{"id":38069,"date":"2019-09-23T00:01:26","date_gmt":"2019-09-23T03:01:26","guid":{"rendered":"https:\/\/virusdaarte.net\/?p=38069"},"modified":"2019-09-22T20:14:49","modified_gmt":"2019-09-22T23:14:49","slug":"os-animais-e-a-crueldade-humana","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/virusdaarte.net\/os-animais-e-a-crueldade-humana\/","title":{"rendered":"OS ANIMAIS E A CRUELDADE HUMANA"},"content":{"rendered":"\n

Autoria de Marguerite Yourcenar<\/strong><\/p>\n

\"\"<\/a><\/strong><\/p>\n

Quem sabe se o sopro de vida dos filhos dos homens se eleva para o alto, e o sopro de vida dos brutos desce para a terra? (Eclesiastes, III, 21)<\/em><\/strong><\/p>\n

Narra um conto das Mil e Uma Noites que a Terra e os animais tremeram no dia em que Deus criou o homem. Esta vis\u00e3o admir\u00e1vel de poeta adquire um significado total para n\u00f3s, que sabemos, bem melhor que o contista \u00e1rabe da Idade M\u00e9\u00addia, quanto a Terra e os animais tinham raz\u00e3o em tremer.<\/p>\n

Quando deparo um rebanho ou alim\u00e1rias no campo, belo es\u00adpet\u00e1culo que em todos os tempos os pintores e poetas cultiva\u00adram como “id\u00edlio”, cada vez mais raro, infelizmente, em nosso mundo ocidental; quando me ocorre mesmo ver galinhas cis\u00adcando ainda em liberdade num terreiro de fazenda, vem-me logo o pensamento de que esses animais, sacrificados ao ape\u00adtite do homem ou usados a seu servi\u00e7o, ir\u00e3o morrer um dia “de mala morte”: sangrados, abatidos, esganados, ou, segundo antigo costume, quando se trata de cavalos que n\u00e3o se enviam \u00e0s boucheries chevalines<\/em>*, sacrificados a tiros no mais das ve\u00adzes imprecisos, que quase nunca significam um verdadeiro “golpe de miseric\u00f3rdia”; ou abandonados nas solid\u00f5es da ser\u00adra, como \u00e9 costume at\u00e9 hoje entre os agricultores da Madeira; ou ainda (em que pa\u00eds foi que me contaram este fato?) for\u00e7a\u00addos \u00e0 ponta de aguilh\u00e3o a se precipitarem nos abismos onde morrer\u00e3o reduzidos a frangalhos.<\/p>\n

\u00a0Ocorre-me pensar tamb\u00e9m nesse momento, que talvez du\u00adrante meses ou anos ainda, esses animais ir\u00e3o viver ao ar livre, em pleno sol ou em plena noite, n\u00e3o raro maltratados, mas bem tratados, \u00e0s vezes perfazendo normalmente os ciclos de sua exist\u00eancia animal, tal como nos resignamos a cumprir os ciclos de nossa pr\u00f3pria vida.<\/p>\n

Essa relativa “normalidade” j\u00e1 n\u00e3o \u00e9 t\u00e3o comum entre n\u00f3s, onde uma pavorosa superprodu\u00e7\u00e3o (que ao fim tamb\u00e9m avilta e mata o homem) faz dos animais produtos fabricados em s\u00e9rie, que vivem sua pobre e curta exist\u00eancia (\u00e9 preciso que os granjeiros recuperem seus gastos o mais cedo poss\u00edvel) no insuport\u00e1vel clar\u00e3o das l\u00e2mpadas el\u00e9\u00adtricas, atulhados de horm\u00f4nios cujos perigos sua carne nos ir\u00e1 transmitir, pondo ovos e “sujando em cima deles” (como diziam antigamente as enfermeiras e as amas-de-leite), privados, no caso das aves confinadas, at\u00e9 dos bicos e das garras que, nessa horr\u00edvel vida de pacotes, fariam voltar contra suas companhei\u00adras de mis\u00e9ria; ou ainda, como ocorre com os bons cavalos da Guarda Republicana, velhos e cansados, condenados a ago\u00adnizar, \u00e0s vezes durante dois anos, num est\u00e1bulo do Instituto Pasteur, tendo por \u00fanica distra\u00e7\u00e3o serem sangrados todos os dias, para afinal sucumbirem exangues, andrajos equestres v\u00edtimas dos nossos progressos imunol\u00f3gicos, enquanto os pr\u00f3prios soldados da Guarda se mortificam: “Prefer\u00edamos que fossem mandados de vez ao matadouro!”<\/p>\n

\u00a0\u00c9 certo que quase todos n\u00f3s j\u00e1 fizemos uso de vacinas, sonhando com essa \u00e9poca em que tais progressos m\u00e9dicos pas\u00adsar\u00e3o de moda, como j\u00e1 passaram tantos outros; a maior parte das pessoas come carne, mas algumas se recusam a isto, e pen\u00adsam, com leve ironia, em todas as adversidades do pavor e da agonia, em todas as c\u00e9lulas gastas de um ciclo nutritivo que chega a seu fim nas mand\u00edbulas desses devoradores de bifes.<\/p>\n

* A\u00e7ougues onde se vende carne de cavalo na Fran\u00e7a. (N. do T.)<\/p>\n

Nota:<\/u> texto extra\u00eddo do livro \u201cO Tempo, Esse Grande Escultor\u201d\/ Edit. Nova Fronteira<\/p>\n

Imagem copiada de https:\/\/www.historiasinfantis.com.br<\/p>\n

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