{"id":350,"date":"2015-09-01T12:45:17","date_gmt":"2015-09-01T15:45:17","guid":{"rendered":"http:\/\/virusdaarte.net\/?p=350"},"modified":"2022-08-12T22:13:59","modified_gmt":"2022-08-13T01:13:59","slug":"ram-munda-8-quarto-dia-como-dalit","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/virusdaarte.net\/ram-munda-8-quarto-dia-como-dalit\/","title":{"rendered":"RAM MUNDA (8) – QUARTO DIA COMO DALIT"},"content":{"rendered":"

Autoria de Lu Dias Carvalho
\n<\/strong><\/p>\n

\"Ramun<\/a>
\n<\/strong><\/p>\n

Ram Munda tem a impress\u00e3o de estar naquela vida h\u00e1 muito tempo. J\u00e1 aprendeu todas as manhas do of\u00edcio, inclusive acostumou-se a fazer suas necessidades em locais sujos e \u00e0 vista das pessoas, sem ao menos se sentir constrangido. Sabe que ningu\u00e9m o olha. Ele n\u00e3o existe aos olhos do mundo. N\u00e3o passa de uma coisa insignificante aos olhos do mundo.<\/p>\n

C\u00e3es, ratos e vacas vagam pelas plataformas da esta\u00e7\u00e3o ferrovi\u00e1ria ao lado dos mendigos. \u00c9 comum ver homens, mulheres e crian\u00e7as enxotarem com o p\u00e9 esses animais, disputando o lixo com eles. Ali nada se perde. Os mendicantes est\u00e3o cobertos por placas de sujeiras, t\u00eam os cabelos embara\u00e7ados, viscosos e cerdosos. Alguns possuem apenas um pano cobrindo o sexo e um trapo jogado nas costas. Falam sozinhos, possuem o olhar parado, comem restos e dormem no ch\u00e3o duro. Chafurdam em montes de lixo com os animais. S\u00e3o selvagens e solit\u00e1rios. Parecem tomados pela loucura.<\/p>\n

Ram Munda, como os demais pedintes, n\u00e3o sente prazer em nada. Basta apenas ir levando a vida, sem nenhum tipo de esperan\u00e7a, \u00e0 espera do \u00faltimo suspiro. N\u00e3o h\u00e1 contato entre os mendigos, a menos que fa\u00e7am parte da mesma fam\u00edlia. Cada um est\u00e1 apenas voltado para si mesmo, preocupado com a pr\u00f3pria sobreviv\u00eancia, se \u00e9 que ainda n\u00e3o se transformou em um aut\u00f4mato.<\/p>\n

A via-sacra <\/em>dos mendigos repete-se em todas as paradas dos trens, de modo que os passageiros j\u00e1 se tornaram indiferentes \u00e0 mis\u00e9ria que se apresenta diante de seus olhos: mendigos esfarrapados, leprosos e monstros humanos com membros disformes (os homens elefantes). A rotina acaba com qualquer forma de compaix\u00e3o. Os passageiros podem ser divididos nas seguintes categorias:<\/p>\n

\u2022 os de olhar impass\u00edvel, e, que ficam mudos ao serem abordados;
\n\u2022 aqueles que levam a m\u00e3o direita \u00e0 testa, como se aben\u00e7oasse o mendigo;
\n\u2022 os que, em tom hip\u00f3crita ou agressivo, mandam que o mendigo v\u00e1 pedir esmola em outro lugar, deixando-os em paz;
\n\u2022 os avarentos que pregam li\u00e7\u00e3o de moral.<\/p>\n

As popula\u00e7\u00f5es tribais (abor\u00edgenes) formam a classe social mais miser\u00e1vel e mais desprezada da \u00cdndia. \u00c9 desumano ver pessoas que as mandam trabalhar, pois sabem que n\u00e3o t\u00eam possibilidade alguma de acesso a qualquer tipo de trabalho. N\u00e3o lhes \u00e9 facultada nem a possibilidade de chegarem perto de algu\u00e9m para pedir emprego.<\/p>\n

Nos trens, uma \u00ednfima minoria de milion\u00e1rios esconde-se em compartimentos refrigerados, com janelas de vidro fum\u00ea, sempre fechados. A eles nenhum acesso \u00e9 poss\u00edvel, pois os inspetores n\u00e3o permitem que os miser\u00e1veis subam nos vag\u00f5es.<\/p>\n

Ram Munda sente-se aviltado, envergonhado e desgostoso, quando as pessoas nos trens jogam-lhe restos de alimento no prato. Espera que o trem parta, para jogar fora. Sente-se como um leg\u00edtimo mendigo indiano, imundo e desdenhado pela sociedade. Sabe que essa o odeia tanto, quanto ele tem avers\u00e3o por ela. A sociedade enxota-o como um c\u00e3o sarnento e faminto, sem que nunca possa reagir. Sabe que n\u00e3o \u00e9 um cidad\u00e3o, mas um farrapo humano ou bicho.<\/p>\n

S\u00e3o cru\u00e9is e hip\u00f3critas aqueles que aben\u00e7oam os mendigos com as m\u00e3os e os aconselham a pedir esmolas em outros lugares. Eles, os miser\u00e1veis, n\u00e3o precisam de b\u00ean\u00e7\u00e3os, mas de alimentos para continuarem existindo. A alma n\u00e3o pode ser alimentada, quando o est\u00f4mago est\u00e1 vazio como um po\u00e7o seco. \u00c9 comum encontrar pessoas agressivas entre os viajantes. Levantam a m\u00e3o e amea\u00e7am o pedinte, fazendo chacota como hienas:<\/p>\n

Vai cair fora, ou terei de bater em voc\u00ea?<\/em><\/p>\n

N\u00e3o restando alternativa ao miser\u00e1vel, sen\u00e3o ir embora, pois sabe que n\u00e3o possui direitos.<\/p>\n

Ram Munda volta \u00e0 pele de Marc Boulet, no pensamento, e lamenta por ter sido t\u00e3o indiferente, quando se encontrava com os dalits<\/em>. Pois hoje tem raiva dos que o rejeitam. Raiva n\u00e3o, ele tem \u00f3dio. Gostaria de ter poderes para faz\u00ea-los engolir o desprezo que lhe dispensam. Sabe que, apesar de sujo e in\u00fatil, continua sendo homem, semelhante a todos os outros humanos, embora nada possa mudar a sua vida. N\u00e3o se importaria se apenas recusassem a lhe dar esmola. Mas n\u00e3o suporta o olhar de nojo e agressividade, acompanhado de palavras desagrad\u00e1veis.<\/p>\n

Ram Munda apenas se preocupa em comer p\u00e3o, beber \u00e1gua, fumar biri<\/em> e dormir o m\u00e1ximo que puder, de modo a perder a consci\u00eancia, esquecendo-se de que existe. Quando contar a sua metamorfose para os amigos, muitos ir\u00e3o julg\u00e1-la divertida, como se fora um baile de m\u00e1scaras. N\u00e3o sentir\u00e3o o principal: seu sofrimento moral. Jamais poderia ter imaginado que ser sujo, rebaixar-se a mendigar, tornando-se um objeto de desprezo, e tornar-se um intoc\u00e1vel, fosse t\u00e3o doloroso. Ningu\u00e9m poder\u00e1 imaginar a sua afli\u00e7\u00e3o, sua solid\u00e3o e vergonha.<\/p>\n

Na \u00cdndia, dentro da sociedade hierarquizada, quem \u201cpede\u201d ao outro \u00e9 considerado inferior. Ao mendigo s\u00f3 resta a submiss\u00e3o, e calar-se em toda e qualquer circunst\u00e2ncia, pois ele n\u00e3o possui o mais elementar dos direitos.<\/p>\n

A seguir o cap\u00edtulo 9…<\/p>\n

Fonte de pesquisa:<\/span>
\nNa Pele de um Dalit\/ Marc Boulet\/ Editora Bertrand Brasil<\/p>\n

Nota: Imagem retirada de http:\/\/toligadonesse.blogspot.com.br<\/p>\n

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Autoria de Lu Dias Carvalho Ram Munda tem a impress\u00e3o de estar naquela vida h\u00e1 muito tempo. J\u00e1 aprendeu todas as manhas do of\u00edcio, inclusive acostumou-se a fazer suas necessidades em locais sujos e \u00e0 vista das pessoas, sem ao menos se sentir constrangido. Sabe que ningu\u00e9m o olha. Ele n\u00e3o existe aos olhos do […]<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"sfsi_plus_gutenberg_text_before_share":"","sfsi_plus_gutenberg_show_text_before_share":"","sfsi_plus_gutenberg_icon_type":"","sfsi_plus_gutenberg_icon_alignemt":"","sfsi_plus_gutenburg_max_per_row":"","_monsterinsights_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false,"footnotes":""},"categories":[3],"tags":[],"aioseo_notices":[],"jetpack_featured_media_url":"","jetpack_sharing_enabled":true,"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/350"}],"collection":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=350"}],"version-history":[{"count":8,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/350\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":46811,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/350\/revisions\/46811"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=350"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=350"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/virusdaarte.net\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=350"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}