{"id":1939,"date":"2013-03-02T11:04:04","date_gmt":"2013-03-02T14:04:04","guid":{"rendered":"http:\/\/virusdaarte.net\/?p=1939"},"modified":"2015-10-09T21:11:48","modified_gmt":"2015-10-10T00:11:48","slug":"rafael-sob-a-otica-de-pierre-santos-ii","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/virusdaarte.net\/rafael-sob-a-otica-de-pierre-santos-ii\/","title":{"rendered":"RAFAEL SOB A \u00d3TICA DE PIERRE SANTOS (II)"},"content":{"rendered":"

Autoria do Prof. <\/strong>Pierre Santos
\n<\/b><\/p>\n

\"virfol\"<\/a><\/p>\n

O fasc\u00ednio mais veemente desta pintura, Virgem de Foligno<\/i>, sobre nossa aten\u00e7\u00e3o \u00e9 exercido exatamente atrav\u00e9s da composi\u00e7\u00e3o. Em cima, a Virgem Maria com o Menino Jesus, n\u00e3o no colo, mas encostado (literalmente) no lado esquerdo do tronco da m\u00e3e, sustentado pelo bra\u00e7o dela, ambos rodeados por uma nuvem de anjinhos. Em baixo, S\u00e3o Jo\u00e3o Batista (que aqui, por uma esp\u00e9cie de licen\u00e7a po\u00e9tica, j\u00e1 aparece adulto, embora fosse da mesma idade de Cristo), S\u00e3o Francisco, um Querubim, o Comendador Segismundo Conti e S\u00e3o Jer\u00f4nimo. No fundo, uma vista da cidade de Foligno, exatamente como era ao tempo, focalizada num dia especial como um domingo, quando alguns habitantes, tendo assistido \u00e0 missa na igreja, que aparece a\u00ed bem \u00e0 frente da cidade (\u00e0 qual este quadro era destinado), sai passeando pela periferia, a fim de aproveitar o dia de folga e o estio do momento (pois antes havia certamente chovido), aben\u00e7oado por um belo arco-\u00edris, que se estende pelo c\u00e9u \u2013 e tudo isto muito bem definido por causa da clareza composicional, que tanto nos fascina, com base em impec\u00e1vel geometria.<\/p>\n

Para come\u00e7ar, isolou o conjunto sagrado dentro de um tri\u00e2ngulo de v\u00e9rtice bem alto, como dentro de uma redoma. Do meio da glabela da Virgem (glabela \u00e9 esse espa\u00e7o que existe entre as sobrancelhas do ser humano) parte uma linha fict\u00edcia, que passa pelo ded\u00e3o do p\u00e9 direito dela, pelo punho de S\u00e3o Francisco e vai morrer na ponta saliente da batina deste Santo. A linha do outro lado parte do mesmo ponto, passa pela parte de tr\u00e1s da perna esquerda do Menino Jesus, pelo meio da m\u00e3o esquerda de Conti e vai morrer na ponta da parte mais escura das dobras da t\u00fanica vermelha deste. A linha de base \u00e9 a que se estende deste \u00faltimo ponto descrito da dobra da t\u00fanica at\u00e9 \u00e0 dobra saliente do h\u00e1bito de Francisco. Pronto: est\u00e1 ressalvado o sacro ou aqueles que jamais estiveram tentados a pecar \u2013 a Virgem Maria, o Menino Jesus e o Querubim.<\/p>\n

Para incluir os outros quatro figurantes na composi\u00e7\u00e3o \u2013 S\u00e3o Jo\u00e3o Batista, S\u00e3o Francisco, Segismundo Conti e S\u00e3o Jer\u00f4nimo, sabendo-se que os tr\u00eas santos, antes de o serem, eram homens comuns e o outro personagem que a\u00ed aparece sempre foi um homem comum \u2013 Rafael<\/i> simplesmente empurrou o tri\u00e2ngulo descrito para as laterais, for\u00e7ando-o a transformar-se num pent\u00e1gono. Do mesmo ponto de que parte o tri\u00e2ngulo, parte tamb\u00e9m o pent\u00e1gono. Seu lado direito com rela\u00e7\u00e3o \u00e0 Virgem (esquerdo para quem est\u00e1 de frente para o quadro) passa pela ponta aparentemente casual da sali\u00eancia do manto de Maria, que se destaca em \u00e2ngulo contra o sol laranja e vai at\u00e9 um ponto situado atr\u00e1s da axila direita de Batista; descendo da\u00ed, passa pelo indicador de Francisco a vai at\u00e9 o centro da \u00faltima flor quase apagada do tufo que est\u00e1 na base.<\/p>\n

Do lado esquerdo da M\u00e3e de Deus, a linha passa na ponta do olho esquerdo de Jesus, na ponta de seu polegar esquerdo e vai at\u00e9 um ponto ligeiramente abaixo do ombro de Jer\u00f4nimo; da\u00ed, passa pela manga branca esquerda do Santo, pelo v\u00e9rtice do \u00e2ngulo vermelho formado pela capa de Conti ao encontro da manga preta, e vai at\u00e9 a metade da parte final do tufo floral, na base do quadro. Pronto: todos os figurantes foram englobados, exceto o le\u00e3o, s\u00edmbolo de S\u00e3o Jer\u00f4nimo, que, estando em espa\u00e7o neutro, n\u00e3o interfere no todo.<\/p>\n

\u00a0Mas ainda n\u00e3o \u00e9 tudo. Um quadro assim t\u00e3o amplo, de acordo com os r\u00edgidos princ\u00edpios formais, que a Renascen\u00e7a impunha aos seus artistas, exige a fixa\u00e7\u00e3o de um eixo de equil\u00edbrio, que atenda a todos os pesos distribu\u00eddos pelo quadro. Ora, neste em discuss\u00e3o, o espa\u00e7o ocupado por Jesus, Jer\u00f4nimo, o le\u00e3o e o Comendador \u00e9 maior do que o outro lado, ocupado por Maria, Batista e Francisco. Este fato poderia deixar o lado direito mais pesado, desequilibrando o conjunto. Mas Rafael pensou em tudo: descreveu de alto a baixo, em ligeira diagonal, uma linha que, vinda l\u00e1 de cima, passa pelo olho esquerdo de Jesus, pelo \u00e2ngulo existente na jun\u00e7\u00e3o de suas perninhas, pela ponta do vestido vermelho de Maria, pelo olho esquerdo do Querubim, pela ponta de seu pintinho (depois dizem que os anjos n\u00e3o t\u00eam sexo…), pelo \u00faltimo galhinho de flor acima da linha limite do tufo e morre na base do quadro. Este eixo na diagonal deixa o lado direito da superf\u00edcie menor, pondo em destaque o outro lado, que assim se valoriza ao igualar-se em peso com o outro, no que \u00e9 de grande ajuda o passo para diante dado pelo Querubim com o p\u00e9 direito. A\u00ed est\u00e1 mais um exemplo das m\u00e1gicas sempre realizadas pelo mago das Stanzi.<\/p>\n

Todavia, ainda continua a n\u00e3o ser tudo. Voc\u00ea descreveu em seu texto a curva na qual est\u00e3o inscritas as cabe\u00e7as dos figurantes da parte inferior, incluindo a do Querubim. Na parte superior tamb\u00e9m h\u00e1 uma curva: a descrita pelos anjinhos em torno do sol que aureola Maria e seu Filho. Elas s\u00e3o exatamente curva e contracurva, pois n\u00e3o se unem numa circunfer\u00eancia, no que s\u00e3o impedidas pela cruz-cajado de Batista, pelas pernas da Virgem e pelo espa\u00e7o vazio entre a cabe\u00e7a de Jer\u00f4nimo e o c\u00e9u acima. O friso recurvo dos anjos exerce press\u00e3o para baixo e a curva inferior ali se disp\u00f5e para receber o que desce do c\u00e9u e formalizar o di\u00e1logo simb\u00f3lico entre as duas partes, complementando nesta correspond\u00eancia o equil\u00edbrio da composi\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

\u00a0Finalmente, s\u00f3 para concluir esta parte, vejamos uma derradeira m\u00e1gica do renascentista, realizada tamb\u00e9m na obra em discuss\u00e3o. Tudo a\u00ed nos parece t\u00e3o natural e \u00e9 t\u00e3o f\u00e1cil a intera\u00e7\u00e3o com cada forma existente no quadro, principalmente quando se trata de seres humanos, que o espectador se sente num conv\u00edvio \u00edntimo com tudo aquilo, como se estivesse participando da cena. A empatia estabelecida entre as partes celeste e terrestre \u00e9 t\u00e3o comunicativa e envolvente, que chega a parecer-nos corriqueiro o prod\u00edgio a\u00ed em desenvolvimento. Mas assim n\u00e3o \u00e9. Nunca testemunhamos uma apari\u00e7\u00e3o desta ordem, na qual tantos seres sagrados estivessem envolvidos, n\u00e3o \u00e9 mesmo? Vejamos, pois, do que nos vem esta sensa\u00e7\u00e3o. As linhas composicionais, as figuras geom\u00e9tricas de base, a gesticula\u00e7\u00e3o dos personagens, a inten\u00e7\u00e3o direcional dos olhares, etc, por si j\u00e1 nos d\u00e3o esta sensa\u00e7\u00e3o. Mas, al\u00e9m disso, o pintor facilita ainda mais tudo isto.<\/p>\n

Observemos como as pequenas asas do Querubim comp\u00f5em com os tufos de vegeta\u00e7\u00e3o existentes para al\u00e9m de sua cabe\u00e7a um diminuto semic\u00edrculo, que \u00e9 repetido em tamanho bem maior no arco-\u00edris e repetido em tamanho maior ainda no sol alaranjado atr\u00e1s da Virgem (a prop\u00f3sito, a Virgem \u00e9 imensa, bem maior que o sol \u2013 e isto em nada nos incomoda…). O crescimento apontado dessas formas se d\u00e1 em c\u00edrculos conc\u00eantricos, que v\u00e3o crescendo at\u00e9 o infinito \u2013 eis a sensa\u00e7\u00e3o que temos. Enfim, os anjinhos trouxeram a Virgem com o Menino Jesus; agora os c\u00edrculos conc\u00eantricos est\u00e3o se encarregando de ascend\u00ea-los, como tamb\u00e9m ao Querubim, para o espa\u00e7o celeste. Os personagens daqui a pouco ir\u00e3o para onde devam ir e n\u00e3o nos restar\u00e1 a ver, sen\u00e3o a paisagem de Foligno. A visita de Maria com seu Filho acabou.<\/p>\n

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