RAM MUNDA (11) – DEIXANDO A PELE DE DALIT

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Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun XI

Um policial aborda Ram Munda na calçada. Quer saber o porquê daquelas manchas vermelhas em suas vestes. Imagina que seja sangue, quando na verdade é o nitrato de prata. Como o nosso personagem (Marc Boulet) é daltônico, ainda não havia percebido a similaridade das cores. Leva-o até sua guarita, onde pede que levante o seu short marrom. Um suor frio escorre por sua espinha, com medo de que o homem peça-lhe para baixá-lo, pois, por baixo do lungi sua pele é branca. Mas não o faz. Diz apenas que ele não tem sangue. A seguir inspeciona o seu saco de andarilho. O medo aumenta, pois há dinheiro francês nele. O homem da lei nada percebe e o deixa ir embora.

Marc Boulet (Ram Munda) está transtornado pelo pavor. Medo de ser preso, temor de ser expulso, medo de apanhar, receio de que a sua identidade seja revelada e de que seu sacrifício tenha sido em vão. Foi informado de que vez ou outra há batida policial, e, que eles prendem todos os novatos. E os prendem até por dois anos e, para comer, dão dois pãezinhos diários, depois de baterem muito neles. Os policiais indianos odeiam indigentes, são extremamente malvados. Levanta-se do local e observa o Ganges de longe, brilhando como um colar de esmeraldas, indiferente ao sofrimento daquela gente.

Milhares de banhistas fazem suas abluções, dizendo palavras mágicas. Homens evacuam em um canto. Alto-falantes confusamente espalham cânticos religiosos e músicas de filme híndi. Búfalos negros espalham-se nas águas lamacentas, que batem na margem. Dezenas de meninos soltam pipas vermelhas e verdes. Cachorros copulam. Cabras ficam escornadas nas escadas. Macacos saltam de galho em galho ou entre a multidão, sendo que é preciso não olhar diretamente em seus olhos, pois podem atacar. Abutres giram no alto do céu. Golfinhos saltam no rio. Cadáveres de animais flutuam por toda parte. O odor dos excrementos é insuportável. Intocáveis lavam roupas neste esgoto imenso, a céu aberto e, depois, estendem-nas nas margens.

Nada há que fascine Ram Munda, ali! Sai a procura de um pan, que é excelente para matar a fome dos pobres. Faz salivar e entorpece o estômago. Ficou sabendo que realmente houve a batida policial e muitos mendigos foram retirados dos locais turísticos e presos. Percebeu que havia menos mendigos no rio Ganges no dia seguinte. Ele encontra um rapaz intocável, quando se dirige a um local, em que se distribui comida aos pobres (uma papa de arroz e lentilha). Fica sabendo que mesmo nesses lugares, o alimento é oferecido primeiro aos de castas consideradas superiores. O que sobrar fica para os aborígenes. Ram Munda não sabe dizer o que ficou de Gandhi no país, fora os nomes de ruas e retratos empoeirados nas escolas, templos e órgãos públicos da Índia.

O escritor Marc Boulet impressiona-se com a ausência dos direitos humanos no país indiano. Compreende que essa ausência dá-se em função do sistema de castas do hinduísmo. É um sistema social desumano de homens e sub-homens, que envenena a Índia em nome de Deus. E pior, os ocidentais só veem ali o espetáculo ritualístico, esquecendo-se da realidade por trás desse. Combatem o racismo e o antissemitismo no mundo, mas são tolerantes em relação ao sistema de castas. Consideram-no um patrimônio cultural indiano, assim como o Taj Mahal. Esquecem-se de que, mesmo como estrangeiros, são também considerados intocáveis. Ele não suporta essa desculpa cultural para o “castismo”. Reflete que o mesmo ponto de vista pode justificar o antissemitismo, como parte da cultura europeia. Pois tudo pode ser justificado.

O “castismo” é um sistema segregacionista assim como foi o “apartheid” na África do Sul. Em ambos, a cicatriz fica tatuada na pele até a morte. Assim como o pigmento que dá cor ao homem, a casta é indelével. Não há esperança de ascensão social. Os direitos e deveres são diferentes, de acordo com a origem do nascimento. Não se pode negar que a violência indiana brota com a discriminação das castas, exigida pelo hinduísmo. Não adianta os humanistas condenarem o abuso policial, sem condenar o hinduísmo. Ali, a expressão “direitos humanos” não tem sentido algum, pois não há respeito mútuo entre os cidadãos.

Seis semanas depois de sua metamorfose Marc Boulet liberta-se da pele de Ram Munda. Acabou! Agora está em casa ao lado de sua mulher. Abraçam-se e choram. Após cuidar de sua higiene, sente-se renascer como um homem de verdade, que vai ser respeitado por outros homens. Retorna a Paris. No patamar de sua casa encontra dois vagabundos sob a cobertura, tentando se proteger do frio. Pede-lhes licença para passar, mas não os enxota, o que teria feito antes de sua metamorfose.

Ram Munda continuará vivo dentro dele, para sempre.

A seguir o capítulo 12…

Nota: Imagem copiada de globomidia.com.br/entretenimento/pobre#

Fonte de pesquisa:
Na pele de um dalit/ Marc Boulet

2 comentaram em “RAM MUNDA (11) – DEIXANDO A PELE DE DALIT

  1. José Elias

    Lu
    Estas foram as palavras que mais me tocaram nos capítulos de “RAM MUNDA”:
    “Retorna a Paris. No patamar de sua casa encontra dois vagabundos sob a cobertura, tentando se proteger do frio. Pede-lhes licença para passar, mas não os enxota, o que teria feito antes de sua metamorfose.”.

    Agradeço-lhe, Lu, divulgar as experiências de Marc Boulet!

    José Elias

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      José Elias

      Também gosto muito desse final. Ao passar pela triste experiência, o escritor muda o seu modo de ver a vida. Ele também escreveu um livro em que se encontra na China, mas eu não consegui encontrar.

      E eu agradeço a sua presença querida no site, assim como seus comentários.

      Abraços,

      Lu

      Responder

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