{"id":8351,"date":"2013-10-19T00:03:39","date_gmt":"2013-10-19T03:03:39","guid":{"rendered":"http:\/\/virusdaarte.net\/?p=8351"},"modified":"2022-08-04T20:08:24","modified_gmt":"2022-08-04T23:08:24","slug":"e-se-ele-morresse-naquela-noite","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/virusdaarte.net\/e-se-ele-morresse-naquela-noite\/","title":{"rendered":"E SE ELE MORRESSE NAQUELA NOITE?"},"content":{"rendered":"

Autoria de\u00a0<\/b>Lu Dias Carvalho<\/b> \"ute12\"<\/a><\/b><\/p>\n

A noite estava fria. O vento zunia nas cal\u00e7adas levantando pap\u00e9is e o que ali se encontrasse. A chuva n\u00e3o tardaria a desabar com vontade daquele c\u00e9u de chumbo. As pessoas corriam apressadas, trombando umas nas outras. Algumas sombrinhas e guarda-chuvas j\u00e1 se encontravam abertos, talvez na tentativa de proteger seus portadores do vento g\u00e9lido. Os motoristas buzinavam apavorados com a imin\u00eancia do temporal. Ningu\u00e9m queria ser pego longe da quentura do lar.<\/p>\n

Mulher e marido sa\u00edram apressados da sala do dentista. Um t\u00e1xi n\u00e3o seria a melhor solu\u00e7\u00e3o, diante do pandem\u00f4nio que se formava, com as ruas abarrotadas de pessoas e autom\u00f3veis tentando for\u00e7ar a passagem a qualquer pre\u00e7o. Caminhar seria bem mais vi\u00e1vel para quem morasse pr\u00f3ximo ao centro. E assim, o casal alargou os passos, agarrados um no outro, tentando vencer o tempo e a dist\u00e2ncia de casa.<\/p>\n

Ele estava na cal\u00e7ada. Um idoso franzino trajando uma camisa fina e um short velho. Nos p\u00e9s, apenas um t\u00eanis velho, desacompanhado de um par de meias que pudesse lhe aquecer os p\u00e9s. As pessoas passavam esbaforidas por ele. Talvez nem o vissem. Mas ele estava ali, tremendo, tentando ultrapassar as portas de a\u00e7o de uma loja j\u00e1 fechada, como se assim pudesse mitigar a frieza do tempo e das pessoas.<\/p>\n

A mulher viu-o. Nada comentou com o marido. Seu cora\u00e7\u00e3o e alma do\u00edam de compaix\u00e3o. Ela se emudeceu por fora e por dentro encheu-se de porqu\u00eas que jamais teriam resposta alguma. O casal seguiu em frente, ziguezagueando entre as pessoas, aguardando sinais, atravessando ruas, buscando cal\u00e7adas, aquecendo seus corpos com os bra\u00e7os, querendo se salvar do temporal que j\u00e1 quase beijava o ch\u00e3o.<\/p>\n

Eu vou voltar para levar-lhe um cobertor e comida – martelava a mulher em sua mente compassiva e indignada. Ela chegou \u00e0 casa junto com o temporal. Juntou-se \u00e0 fam\u00edlia no jantar, depois veio o banho quente, a col\u00f4nia costumeira, a cama acolhedora e os bra\u00e7os carinhosos do marido. Pela janela do quarto entravam apenas a luz dos rel\u00e2mpagos que avivam a promessa que fizera a si mesma: levar cobertor e comida para o homem idoso na cal\u00e7ada de uma noite g\u00e9lida. O marido dormiu, mas a mulher n\u00e3o, com a imagem daquele ser repassando diante de seus olhos, num vai e vem sem fim. E se ele morresse naquela noite? E se ele amanhecesse morto na cal\u00e7ada g\u00e9lida?<\/p>\n

A mente s\u00e1bia foi acalmando o cora\u00e7\u00e3o da mulher de mente conturbada pela promessa n\u00e3o cumprida. Era preciso dormir, pois, a madrugada j\u00e1 rompia para dar lugar a um novo dia. Ela dormiu. Acordou pensando no homem na cal\u00e7ada \u00e1lgida, de uma noite fr\u00edgida, com um vento cortante em meio a tantos cora\u00e7\u00f5es g\u00e9lidos, inclusive o dela.<\/p>\n

A mulher teve medo de ler o jornal, no dia seguinte, e de ver os notici\u00e1rios televisivos. Amedrontava-lhe a ideia de que a morte do homem pudesse se estampar diante de seus olhos. Ela tinha medo de que o tivesse matado pelo seu desamor e pela palavra dada ao cora\u00e7\u00e3o, descumprida.<\/p>\n

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