{"id":20812,"date":"2015-09-28T00:21:35","date_gmt":"2015-09-28T03:21:35","guid":{"rendered":"http:\/\/virusdaarte.net\/?p=20812"},"modified":"2015-10-10T21:02:46","modified_gmt":"2015-10-11T00:02:46","slug":"a-morte-da-loba","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/virusdaarte.net\/a-morte-da-loba\/","title":{"rendered":"A MORTE DA LOBA"},"content":{"rendered":"

Autoria do Dr. Ivan T. Large<\/strong><\/p>\n

\"cerebro123456\"<\/a><\/p>\n

Pacientes com as mais diversas profiss\u00f5es sucedem-se na minha sala. O homem sentado agora \u00e0 minha frente \u00e9 professor de filosofia, como consta na sua ficha. Mas ele n\u00e3o esconde que tem outra profiss\u00e3o que n\u00e3o consta ne1a: artista transformista. Esse dualismo faz-me reviver uma noite remota, quando um velho professor experimentou o maior desapontamento da sua vida.<\/p>\n

\u00c9 uma noite quente. No canto de uma imensa sala, um potente alto-falante vomita, a todo volume, uma m\u00fasica em l\u00edngua espanhola, no ritmo endiabrado de uma salsa. Ela conta a hist\u00f3ria de um sujeito, ao qual um m\u00e9dico teria dado apenas tr\u00eas meses de sobrevida por causa de uma doen\u00e7a incur\u00e1vel. Sem duvidar, nem um segundo, do inexor\u00e1vel progn\u00f3stico, nosso condenado resolve aproveitar os seus \u00faltimos dias da melhor maneira poss\u00edvel. Consegue nesse prazo, gastar agradavelmente todas as suas economias. No termo dos tr\u00eas meses, o “moribundo”, mais vivo que nunca e aparentemente cheio de sa\u00fade, a deduzir pela pot\u00eancia do seu timbre, mas na mais completa pen\u00faria, expressa o seu desespero neste refr\u00e3o, onde interpela veementemente seu m\u00e9dico num tom reprovador: “Oh! Oh! Oh! Oh doutor!”<\/p>\n

A infelicidade de nosso “epicurista” n\u00e3o parece muito preocupar um grupo de charmosas mo\u00e7as, a julgar pelo alegre rebolado executado em cad\u00eancia e valorizado pela minissaia apertada, sob o olhar atento de clientes potenciais. A m\u00fasica alta, a luz p\u00e1lida, o ar pesado, impregnado de um perfume ou para ser mais preciso de uma mistura de perfumes, a cara dos clientes, os seus olhares desabusados, a atitude debochada das mo\u00e7as insinuando-se no meio dos clientes sentados \u00e0s mesas cambadas, cheias de garrafas vazias ao lado de copos sujos, onde moscas atrevidas v\u00eam para descansar e saciar a sede. Todos esses ingredientes associam-se para compor um ambiente da mais pura decad\u00eancia, digno das casas chamadas de “toler\u00e2ncia” ou simplesmente \u201cbord\u00e9is\u201d.<\/p>\n

De repente, o ambiente muda. As poucas luzes da sala apagam-se, enquanto o foco de um projetor ilumina um palco, onde um apresentador anuncia que vai come\u00e7ar o espet\u00e1culo t\u00e3o esperado da noite. Uma morena aparece, e come\u00e7a a desabotoar lentamente o seu vestido de cetim vermelho, desvendando as suas formas apetitosas, ao som de uma m\u00fasica de Michael Jackson. Ao final da m\u00fasica, ap\u00f3s livrar-se da \u00faltima pe\u00e7a da sua roupa de baixo, um min\u00fasculo tapa-sexo dourado, em forma de estrela, foge “pudicamente” da cena sob os aplausos fren\u00e9ticos de uma plateia delirante.<\/p>\n

O apresentador interrompe essa manifesta\u00e7\u00e3o de entusiasmo, anunciando a pr\u00f3xima atra\u00e7\u00e3o:<\/p>\n

– Diretamente das maiores casas de espet\u00e1culo do mundo, \u00fanica, maravilhosa, mirabolante artista de fama internacional: a Loba!<\/p>\n

Parecendo mais faminta que famosa, o rosto emaciado recoberto por uma espessa camada de maquiagem, misturada com o suor, pingando em abund\u00e2ncia, sob a luz forte do projetor, a Loba, que, na verdade, responde ao nome de batismo de George Gomes, vestida com um traje de noite mais brilhante que uma \u00e1rvore de Natal, desfila lascivamente, sem despertar o menor interesse de um p\u00fablico vindo para admirar de prefer\u00eancia a sensual magia das formas femininas.<\/p>\n

Quais sentimentos poderia um espet\u00e1culo de transformismo inspirar aos integrantes da conservadora sociedade afro-latino-americana haitiana dos anos oitenta? Curiosidade a alguns, piedade a outros, nojo e desprezo \u00e0 maioria. Mas e esse homem? Sim, ele: esse pequeno velho vestido de um terno amarrotado e cerzido, segurando entre os dedos tr\u00eamulos, um pequeno copo de cacha\u00e7a, a caminho dos seus l\u00e1bios entreabertos de onde sai uma l\u00edngua saburrenta, a fim de recolher a saliva que pinga no canto da sua boca, fixando, como hipnotizado, a apari\u00e7\u00e3o que o deixa \u00e9brio de amor e de paix\u00e3o? Paix\u00e3o! Eu disse: paix\u00e3o? N\u00e3o pode ser poss\u00edvel!<\/p>\n

Como mestre Damocl\u00e9s Justo, respeit\u00e1vel professor de latim e grego no col\u00e9gio estadual, homem pobre, mas digno, b\u00eabado inveterado, mas defensor incondicional da moral e dos bons costumes poderia, contrariando as leis b\u00e1sicas da natureza, entregar-se a uma paix\u00e3o homossexual? Todavia, nessa noite quente, nesse antro de perdi\u00e7\u00e3o, sob os olhares incr\u00e9dulos, zombadores, enojados, as evid\u00eancias parecem contradizer a raz\u00e3o.<\/p>\n

Mestre Damocl\u00e9s \u00e9 insens\u00edvel a esses olhares. N\u00e3o os v\u00ea! Insens\u00edvel aos sarcasmos. N\u00e3o os escuta! O calor do bordel n\u00e3o o incomoda. N\u00e3o est\u00e1 num bordel! Est\u00e1 numa floresta encantada. Um vento fresco acaricia seu rosto. O perfume delicado dos jasmins enche agradavelmente suas narinas. Um castelo ergue-se na \u00e0frente. Em cima do castelo, no meio de uma torre imponente, destaca-se uma pequena janela, onde a luz fraca de uma vela ilumina o tenro rosto de um ser que ele admira no sil\u00eancio da estrela das suas noites: a Loba, a mais sensual, linda, charmosa mu1her. O qu\u00ea? A Loba ou mais precisamente George Gomes, uma mulher! Sim, pelo menos nos olhos de mestre Damocl\u00e9s.<\/p>\n

Os olhos de nosso acad\u00eamico n\u00e3o t\u00eam mais a acuidade da sua juventude. Uma catarata por aqui, \u00f3culos escolhidos no tabuleiro de um vendedor ambulante, sem a devida prescri\u00e7\u00e3o de um oftalmologista por l\u00e1, sem contar o efeito da cacha\u00e7a e pronto. A vis\u00e3o do nosso septuagen\u00e1rio n\u00e3o \u00e9 das mais apuradas. E como a vista \u00e9 a porta da imagina\u00e7\u00e3o, por essa porta defeituosa, a Loba havia penetrado sob a forma sedutora de uma Sofia Loren. E por mais incr\u00edvel que pare\u00e7a, nunca, mesmo nos seus escassos momentos de n\u00e3o embriaguez, mestre Damocl\u00e9s Justo havia duvidado da feminilidade da sua Dulcin\u00e9ia.<\/p>\n

A Loba est\u00e1 no meio da sua performance: mexe sensualmente os l\u00e1bios atr\u00e1s de um microfone desligado, enquanto um alto-falante cospe uma m\u00fasica onde uma voz em “play-back” de mulher tra\u00edda grita palavras de \u00f3dio contra o amante infiel. A nossa artista interpreta o papel de mulher raivosa com toda a for\u00e7a de seu cora\u00e7\u00e3o. Parece um drag\u00e3o furioso. Com o olhar em chamas, ela ergue um punho vingador na dire\u00e7\u00e3o do p\u00fablico. Nesse exato momento, a sua abundante peruca negra havendo-se agarrado, por inadvert\u00eancia, \u00e0 sua pulseira, segue o movimento brusco do membro vingativo para descrever uma trajet\u00f3ria no ar que termina sobre a cabe\u00e7a branca do professor apaixonado. Um del\u00edrio de gargalhadas levanta o p\u00fablico.<\/p>\n

O mestre Damocl\u00eas fica mudo de estupefa\u00e7\u00e3o. Os l\u00e1bios tr\u00eamulos, vendo surgir, desesperado, a faces dura e careteira de um George Gomes, enquanto cai a m\u00e1scara encantadora da Loba. Uma l\u00e1grima amarga escoa dos seus olhos cansados. A “sua” Loba est\u00e1 morta.<\/p>\n

Views: 1<\/p>","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Autoria do Dr. Ivan T. Large Pacientes com as mais diversas profiss\u00f5es sucedem-se na minha sala. O homem sentado agora \u00e0 minha frente \u00e9 professor de filosofia, como consta na sua ficha. Mas ele n\u00e3o esconde que tem outra profiss\u00e3o que n\u00e3o consta ne1a: artista transformista. Esse dualismo faz-me reviver uma noite remota, quando um […]<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"sfsi_plus_gutenberg_text_before_share":"","sfsi_plus_gutenberg_show_text_before_share":"","sfsi_plus_gutenberg_icon_type":"","sfsi_plus_gutenberg_icon_alignemt":"","sfsi_plus_gutenburg_max_per_row":"","_monsterinsights_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false,"footnotes":""},"categories":[16],"tags":[],"aioseo_notices":[],"jetpack_featured_media_url":"","jetpack_sharing_enabled":true,"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/20812"}],"collection":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=20812"}],"version-history":[{"count":2,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/20812\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":21316,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/20812\/revisions\/21316"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=20812"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=20812"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=20812"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}