{"id":27820,"date":"2016-05-20T13:17:48","date_gmt":"2016-05-20T16:17:48","guid":{"rendered":"http:\/\/virusdaarte.net\/?p=27820"},"modified":"2022-08-14T20:44:34","modified_gmt":"2022-08-14T23:44:34","slug":"historiando-chico-buarque-apesar-de-voce","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/virusdaarte.net\/historiando-chico-buarque-apesar-de-voce\/","title":{"rendered":"Historiando Chico Buarque \u2013 APESAR DE VOC\u00ca"},"content":{"rendered":"

Autoria de Lu Dias Carvalho
\n<\/strong><\/p>\n

\"Portinari<\/a><\/b><\/p>\n

Apesar de voc\u00ea\/ Amanh\u00e3 h\u00e1 de ser\/ Outro dia\/ Voc\u00ea vai se dar mal\/ Etc. e tal.\u201d (Chico Buarque)<\/b><\/em><\/p>\n

O pr\u00edncipe velho, invejoso e mau, com cara de bom av\u00f4, tramou dia e noite para derrubar a rainha de seu reino, mal ela dele tomara posse. Seu maior sonho era ser rei, ainda que por alguns meses. O mau-car\u00e1ter aliou-se aos cr\u00e1pulas, calhordas, canalhas e tudo que havia de pior no seu reino, a fim de chegar ao trono. E tanto urdiu, teceu, forjicou e entrela\u00e7ou os fios da disc\u00f3rdia e da malqueren\u00e7a que nem mesmo o conselho, composto por homens, at\u00e9 ent\u00e3o considerados doutos, predisp\u00f4s-se a intervir na defesa da soberana. Ao contr\u00e1rio, o conselho tamb\u00e9m tramou ardilezas e deslizes para levar o pr\u00edncipe-mau ao poder. Tanto \u00e9 que a rainha e seu povo n\u00e3o deram mais ouvidos \u00e0queles que outrora eram tidos como os s\u00e1bios do reino. Estavam manchados pela parcialidade e comprometimento com as injusti\u00e7as. N\u00e3o mais mereciam ser vistos como bons ju\u00edzes na defesa do reino. O fato \u00e9 que a rainha foi afastada de seu trono sob a desculpa de que deveria se defender, quando na verdade tudo j\u00e1 se encontrava tramado, tecido, urdido, convencionado, manipulado, maquinado e decidido.<\/p>\n

Nas ruas e em suas humildes casas, os camponeses choravam a trai\u00e7\u00e3o enredada. Tinham a certeza de que tempos turbulentos viriam para eles, os reais edificadores do reino, e dias ben\u00e9ficos seriam propiciados aos amigos do pr\u00edncipe-mau, sugadores do suor dos humildes. Entre l\u00e1grimas cantaram para o pr\u00edncipe invejoso: \u201cHoje, voc\u00ea \u00e9 quem manda\/ Falou, t\u00e1 falado\/ N\u00e3o tem discuss\u00e3o\/ A minha gente hoje anda\/ Falando de lado\/ E olhando pro ch\u00e3o, viu\u201d<\/em>. Mas alguns homens e mulheres mais esclarecidos complementaram que a can\u00e7\u00e3o tamb\u00e9m deveria ser direcionada ao conselho de doutos do reino, que n\u00e3o se posicionara como era de seu dever, sendo, portanto, o maior respons\u00e1vel pelos ardilosos fatos em andamento. E ao conselho foram dirigidos os versos: \u201cVoc\u00ea que inventou esse estado\/ E inventou de inventar\/ Toda a escurid\u00e3o\/ Voc\u00ea que inventou o pecado\/ Esqueceu-se de inventar\/ O perd\u00e3o\u201d<\/em>. \u00a0Agora, que buscasse luz para a escurid\u00e3o em que ajudara imergir o reino e seu povo mais carente.<\/p>\n

Com o afastamento da rainha, o homem-mau e seus comparsas, muitos deles h\u00e1 muito tempo merecendo ver o sol nascer quadrado, mas a quem foram confiados honor\u00edficos cargos com a coniv\u00eancia do conselho de doutos, que de tudo tinha conhecimento, puseram-se a tripudiar sobre a rainha e os camponeses. Festejaram em suas luxuosas mans\u00f5es com bebidas caras, importadas de reinos mais poderosos, sob o tilintar de ta\u00e7as de cristal, durante dias e noites. Mas o povo campon\u00eas n\u00e3o se deu por vencido. A guerra ainda poderia ser ganha, se todos os fracos juntassem as m\u00e3os, uma vez que perfaziam a maioria. E assim, ap\u00f3s o trabalho, essa gente passou a reunir-se nas ruas e pra\u00e7as, gritando contra a vingan\u00e7a perpetrada pelo velho pr\u00edncipe e sua gangue do mal: \u201cApesar de voc\u00ea\/ Amanh\u00e3 h\u00e1 de ser\/ Outro dia\/ Eu pergunto a voc\u00ea\/ Onde vai se esconder\/ Da enorme euforia\/ Como vai proibir\/ Quando o galo insistir\/ Em cantar\/ \u00c1gua nova brotando\/ E a gente se amando\/ Sem parar\u201d<\/em>. Nada como um dia atr\u00e1s do outro. Todos haveriam de pagar caro pela guerra \u00e0 rainha, declarada.<\/p>\n

Os camponeses passaram a contar com a ajuda de muitos intelectuais, artistas, estudantes, m\u00eddia alternativa e pessoas de bom cora\u00e7\u00e3o, tamb\u00e9m v\u00edtimas do despreparo, prepot\u00eancia e descontrole do pr\u00edncipe-mau, que continua na posse do reino, urdindo, com seus sequazes, cru\u00e9is e est\u00fapidas mudan\u00e7as a serem jogadas no lombo do povo humilde. Dizem os tais, que at\u00e9 que ir\u00e3o construir uma ponte sem volta para o reino. Mas nas ruas, promessas a eles s\u00e3o dirigidas, dia ap\u00f3s dia, pelo povo injuriado: \u201cQuando chegar o momento\/ Esse meu sofrimento\/ Vou cobrar com juros, juro\/ Todo esse amor reprimido\/ Esse grito contido\/ Este samba no escuro\/ Voc\u00ea que inventou a tristeza\/ Ora, tenha a fineza\/ De desinventar\/ Voc\u00ea vai pagar e \u00e9 dobrado\/ Cada l\u00e1grima rolada\/ Nesse meu penar\u201d.<\/em> At\u00e9 as crian\u00e7as do reino sabem que nada fica impune neste mundo de meu Deus. Mais cedo ou mais tarde a cobra fuma para o lado do malfeitor e seu s\u00e9quito. Tudo \u00e9 quest\u00e3o de tempo, pois algo ruim e podre encontra-se a caminho, conforme informa o or\u00e1culo do reino. Quem viver ver\u00e1 que toda gl\u00f3ria \u00e9 finita, por mais imponente que seja o laureado!<\/p>\n

Muitos dos camponeses, que aderiram ao pr\u00edncipe invejoso, arrependeram-se. Observaram que o reino fora entregue aos que com ele se locupletavam, inclusive gatunos do er\u00e1rio p\u00fablico. E tanto a corja sacia-se e enriquece-se que o conselho dos doutos j\u00e1 n\u00e3o tem mais gavetas para guardar den\u00fancias sobre a s\u00facia. Essas j\u00e1 est\u00e3o a sair pelo ladr\u00e3o, sem que os doutos tenham coragem de ao menos l\u00ea-las. Alegam que h\u00e1 muito tempo para isso, uma vez que n\u00e3o s\u00e3o\u00a0 direcionadas \u00e0 rainha e a sua gente. E na rua o povo, agora em maior n\u00famero, continua a cantar: \u201cInda pago pra ver\/ O jardim florescer\/ Qual voc\u00ea n\u00e3o queria\/ Voc\u00ea vai se amargar\/ Vendo o dia raiar\/ Sem lhe pedir licen\u00e7a\/ E eu vou morrer de rir\/ Que esse dia h\u00e1 de vir\/ Antes que voc\u00ea pensa\u201d<\/em>. E como haver\u00e1 de vir!<\/p>\n

O pr\u00edncipe velho e mau tem sido not\u00edcia na m\u00eddia mais poderosa do reino, que com ele tramara a queda da rainha e, que lhe tece os mais loroteiros e pabolas elogios. Mas algo ainda atormenta o homem invejoso, que sempre sonhou em ser rei, e os seus asseclas: ser chamado de \u201cgolpista\u201d. Ele e seus sequazes tiveram a petul\u00e2ncia de\u00a0 pedir ao conselho de doutos que proibisse a rainha de dizer, ao povo de seu reino e de outros, que fora v\u00edtima de um in\u00edquo golpe, ou seja, tirada do trono pela for\u00e7a da vingan\u00e7a. Esquecem eles que os demais reinos\u00a0 testemunharam e comprovam todos os seus ardis e tramoias. Mas o povo continua a cantar nas ruas e pra\u00e7as: \u201cApesar de voc\u00ea\/ Amanh\u00e3 h\u00e1 de ser\/ Outro dia\/ Voc\u00ea vai ter que ver\/ A manh\u00e3 renascer\/ E esbanjar poesia\/ Como vai explicar\/ Vendo o c\u00e9u clarear\/ De repente, impunemente\/ Como vai abafar\/ Nosso coro a cantar\/ na sua frente\u201d<\/em>. E esse dia n\u00e3o tardar\u00e1 a chegar \u2013 reafirma o or\u00e1culo ao povo.<\/p>\n

Obs.:<\/span> Ou\u00e7am APESAR DE VOC\u00ca<\/a><\/p>\n

Nota:<\/u> pormenor da obra de Candido Portinari, Guerra e Paz<\/em>.<\/p>\n

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