Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir\/ E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir\/ E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir\/ Deus lhe pague. (Chico Buarque)<\/em><\/strong><\/p>\nO \u201chomem de Deus\u201d entrou na casa do oper\u00e1rio com o intuito de \u201cganhar\u201d sua alma para o Senhor. H\u00e1 dias vinha andando pelas ruas daquele miser\u00e1vel mundo a fim de cumprir sua miss\u00e3o evangelizadora. Usava terno preto e camisa branca, sapato de couro engraxado e gravata de risca. Os \u00f3culos de aros finos contrastavam com o volumoso rel\u00f3gio no pulso. O corpo atarracado mostrava ser homem de garra no eito, quando o garfo empunhava. Pegou na m\u00e3o do oper\u00e1rio, de sua esqu\u00e1lida mulher e de seus cinco filhos. Durante mais de uma hora pregou sobre a salva\u00e7\u00e3o da alma, mas n\u00e3o a do corpo.<\/p>\n
O oper\u00e1rio falou-lhe, envergonhado, que o filho mais novo estava doente, precisando de rem\u00e9dio, e que pra comer s\u00f3 havia macarr\u00e3o e p\u00e3o dormido. O \u201chomem de Deus\u201d fez que n\u00e3o ouviu, e disse que era preciso agradecer pelos in\u00fameros benef\u00edcios recebidos, primeiramente ao Criador e depois ao patr\u00e3o que lhe dava servi\u00e7o. Cantou, louvou e partiu, sem se esquecer de convidar a fam\u00edlia para a igreja e falar sobre as maravilhas do d\u00edzimo, pois “quanto mais se doa, mais se recebe”. O oper\u00e1rio achou que talvez o \u201chomem de Deus\u201d tivesse raz\u00e3o. Talvez sua vida fosse t\u00e3o penosa por falta de gratid\u00e3o. E passou a agradecer: \u201cPor esse p\u00e3o pra comer, por esse ch\u00e3o pra dormir\/ A certid\u00e3o pra nascer e a concess\u00e3o pra sorrir\/ Por me deixar respirar, por me deixar existir\/ Deus lhe pague\u201d<\/em>.<\/p>\nO pobre homem matutava para n\u00e3o se esquecer de nada: \u201cPelo prazer de chorar e pelo \u2018estamos a\u00ed\u2019\/ Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir\/ Um crime pra comentar e um samba pra distrair\/ Deus lhe pague\u201d<\/em>. Lembrou-se da praia, aonde ia uma vez a cada trimestre com a mulher e os filhos: \u201cPor essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui\u201d<\/em> Achava que tamb\u00e9m deveria agradecer pela c\u00f3pula feita \u00e0s pressas: \u201cO amor malfeito, depressa, fazer a barba e partir\u201d<\/em>. E tamb\u00e9m pelos programas dominicais: \u201cPelo domingo que \u00e9 lindo, novela, missa, gibi\/ Deus lhe pague\u201d<\/em>.<\/p>\nEnquanto se conduzia para o trabalho, o oper\u00e1rio continuava a agradecer: \u201cPela cacha\u00e7a de gra\u00e7a que a gente tem que engolir\/ Pela fuma\u00e7a, desgra\u00e7a, que a gente tem que tossir\/ Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair\/ Deus lhe pague\u201d<\/em>. E de volta, espremido num lota\u00e7\u00e3o e mo\u00eddo pelo cansa\u00e7o, tamb\u00e9m agradeceu: \u201cPor mais um dia, agonia, pra suportar e assistir\/ Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir\/ E pelo grito demente que nos ajuda a fugir\/ Deus lhe pague\u201d<\/em>.<\/p>\nAo chegar a casa, o filho que deixara doente e sem rem\u00e9dio estava morto. Ao v\u00ea-lo, t\u00e3o mirradinho estendido sobre a cama, o oper\u00e1rio agradeceu pela \u00faltima vez: “Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir\/ E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir\/ E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir\/ Deus lhe pague”. <\/em>Depois disso, ele emudeceu para sempre!<\/p>\nObs.:<\/u> Ou\u00e7a a m\u00fasica\u00a0 \u2013 DEUS LHE PAGUE<\/a><\/p>\nNota:<\/u> Crian\u00e7a Morta<\/em>, obra de Candido Portinari<\/p>\nViews: 15<\/p>","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
Autoria de Lu Dias Carvalho Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir\/ E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir\/ E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir\/ Deus lhe pague. (Chico Buarque) O \u201chomem de Deus\u201d entrou na casa do oper\u00e1rio com o intuito de \u201cganhar\u201d sua alma para o Senhor. H\u00e1 […]<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"sfsi_plus_gutenberg_text_before_share":"","sfsi_plus_gutenberg_show_text_before_share":"","sfsi_plus_gutenberg_icon_type":"","sfsi_plus_gutenberg_icon_alignemt":"","sfsi_plus_gutenburg_max_per_row":"","_monsterinsights_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false,"footnotes":""},"categories":[41],"tags":[],"aioseo_notices":[],"jetpack_featured_media_url":"","jetpack_sharing_enabled":true,"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/27928"}],"collection":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=27928"}],"version-history":[{"count":6,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/27928\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":47077,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/27928\/revisions\/47077"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=27928"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=27928"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=27928"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}