ÁFRICA – CONVERSANDO COM UM TUAREGUE

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Autoria de Lu Dias Carvalho

tuar

Caros leitores, o jornalista catalão, Victor M. Amela, fez uma belíssima reportagem com o tuaregue Moussa Ag Assarid, que estuda Administração na Universidade de Montpellier, no sul da França. Não vou reproduzi-la na íntegra, porque vocês poderão encontrá-la muito facilmente na internet. Mas vou colher as principais informações contidas e colocá-las numa ordem que dê maior compreensão ao texto.

Nós, tuaregues, não portamos documentos ou conhecemos a própria idade. Não abrimos mão do turbante fino de algodão que nos cobre o rosto e nos possibilita ver e respirar através dele na imensidão do deserto. Somos chamados de homens azuis, porque o fino tecido do turbante índigo, mesclado com outros pigmentos naturais, ao desbotar, solta uma tinta azul que adere à pele, deixando-a com tons azulados. O azul, para os tuaregues, é a cor do mundo. É a cor dominante: a do céu e a do teto da nossa casa.

Nós somos um povo antigo do deserto, solitário e orgulhoso, que vive à própria sorte. Somos chamados de os Senhores do Deserto, única raça capaz de viver no infernal Saara. Usamos o alfabeto “tifinagh”. Somos calculados em cerca de três milhões e, apesar de todas as mudanças, a maioria permanece nômade, pastoreando seus rebanhos de camelos, cabras, cordeiros, vacas e asnos num reino feito de infinito e silêncio. Mas a população diminui. “É preciso que um povo desapareça para que percebamos que ele existia!” denunciou certa vez um sábio. Eu luto para preservar o meu povo.

O mundo dos tuaregues é o deserto imenso e silencioso, onde se pode ouvir o bater do próprio coração, quando se está sozinho. Não existe melhor lugar para quem deseja encontrar a si mesmo. Conservo com nitidez as recordações de minha infância: acordo com o sol. Perto de mim estão as cabras de meu pai. Elas nos dão leite e carne, nós as conduzimos onde existem água e grama… Assim fez meu bisavô, meu avô e meu pai… e eu. No mundo não havia nada, além disso, e eu era muito feliz assim!

As cabras nos dão leite e carne e são levadas, ali e acolá, em busca de pasto. Aos sete anos já é permitido à criança afastar-se do acampamento para aprender coisas que lhe serão importantes no deserto: farejar o ar, escutar, apurar a vista, orientar-se pelo sol e estrelas. E a se deixar ser conduzido pelo camelo. Caso se perca, o animal o levará aonde há água. Lá tudo é simples e profundo. Existem poucas coisas no deserto e cada uma delas possui grande valor. Lá, cada pequena coisa proporciona felicidade. Cada roçar é valioso. Sentimos uma enorme alegria pelo simples fato de nos tocarmos, de estarmos juntos! Lá ninguém sonha com chegar a ser, porque cada um já é.

Na cidade existem cartazes de mulheres nuas. Por que essa falta de respeito para com a mulher? Na cidade também existem torneiras de onde escorre a água. Que abundância e que desperdício, capazes de fazer um tuaregue chorar. A água para um tuaregue é sagrada. Até então, todos os dias da minha vida tinham sido dedicados à procura d’água. Até hoje, quando vejo as fontes e chafarizes decorativos que existem aqui, sinto uma dor imensa dentro de mim. Porque no começo dos anos 90 houve uma grande seca, os animais morreram, nós adoecemos… Eu tinha uns doze anos e minha mãe morreu. Ela era tudo para mim. Contava-me histórias e ensinou-me a contá-las bem. Ensinou-me a ser eu mesmo.

Convenci meu pai a me deixar frequentar a escola. Todos os dias eu caminhava quinze quilômetros para chegar até ela. Até que um professor arrumou uma cama para eu dormir, e uma senhora me dava comida quando eu passava em frente à sua casa. Entendi: era minha mãe que me ajudava.

Minha paixão pelos estudos nasceu dois anos antes, quando o rally Paris-Dakar passou pelo nosso acampamento, e caiu um livro da mochila de uma jornalista. Eu o apanhei e devolvi a ela. Mas ela me deu o livro de presente e disse que ele se chamava “O Pequeno Príncipe”. Naquele instante prometi a mim mesmo que um dia seria capaz de lê-lo… Foi assim que consegui uma bolsa para estudar na França.

 Do que mais tenho saudade é do leite de camela. E do fogo de madeira. E de caminhar descalço sobre a areia tépida. E das estrelas: lá, nós as admiramos todas as noites. Cada estrela é diferente da outra, como cada cabra é diversa da outra. Aqui, à noite, vocês ficam vendo televisão.

A insatisfação é a pior coisa que existe aqui. Vocês têm tudo, mas nada lhes é suficiente. Vivem se queixando. Na França passam a vida queixando-se. Vocês se acorrentam por toda a vida a um banco por causa de um empréstimo, e existe essa ânsia de possuir, essa correria, essa pressa. No deserto não existem engarrafamentos, sabe por quê? Porque lá ninguém quer passar à frente de ninguém!

Você me pergunta qual é o momento de maior felicidade no meu deserto. Digo-lhe que ele se repete a cada dia, duas horas antes do pôr-do-sol: o calor diminui e o frio da noite ainda não chegou. Homens e animais retornam lentamente ao acampamento e seus perfis aparecem como recortes contra o céu que se tinge de rosa, azul, vermelho, amarelo, verde… É fascinante! Esse é um momento mágico. Entramos todos na tenda e fervemos a água para o chá. Sentados, em silêncio, escutamos o barulho da água que ferve. A calma toma conta de nós. As batidas do coração entram no mesmo compasso dos gluglus da fervura.
Que paz! Aqui vocês têm o relógio; lá, nós temos o tempo.

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