O PAR DE ÓCULOS

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Autoria do Dr. Ivan T. Large

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A minha secretária entra na minha sala e entrega-me um par de óculos para ser conferido. Eu lhe pergunto:

– De quem são estes óculos?

Esta simples frase leva-me de volta ao tempo, mais de 25 anos atrás. Na época, eu morava no Haiti, minha terra natal, sob a ditadura implacável de Jean Claude Duvalier, mais conhecido como “Baby Doc”, herdeiro e digno sucessor do cruel “Papa Doc”, Durante três intermináveis décadas, pai e filho mantiveram-se no poder pela força das armas, reprimindo ferozmente qualquer forma de oposição.

Nesse clima de terror, prudência era sinônimo de sobrevivência. Um simples comentário sugerindo uma discordância com qualquer ato do governo era considerado crime e traição contra a nação, e impiedosamente punido com cadeia acompanhada de torturas, culminando, às vezes, com a morte. Quem, como eu, nascia nesse tipo de regime, tinha que aprender a calar-se antes mesmo de aprender a falar. Mas, mesmo assim, a sede de liberdade e democracia era mais forte e encontrava meios de expressar-se sutilmente, como, por exemplo, através das artes plásticas.

Um dia, tive a oportunidade de assistir a uma exposição de quadros. Picasso escreveu que “pessoas que querem explicar telas ladram para a árvore errada”. Lá ia eu, então, percorrendo o salão, “ladrando” de quadro em quadro. A linguagem simbólica usada pelo artista prestava-se bem ao meu anseio de interpretação;

Atrás de um andaime, uma mulher grávida sentada no enquadramento de uma janela, Em volta dela e dentro dela, construções edificando-se lentamente. Era um prelúdio à vida. Uma pipa multicor voando livremente no céu, deixava imaginar, na outra ponta do fio, a mão da criança que lhe dava vida. Era como dizia Odilon Redon “o visível a serviço do invisível”. Numa outra tela, apenas um par de óculos em cima de uma mesa, mas que me deixou intrigado, e me fez perguntar ao pintor:

– De quem são estes óculos?

Ele me levou num canto deserto da sala, longe de qualquer orelha indiscreta. Lá, ele me contou, em voz baixa, que o Papa Doc gostava de assistir às sessões de tortura. Permanecia em silêncio, e não era permitido mencionar o seu nome. Mas antes de tudo, tirava os seus óculos e colocava-os em cima de uma pequena mesa. Para o torturado que tinha que manter a cabeça baixa, o único sinal da sua chegada ao local era a presença dos óculos sobre a mesa, situada no seu campo de visão. Era também o sinal de que as torturas seriam ainda mais sádicas que de costume, já que os carrascos aproveitavam para demonstrar excesso de zelo, para agradar ao chefe.

– Estes óculos são do senhor Sebastião – responde-me a minha secretária.

Eu suspiro, aliviado.

Nota: ilustração do autor

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