de significados, para mim. No entanto, para ele, os mesmos fatos não haviam sido sequer registrados. Tive que reexaminar as causas de minha frustração naquele encontro. Isso acontece muito ao longo da vida da gente. Os mesmos fatos podem ser registrados em diferentes pessoas de formas e intensidades muito distintas, com significados às vezes opostos. Eu já havia notado, mesmo em meus (cinco) filhos, como os mesmos fatos tinham registros e interpretações tão diferentes em cada um deles. Conheço famílias em que um irmão se lembra da infância modesta, mas alegre e feliz que tiveram, enquanto outro se lamenta da “miséria” que viveram. Os mesmos fatos podem ter significados tão diferentes e até opostos, segundo as circunstâncias e vivências de cada um: os mesmos fatos podem ter significados, até postos, segundo as diferentes “constelações” de emoções que povoam nossas mentes.

*http://astronomia.blog.br/rodolpho-caniato/

Nota: a ilustração é uma obra do pintor alemão Karl Schmidt-Rottluff

5 comentaram em “UM MENINO CHAMADO PETER

  1. Moacyr Praxedes Autor do post

    Professor Caniato

    Seu texto é muito interessante, pois nos faz saber que todos temos um “Peter” na vida, seja por uma causa ou outra. O importante é o que fazemos e não a recompensa exterior.

    Abraços

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  2. Rodolpho Caniato

    Amigos
    Aproveito este espaço e esta oportunidade para exprimir minha gostosa surpresa com o desdobramentos e repercussões dos meus textos. Nunca alimentei pretensõs literárias. Estas são as primeiras satisfações desse tipo, quando já se vão apagando as “luzes” do meu “barquinho”. Devo-as à casualidade do encontro com a Lu e à sua sensibilidade. Por isso sou muito grato a ela.
    Minha vida, menos por mérito meu e muito mais pelo das cidcunstâncias, é toda um encadear de muitas histórias que sempre revivo. Fico muito grato e feliz por esta nova “descoberta” e pelo carinho dos leitores deste espaço. Obrigado!

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  3. Celina Telma Hohmann

    Professor Caniato

    Li seu texto no dia em que foi publicado e não consegui, em absoluto, deixar de sentir algo um tanto ruim com a indiferença do pobre menino tão rigidamente criado. Senti, como o senhor deve ter sentido, aquela tristeza, ao notarmos que alguns reencontros e memórias parecem não ter significado algum. Senti uma raiva danada desse Peter Alemão! E ainda revi e revivi momentos em que os encontros fizeram um bem danado, com aquele afago gostoso que recebemos de alguém querido em nossa infância. Por tantas vezes reencontrei amigos do passado e da infância, por alguma razão ainda mais importante, ocasionando um desnudar de boas emoções. Mas, confesso, fiquei “mexida” com seu texto. Aquele não saber o que dizer, ou como fazê-lo sem deixar que uma ira se interpusesse entre um escrito tão bonito e uma raiva meio malandra se infiltrando na história contada. Não somos meros espectadores! Num olhar mais atento lá vamos nós entrando no enredo…

    Ter uma história é inerente ao ser humano e nelas as pessoas existem, existiram e sempre farão parte de uma fase que não se esquece, exceto, o que parece não ser o caso, quando se é acometido pela perda da memória. Não é agradável percebermos que para alguns, o que para nós é tão importante, a esses, a importância, se existiu, ficou em algum lugar oculto. Concordo que, para cada um, determinadas lembranças ou fatos têm significados diferentes. Seria normal aceitar que é assim, afinal, a diversidade de sentimentos e valores é que faz com que a sociedade seja tão diversificada. Mas é ruim a indiferença. Como negar que houve um passado e que nele existiram pessoas que foram marcantes? Só consegue quem não valoriza a mão que se estendeu, o prato que agradou, o cheiro peculiar do lugar por onde se passou. Será que a fase foi tão difícil que, como no caso do menino do suspensório e horários rígidos, foi melhor apagá-la da memória? Não sei, tampouco creio que um dia saberemos. Cada um com seus motivos…

    Quando li sua primeira postagem, desnecessário dizer mais uma vez que amei! Amo histórias, lembranças, carinhos guardados, vida que foi e que ainda é! Há uma pseudo acusação de que alemães são frios. Nem todos! Meu pai era alemão, e dar um tamanho ao coração que possuía é algo impossível. Naquele coração coube o mundo e, quando nos deixou, o coração deixou por aqui os vasos que continuaram florindo..

    Pobre Peter! Uma infância de fuga e uma vida madura sem a moldura do passado de aceitação. Não soube aproveitar o calor das boas lembranças, ou talvez, nem as tenha sentido como boas, afinal, tinha sobre o peito uma chave, que ao visto, trancou-lhe emoções. Pobre Menino chamado Peter! Mas nós, de alguma forma, agradecemos ao Peter, pois nos trouxe de novo o professor, que passamos a amar pelo seu jeito adorável de transcrever emoções de forma que prende, amarra, contagia e faz com que “amaciemos” a possibilidade de nos incluirmos entre os que se esqueceram daqueles que fizeram parte de uma das fases de nossa vida. Uma pena! Lembranças são tão boas, até mesmo as más, pois essas, ainda que nos façam sangrar de leve, ainda assim acenderam cantinhos escondidos. Vivemos e começamos pelo começo e iremos ao fim sempre rodeados de histórias. Doces histórias que dão colorido à vida!

    Aguardo, com uma ansiedade sutil, mais pedacinhos de história de vida, onde, entre constelações e buscas pelas estrelas mortas, e quem as estuda, sabe que, ao prepararem-se para tal, brilharam com uma intensidade enorme, demonstrando que na vida, o grande presente do Cosmo para nossa indagação é observar sempre, mesmo que entender seja para poucos! Só entende quem tem olhos para ver e o genuíno saber diz que na vida nem tudo que parece é!

    Um grande abraço e muita luz sobre seu coração!

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  4. Maria Tereza Alaggio

    Professor

    Os alemães são mais racionais, mais frios que nós, latinos. Super disciplinados, rígidos e cultivam a obediência cega às regras. Mas que o Peter foi ingrato, isso ele foi….

    Abraços
    Matê

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  5. LuDiasBH Autor do post

    Prof. Rodolpho Caniato

    Fui tomada por uma raiva danada desse Peter, à medida que fazia a leitura de seu delicioso texto. Nem mesmo a sua generosidade e nobreza de caráter, ao tentar justificar a postura do “Deutsch Master”, removeu-me do imenso desejo de dizer-lhe “poucas e boas”. Não resta dúvida de que os acontecimentos registram-se diferentemente na memória das pessoas que vivenciaram um mesmo fato. Contudo, meu terno amigo, no caso em questão, o ocorrido deveria ter sido indelével na cabeça do “Peter (que) sempre trazia a chave de sua casa pendurada num cordão ao redor do pescoço.”, o agraciado.

    Professor, seu texto, ao revelar-nos que “Os mesmos fatos podem ser registrados em diferentes pessoas de formas e intensidades muito distintas, com significados às vezes opostos.”, tem o poder de alertar-nos para o fato de que devemos ser condescendentes com nós mesmos, pois, em tais situações, tendemos a sofrer muito com a indiferença do outro. Julgamo-nos injustiçados e rotulamos o sujeito “insensível” de mal-agradecido. Mas ainda que o seja, cumprimos a nossa parte, e o agir do outro “assim ou assado” é problema unicamente dele. Partilhar o bem é dever de cada um de nós, se nos consideramos HUMANOS verdadeiramente.

    Meu amigo, saiba que sua presença aqui no blog vem sempre acompanhada de uma lição de vida.

    Abraço,

    Lu

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