EXAMINANDO OS OLHOS DOS ANJOS

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Autoria do Dr. Ivan Large

olho12

Pendurada na parede da minha sala, uma foto antiga, em preto e branco, de um homem com jaleco. É de um oftalmologista com quem eu tive o grande privilégio de conviver. Há dez anos, ele foi embora para um mundo melhor. Exerceu dignamente a sua profissão durante a vida toda. Só parou de trabalhar, quando adoeceu, uma semana antes de morrer, aos oitenta e dois anos de idade.

Não sei, nem ele mesmo talvez soubesse, se continuava trabalhando por amor à profissão ou porque não tinha condições financeiras de parar. Nem a aposentadoria ridícula, que recebia do Estado, após mais de cinquenta anos dedicados a tratar olhos num hospital para pobres, nem as magras economias honestamente acumuladas durante uma vida inteira de muitos sacrifícios eram suficientes para assegurar-lhe uma vida decente. O que eu sei é que trabalhar fazia parte da sua vida. Com mais de oitenta anos, cuidava dos seus pacientes com o mesmo entusiasmo que aos vinte.

Poucos anos antes de falecer, esse homem foi obrigado a suspender suas atividades, devido a uma fratura no quadril, que o manteve imobilizado na cama, durante mais de seis meses. Ele aceitou essa fatalidade com resignação e paciência, deitado num quarto improvisado atrás da sala, que lhe servia de consultório. Lá ficava, lendo e rezando na maior parte do tempo.

Lembro-me de que, certo dia, quando fui visitá-lo. Ele não estava sozinho. Tinha um homem sentado ao seu lado, com o rosto quase colado ao seu. Passado o primeiro momento de susto, pude constatar que o velho médico estava com o seu oftalmoscópio na mão, examinando o fundo do olho do visitante, que era de fato um paciente. Já tive muitas oportunidades de assistir ao exame de fundo de olho feito no leito de um paciente. Pela primeira e única vez na minha vida, eu tinha o privilégio de ver esse exame sendo realizado no leito do médico.

Um ano depois, já recuperado da sua fratura e de volta às suas atividades profissionais, o velho médico estava atendendo no seu consultório, quando chegou um homem, que se apresentou como paciente. De repente, o visitante tirou um revólver debaixo da sua camisa, enquanto revelava as suas verdadeiras intenções, num tom ameaçador:

– Eu sei que você guarda o seu dinheiro nessa gaveta. Dê-me toda a grana que há lá dentro, senão eu o mato!

O médico abriu a gaveta, mas, em vez de dinheiro, tirou um crucifixo sob o olhar consternado do assaltante, que não esperava tal reação.

– Com esta arma, não temo a sua! – replicou, referindo-se à pequena cruz que brandia na direção de seu rosto.

Frente a essa atitude irredutível, o ladrão tinha apenas duas alternativas: matar ou não matar. O que teria acontecido, se Judas, exercitando seu livre-arbítrio, e contrariando as profecias bíblicas, não tivesse entregado Jesus aos seus inimigos? O que teria acontecido, se o povo judaico, em vez de Barrabás tivesse pedido a soltura do Messias? O que aconteceu nesse pequeno consultório é que o ladrão escolheu não matar. Foi embora, furioso, sem usar a sua arma contra o velho médico e tratando-o de louco.

Aconteceu também que um dia, depois de ter escapado da morte, numa situação tão perigosa, o velho médico ficou doente, após tomar no jantar uma sopa um pouco indigesta. Essa indigestão, aparentemente simples, foi se complicando gradativamente até culminar com uma parada cardíaca da qual, dessa vez, ele não escapou. Era como se o destino, por causa da desistência do seu emissário, tivesse falido na execução do crime violento que tinha planejado. Teria então mudado os seus planos, resolvendo deixar a sua pobre vítima terminar os seus dias na paz que ele tanto merecia.

Olho com nostalgia este retrato amarelado pelo passar do tempo e imagino, sorrindo, meu velho pai, sentado numa nuvem, examinando os olhos dos anjos.

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