A BÍBLIA SAGRADA E O LATIM (Aula nº 37)

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Autoria de Lu Dias Carvalho

O estudo da história da humanidade, embora seja muito similar em diversos aspectos, indiferentemente da época, noutros nos leva por mares nunca dantes navegados. Quem nos dias de hoje, em sã consciência, poderia imaginar que o livro dos cristãos — a Bíblia — foi em tempos idos acessível apenas aos cidadãos bem nascidos e dentre esses não se incluíam mulheres e crianças, ainda que dominassem o latim.

De modo geral o ato de ler e escrever estava sob o domínio de pouquíssimas pessoas — normalmente de homens religiosos e eruditos. Já naquela época, o conhecimento era valioso, mas o “excesso” de informação era visto como um perigo para o cristão, principalmente para a mulher. No entanto, histórias bíblicas, fábulas morais e a vida dos santos eram vistas como conhecimentos que todos os fiéis deveriam ter.

Presume-se hoje que toda casa cristã contenha no mínimo uma Bíblia, mas na Idade Média e até mesmo no Renascimento tal livro era um bem extremamente precioso para encontrar-se nas mãos de qualquer um. Seu conteúdo — disponível apenas em latim — era tido como sagrado, sendo essa a alegação de sua inacessibilidade. Às mulheres e às crianças, ainda que fossem “bem nascidas” e exímias no conhecimento da língua latina — mas vistas como inferiores aos homens — cabia apenas o aprendizado das Escrituras Sagradas, desde que feito através de pinturas e imagens da vida dos santos que ornavam as igrejas, dos sermões, orações e catecismos.

Como a galhofa faz parte de todas as épocas da história da humanidade, as pinturas didáticas da Igreja Cristã de então eram frequentemente chamadas de “bíblias dos analfabetos”. Dentre os ditos “analfabetos” encontravam-se todos aqueles que não dominavam o latim, incluindo o povo inculto, incapaz de dominar qualquer que fosse o dialeto ou idioma.

Uma vez que se encontravam impedidos de ter acesso à leitura das Escrituras Sagradas, as pessoas que não dominavam o latim, mas que sabiam ler em outra língua, faziam uso  de textos escritos em italiano ou francês, contando histórias sobre a vida dos santos e dos mártires da Igreja. Tais escritos incentivavam as senhoras a serem boas esposas e mães; as moças a serem virgens e puras e os rapazes a portarem-se como testemunhas de Cristo levando a Cruz.

O latim — hoje língua morta — era o meio principal de comunicação usado nas cidades italianas pelo governo, pelos grandes negociantes e pela Igreja. Para trabalhar no mundo mercantil o indivíduo precisava ter um conhecimento rudimentar de aritmética e uma compreensão básica da língua latina. A maioria das cidades italianas possuía escolas — públicas ou privadas — de gramática.

Em finais do século XII a cidade de Milão orgulhava-se de possuir 60 escolas. E por volta de 1600 (séc. XVI) um cronista de Florença exultava-se com o fato de que “entre oito e dez mil rapazes e moças florentinos estavam aprendendo a ler”. As famílias ricas contratavam tutores particulares e aos estudantes que se encontravam num grau mais avançado era facultado assistir às conferências articuladas pelos frades dominicanos e franciscanos, ou assistir às aulas nas universidades recém-criadas.

A cidade de Pádua inaugurou sua universidade em 1222 (séc. XIII), transformando-se num grande centro de conhecimento na Europa. Ali, os eruditos encontravam-se voltados para os estilos e os tipos de literatura latina da Antiguidade. Tinham também como meta conscientizar seus seguidores sobre a importância do estudo do passado — parte importante da identidade de seu povo. Esse interesse e valorização do passado clássico foi fundamental para construção de uma consciência cívica moderna do povo daquela cidade. Os eruditos foram capazes de perceber o quanto o estudo da Antiguidade era importante em relação aos problemas contemporâneos da época.

No século XIII o latim era o único idioma usado como meio de comunicação na Itália, mas no século XV o dialeto toscano — precursor do italiano moderno — já se tornara um meio de comunicação para os indivíduos que detinham certa cultura. Três importantes escritores italianos — Dante Alighieri (1265-1321), Francesco Petrarca (1304-1374) e Giovanni Boccaccio (1313-1375) — foram fundamentais para que o dialeto florentino (o toscano) se transformasse numa língua literária de toda a península.  

Foi também no século XIII que apareceram as primeiras traduções da Bíblia do latim para o vernáculo falado na Itália. Por serem traduções parciais, copiadas à mão, seus preços eram exorbitantes. No século XIV quase toda a Bíblia já havia sido traduzida. Mas essas traduções — produzidas por tradutores anônimos — continuavam sendo aquisições apenas dos ricos ou bem instruídos — os únicos que detinham os meios de obtê-las. Mesmo quando a impressão reduziu seu custo, a Bíblia, segundo o historiador Gigliola Fragnito, ainda era “acessível a poucos”.

Obs.: A ilustração acima refere-se a uma Bíblia rara do século XIII que ficou perdida durante 500 anos, presente agora na biblioteca da Catedral de Canterbury na Inglatera.

Exercício

1. Como se dava a leitura da Bíblia na Idade Média?
2. O que ensinavam os eruditos da Universidade de Pádua?
3. Por que mesmo as traduções bíblicas não chegavam ao povo?

Fontes de pesquisa
A História da Arte / Prof. E. H. Gombrich
Renascimento/ Nicholas Mann

8 comentaram em “A BÍBLIA SAGRADA E O LATIM (Aula nº 37)

  1. Marinalva Autor do post

    Lu
    A Bíblia foi traduzida para o latim por São Jerônimo, a pedido do papa Dâmaso I, só estando ao alcance dos religiosos e dos eruditos. Além do preço altíssimo havia a dificuldade do conhecimento da língua latina e uma série de regras dos mandatários e da Igreja que manipulavam e controlavam toda a sociedade da época. O conhecimento era repassado aos fiéis de modo simbólico e controlado. Mesmo após ser traduzida para a língua italiana, a Bíblia continuava inacessível em razão do alto preço. Numa época em que os direitos não existiam para os pobres, crianças e mulheres é de se esperar que o acesso aos livros também lhes fosse negados. Só podiam ter acesso ao que lhes era permitido. Hoje também existe muito do que se passou nesses tempos tão longínquos, basta só olharmos em volta.

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Marinalva

      A Bíblia cristã encontra-se hoje entre os livros mais vendidos no mundo, ao contrário daquela época em que o conhecimento era manipulado como forma de poder. O mais bizarro, passados tantos séculos, é que esse poder continua sendo exercido pelos espertalhões sobre os tolos que, embora tenham acesso a esse livro, preferem acreditar nas interpretações dos ladrões da boa fé dos ingênuos, cujo objetivo maior é o dinheiro. Quanto à restrição aos pobres, mulheres e crianças você escreveu com muita propriedade:

      “Numa época em que os direitos não existiam para os pobres, crianças e mulheres é de se esperar que o acesso aos livros também lhes fosse negados. Só podiam ter acesso ao que lhes era permitido.”

      Abraços,

      Lu

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  2. Antônio Costa

    Lu

    É incrível como as más intenções que permeiam a comunicação estavam presentes desde o inicio de sua criação. Surpreende ver como a Bíblia era inacessível à massa inculta, o que permitia a busca de outros meios para manipulá-la, a partir dos conhecimentos bíblicos estabelecidos. Hoje também assistimos a omissão de verdades em nome de “fake news”- tudo em nome de poder e interesses. É impressionante a percepção de tudo isto na linha do tempo! Muito bom o texto porque nos permite em leitura rápida absorver e analisar através do longo caminho temporal.

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    1. LuDiasBH Autor do post

      Antônio

      O mais lamentável é ver que a Bíblia cristã continua a servir de elemento de manipulação dos supostos “milagreiros” no que diz respeito aos intelectualmente pobres de conhecimento e dos pobres na extensão literal da palavra. Penso que o caso é muito mais sério hoje do que em tempos idos, pois o rebanho de idiotizados é extremamente maior. Há bons sites no YouTube (Diego Rox, Reinar Zera…) criticando tais abusos e dando nomes aos bois.

      Abraços,

      Lu

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  3. Moacyr Autor do post

    Lu
    O povo em todos os tempos não passa de massa de manobra, é por isso é que os poderosos fazem tudo para que ele não tenha acesso ao conhecimento. Não querem abrir mão do cabresto.

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    1. LuDiasBH Autor do post

      Moacyr

      Retirar o cabresto do povo é abrir mão do poder que esse próprio povo outorga. Quanta ironia! E o mais triste é que a Bíblia cristã, interpretada a bel prazer, vem se transformando num poderoso meio para enriquecer certas Igrejas que há muito tempo relegaram Cristo ao porão do submundo. Vendem até mesmo um grão de feijão por mil reais, prometendo curas milagrosas, quando seu discípulo mor busca hospitais de primeira linha para fazer tratamento do joelho.

      Abraços,

      Lu

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  4. Hernando Martins

    Lu
    Realmente o latim teve uma importância muito grande como língua mãe de várias outras que surgiram depois.

    A vida é dinâmica e está sempre em transformação, pois no universo nada é estático, tudo encontra-se em movimento. Mesmo uma rocha que aparentemente está parada, no mundo subatômico está em movimento, uma hora é onda e outra é partícula. Os gregos já enxergavam esse fenômeno, porque tinham olhos treinados para ver, eram os filósofos da época.

    A Bíblia Sagrada foi traduzida do aramaico para o latim que era a língua dominante da época e, com o passar do tempo foi diversificando com outras traduções em outros idiomas. Mesmo nesse período havia uma discriminação gritante em relação, principalmente às mulheres que eram consideradas seres inferiores, proibidas até mesmo de ler a Bíblia.O homem sempre utilizou do conhecimento para ampliar poder e separar as pessoas, criando distanciamento no sentido de controlar o outro, subjugar sua capacidade de discernimento.

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    1. LuDiasBH Autor do post

      Hernando

      O que quero deixar patente neste texto/aula era como o conhecimento era visto como um poder que deveria ser ministrado apenas a poucos, o que você afirma muito bem:

      “O homem sempre utilizou do conhecimento para ampliar poder e separar as pessoas, criando distanciamento no sentido de controlar o outro, subjugar sua capacidade de discernimento.”

      A Bíblia Sagrada = conhecimento = poder e, por isso, tinha que ser limitada apenas aos homens ricos (os únicos que falavam o latim). As mulheres e o povo miúdo ficava fora dessa matemática macabra. É uma pena que até parte do povo ainda não aprendeu que CONHECIMENTO é poder.

      Abraços,

      Lu

      As mulheres eram as maiores vítimas, pois, ainda que dominassem o latim, não tinham acesso à Bíblia. A luta feminina tem sido gigantesca através dos tempos. Veja você que até hoje, ainda que pontos diferentes, a luta continua.

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