{"id":45029,"date":"2022-04-05T19:55:00","date_gmt":"2022-04-05T22:55:00","guid":{"rendered":"https:\/\/virusdaarte.net\/?p=45029"},"modified":"2022-04-14T18:52:00","modified_gmt":"2022-04-14T21:52:00","slug":"o-conto-do-vigario","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/virusdaarte.net\/o-conto-do-vigario\/","title":{"rendered":"O CONTO DO VIG\u00c1RIO"},"content":{"rendered":"\n

Autoria de Fernando Pessoa<\/strong><\/p>\n

\"\"<\/a><\/strong><\/p>\n

Vivia h\u00e1 j\u00e1 n\u00e3o poucos anos, algures, num conselho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vig\u00e1rio.<\/p>\n

Da sua qualidade, como diriam os psic\u00f3logos pr\u00e1ticos, falar\u00e1 o bastante a circunst\u00e2ncia que d\u00e1 princ\u00edpio a esta narrativa. Chegou uma vez ao p\u00e9 dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: \u00abSr. Vig\u00e1rio, tenho aqui umas\u00a0notinhas\u00a0de cem mil r\u00e9is que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil r\u00e9is cada\u00a0uma.\u00bb \u00abDeixa ver\u00bb, disse o Vig\u00e1rio; e depois, reparando logo que eram imperfeit\u00edssimas, rejeitou-as: \u00abPara que quero eu isso?\u00bb, disse; \u00abisso nem a cegos se passa.\u00bb O outro, por\u00e9m, insistiu; Vig\u00e1rio cedeu um pouco regateando; por fim fez-se neg\u00f3cio de vinte notas, a dez mil r\u00e9is cada uma.<\/p>\n

Sucedeu que dali a dias tinha o Vig\u00e1rio que pagar a uns irm\u00e3os, negociantes de gado como ele, a diferen\u00e7a de uma conta, no valor certo de um conto de r\u00e9is. No primeiro dia da feira, na qual se deveria efetuar o pagamento, estavam os dois irm\u00e3os jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de b\u00eabado, o Manuel Peres Vig\u00e1rio. Sentou-se \u00e0 mesa deles, e pediu vinho. Da\u00ed a um tempo, depois de variada conversa, pouco intelig\u00edvel da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se, se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil r\u00e9is. Eles disseram que n\u00e3o, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar r\u00e1pido, a aten\u00e7\u00e3o do irm\u00e3o para as notas, que se via que eram de cem. Houve ent\u00e3o a troca de outro olhar.<\/p>\n

O Manuel Peres, com lentid\u00e3o, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irm\u00e3os guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O vig\u00e1rio continuou a conversa, e, v\u00e1rias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. N\u00e3o era uso, mas nenhum dos irm\u00e3os fez quest\u00e3o. Ditava ele o recibo, disse, pois queria as coisas todas certas. E ditou o recibo \u2013 um recibo de b\u00eabado, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, e estando n\u00f3s a jantar (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do b\u00eabado\u2026), tinham eles recebido de Manuel Peres Vig\u00e1rio, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de n\u00e3o sei qu\u00ea, a quantia de um conto de r\u00e9is em notas de cinquenta mil r\u00e9is. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vig\u00e1rio meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e da\u00ed a um tempo foi-se embora.<\/p>\n

Quando, no pr\u00f3prio dia ou no outro, houve ocasi\u00e3o de se trocar a primeira nota, o que ia a receb\u00ea-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez \u00e0 segunda e \u00e0 terceira\u2026 E os irm\u00e3os, olhando ent\u00e3o verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.<\/p>\n

Queixaram-se \u00e0 pol\u00edcia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo\u00a0at\u00f4nito\u00a0o caso, ergueu as m\u00e3os ao c\u00e9u em\u00a0gra\u00e7as da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.<\/p>\n

Se n\u00e3o fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irm\u00e3os, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil r\u00e9is. \u00abE se eu tivesse pago em notas de cem\u00bb, rematou o Vig\u00e1rio \u00abnem eu estava t\u00e3o b\u00eabado que pagasse vinte, como estes senhores dizem que t\u00eam, nem muito menos eles, que s\u00e3o homens honrados, mas receberiam.\u00bb E, como era de justi\u00e7a foi mandado em paz.<\/p>\n

O caso, por\u00e9m, n\u00e3o p\u00f4de ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a hist\u00f3ria do \u00abconto de r\u00e9is do Manuel Vig\u00e1rio\u00bb passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida j\u00e1 da sua origem.<\/p>\n

Os imperfeit\u00edssimos imitadores, pessoais como pol\u00edticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso \u00e9 com ternura que relembro o feito deste grande portugu\u00eas, e me figuro, em devaneio, que, se h\u00e1 um c\u00e9u para os h\u00e1beis, como constou que o havia para os bons, ali lhe n\u00e3o deve ter faltado o acolhimento dos pr\u00f3prios grandes mestres da Realidade \u2013 nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso moment\u00e2neo de George Savile, Marqu\u00eas de Halifax.<\/p>\n

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