<\/a><\/strong><\/p>\nDepois da sa\u00edda de um jovem casal\u00a0portador do v\u00edrus da AIDS (SIDA) do meu consult\u00f3rio, eu continuei pensando nesta terr\u00edvel doen\u00e7a que apareceu de maneira t\u00e3o aterradora, vinte anos atr\u00e1s. Na \u00e9poca, eu fazia meu est\u00e1gio de dois meses, como interno, no departamento de cl\u00ednica m\u00e9dica do Hospital da Universidade do Estado de Haiti, centro de refer\u00eancias, aonde chegavam os casos mais graves, oriundos do pa\u00eds inteiro.<\/p>\n
Meus colegas e eu, todos rec\u00e9m-formados, t\u00ednhamos a responsabilidade \u00edmpar de salvar uma multid\u00e3o de vidas humanas amea\u00e7adas por doen\u00e7as, que precis\u00e1vamos identificar com rapidez, e combater com os poucos recursos de que disp\u00fanhamos. Nossa principal arma era o exame cl\u00ednico, do qual precis\u00e1vamos extrair o m\u00e1ximo de informa\u00e7\u00f5es, que conduzissem a um diagn\u00f3stico, j\u00e1 que os exames complementares, colocados \u00e0 nossa disposi\u00e7\u00e3o, eram limitados. Com uma radiografia tor\u00e1cica borrada numa m\u00e3o, e, na outra, alguns exames laboratoriais de amostras de sangue e fezes, colhidas \u00e0s pressas, tent\u00e1vamos corroborar nossos achados cl\u00ednicos, a fim de iniciar o tratamento com as poucas drogas dispon\u00edveis na farm\u00e1cia do hospital. Algumas vezes sa\u00edamos vencedores dessa luta desigual, mas t\u00ednhamos pouco tempo para congratula\u00e7\u00f5es, pois outro contingente estava chegando, dando in\u00edcio a novas lutas, cujo desfecho infeliz acontecia com uma frequ\u00eancia cada vez maior.<\/p>\n
Atribu\u00edamos o insucesso \u00e0 falta de recursos e \u00e0 nossa inexperi\u00eancia, que tent\u00e1vamos compensar, pesquisando nos livros de medicina e nas revistas a que t\u00ednhamos acesso. Entretanto, a literatura n\u00e3o trazia uma resposta satisfat\u00f3ria \u00e0s nossas quest\u00f5es. N\u00e3o encontr\u00e1vamos, por exemplo, descritos em nenhum lugar, casos como os desses pacientes, que chegavam num estado geral calamitoso, com uma magreza cadav\u00e9rica, diarreia profusa, a pele inteira coberta de manchas, a boca cheia de placas brancas e na radiografia do t\u00f3rax, a imagem de uma infec\u00e7\u00e3o pulmonar generalizada. O mais intrigante \u00e9 que esses casos, que escapavam da nossa compreens\u00e3o, e desafiavam o conhecimento de todos, inclusive de nossos professores, eram cada vez mais frequentes.<\/p>\n
Certo dia, tivemos uma resposta \u00e0s nossas indaga\u00e7\u00f5es. N\u00e3o imagin\u00e1vamos, quando fomos reunidos para uma comunica\u00e7\u00e3o importante, que est\u00e1vamos testemunhando um acontecimento que modificaria radicalmente a vida na Terra. Foi lida a primeira descri\u00e7\u00e3o, relatada na literatura m\u00e9dica, de uma doen\u00e7a id\u00eantica a que enfrent\u00e1vamos. Era ela a AIDS (SIDA), s\u00edndrome de imunodefici\u00eancia adquirida ou a doen\u00e7a dos quatro H, porque atingia H<\/em>omossexuais, usu\u00e1rios de H<\/em>ero\u00edna, H<\/em>emof\u00edlicos e H<\/em>aitianos. Segundo o trabalho cient\u00edfico, o simples fato de sermos haitiano fazia-nos correr o risco de contra\u00ed-la. Sendo transmitida pelo sangue, o risco de ser infectado era maior nos hemof\u00edlicos, submetidos a repetidas transfus\u00f5es de sangue nos usu\u00e1rios de hero\u00edna, que compartilhavam agulhas contaminadas, e nos homossexuais, cujas rela\u00e7\u00f5es eram mais traum\u00e1ticas que nos heterossexuais. Por\u00e9m, n\u00e3o conhec\u00edamos nenhuma forma de troca de sangue espec\u00edfica para os haitianos.<\/p>\nEm nenhum instante, a impressionante reputa\u00e7\u00e3o dos autores do artigo fez-nos concordar com o que acredit\u00e1vamos ser uma pura bobagem, em rela\u00e7\u00e3o aos haitianos, que o tempo encarregar-se-ia de comprovar. Contudo, o mundo inteiro acreditou neles, como tinha acreditado, cinco s\u00e9culos antes, que a s\u00edfilis era uma doen\u00e7a dos nativos do Novo Mundo, trazida ao mundo civilizado, ap\u00f3s a viagem de Crist\u00f3v\u00e3o Colombo. A conclus\u00e3o de que o simples fato de ser haitiano constitu\u00eda um fator de risco devia-se a uma falha na metodologia empregada no estudo. Os pesquisadores encontraram um grande n\u00famero de haitianos, portadores da doen\u00e7a, que n\u00e3o eram hemof\u00edlicos, n\u00e3o faziam uso de hero\u00edna e n\u00e3o eram homossexuais, como diziam. Do que eles n\u00e3o se deram conta \u00e9 que a mentalidade machista dos haitianos questionados n\u00e3o os deixava admitir que fossem homossexuais, j\u00e1 que mantinham tais rela\u00e7\u00f5es apenas por dinheiro. Os cientistas conclu\u00edram e afirmaram que os haitianos representavam um grupo de risco. Como eram os donos da verdade, ningu\u00e9m atreveu-se a contradiz\u00ea-los. E quem se importaria em defender a reputa\u00e7\u00e3o de um povo constitu\u00eddo na sua grande maioria de miser\u00e1veis e, antes de tudo, negros?<\/p>\n
Esta conclus\u00e3o errada teve consequ\u00eancias imprevis\u00edveis para meu pa\u00eds. Antes do aparecimento da Aids, o Haiti, apesar de ser um pa\u00eds muito pobre, tinha no turismo o seu \u00fanico recurso econ\u00f4mico. Uma natureza privilegiada com montanhas luxuriantes e praias quase selvagens, banhadas pela \u00e1gua morna do mar dos tr\u00f3picos, uma cultura tradicional trazida da \u00c1frica, no tempo da escravatura, uma arte pict\u00f3rica primitiva, multicolorida, elogiada pelos cr\u00edticos de arte, eram os ingredientes que atraiam turistas em busca de exotismo. Existia outro ingrediente subestimado na \u00e9poca – o turismo sexual, j\u00e1 que tudo (em mat\u00e9ria de sexo) era permitido nessa terra sem leis, a n\u00e3o ser as que poderiam amea\u00e7ar a perenidade da ditadura no poder.<\/p>\n
As conclus\u00f5es do estudo cient\u00edfico foram amplamente divulgadas no mundo inteiro, e interpretadas como um aumento do risco de contrair AIDS o simples contato com os haitianos. Isso significou o fim do turismo no pa\u00eds e, consequentemente, da sua \u00fanica fonte econ\u00f4mica. O empobrecimento ainda pior do povo haitiano repercutiu de maneira negativa nas rendas da fam\u00edlia dos Duvalier, que acumulavam imensas fortunas \u00e0 custa dele. Era precisava encontrar outra fonte de renda para substituir o turismo decadente. A posi\u00e7\u00e3o estrat\u00e9gica do pa\u00eds forneceu aos dirigentes uma solu\u00e7\u00e3o para o angustiante problema. Ao examinar um mapa, constatou-se que o Haiti situava-se numa linha imagin\u00e1ria que vai da Col\u00f4mbia a Miami. Com sua situa\u00e7\u00e3o privilegiada, o pa\u00eds tornou-se uma parada obrigat\u00f3ria na rota do tr\u00e1fico de drogas. De novo voltaram a prosperar os neg\u00f3cios da fam\u00edlia Duvalier, que recebia vultosas propinas dos traficantes de droga, que encontraram nessa terra paradis\u00edaca um porto seguro entre Medel\u00edn e a Fl\u00f3rida.<\/p>\n
Tudo ia da \u201cmelhor\u201d maneira no \u201cmelhor\u201d dos mundos, at\u00e9 que outro estudo cient\u00edfico, comparando o desempenho dos estudantes americanos com o dos japoneses, concluiu pela superioridade desses \u00faltimos. Outro estudo concluiu que o uso de drogas nas escolas americanas era a causa do desempenho insatisfat\u00f3rio de seus alunos. O Pent\u00e1gono decidiu ent\u00e3o que era preciso combater a entrada de drogas nos EUA. Um dos meios escolhidos foi interromper a rota do tr\u00e1fico, colocando um termo aos trinta anos de ditadura da fam\u00edlia dos Duvalier. O resto, o mundo j\u00e1 sabe…<\/p>\n
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Autoria de Ivan Large Depois da sa\u00edda de um jovem casal\u00a0portador do v\u00edrus da AIDS (SIDA) do meu consult\u00f3rio, eu continuei pensando nesta terr\u00edvel doen\u00e7a que apareceu de maneira t\u00e3o aterradora, vinte anos atr\u00e1s. Na \u00e9poca, eu fazia meu est\u00e1gio de dois meses, como interno, no departamento de cl\u00ednica m\u00e9dica do Hospital da Universidade do […]<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"sfsi_plus_gutenberg_text_before_share":"","sfsi_plus_gutenberg_show_text_before_share":"","sfsi_plus_gutenberg_icon_type":"","sfsi_plus_gutenberg_icon_alignemt":"","sfsi_plus_gutenburg_max_per_row":"","_monsterinsights_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false,"footnotes":""},"categories":[16],"tags":[],"aioseo_notices":[],"jetpack_featured_media_url":"","jetpack_sharing_enabled":true,"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/25668"}],"collection":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=25668"}],"version-history":[{"count":4,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/25668\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":25722,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/25668\/revisions\/25722"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=25668"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=25668"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=25668"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}