Autoria de Lu Dias Carvalho

Recebi um e-mail de um leitor, que me parabeniza pelo trabalho humanitário que faço aqui no blog, mas, que também me diz ser em vão o fato de eu me preocupar com esse tipo de coisa, como a morte do leão Cecil, pois tudo o que acontece é com a permissão de Deus, Alá, Brahma, Javé, em suma, de um ser responsável por tudo que ocorre no planeta Terra ou em qualquer parte do Universo. Acrescentou que o mal é responsável pela evolução de nosso espírito, pois tudo é matéria física. Que o leão Cecil morreu na hora exata. E parar ou não com o meu trabalho, era decisão minha. Confesso que o meu amigo virtual não teve nenhuma intenção de me magoar. Mas também não poderia ficar calada, sob a possibilidade de jogar por terra todas as minhas verdades, que busco durante anos a fio. Respondi-lhe:
O que move o mundo é o paradoxo de pensamentos tão díspares. Ou, seja, eles são o reflexo daquilo que somos: seres humanos complexos, ainda que muitos de nós estejam cheios das melhores intenções, ou pensem conter as verdades da vida. Não creio em dogmas ou em religião. Conheço um pouco de algumas. Delas absorvo aquilo que considero louvável e desprezo o que concebo como um atraso para a vida no planeta Terra. Sou agnóstica, e vejo nisso algo humanamente recompensador para minha existência humana. Tento ser generosa comigo e com a vida, não em função de uma crença, que me ofereça a eternidade, numa espécie de barganha, mas, porque quero ser alguém melhor, a serviço de um planeta melhor, ainda que minha vida reduza apenas a essa passagem fugaz pela Terra.
Não acredito que a existência de um ser divino, quer tenha o nome de Deus, Alá, Brahma, Javé (ou o que quer que seja), direcione a vida dos seres terrestres, até porque, se assim fosse, eu o teria como diabólico, sem magnanimidade, parcial e mesquinho, que a uns envia o sofrimento e a outros compraz com uma vida de benesses. Não! Eu jamais aceitaria um ser manipulador e determinista, que me obrigasse a cruzar os braços diante das atrocidades do mundo, criado para ser um Paraíso. Se assim fosse, melhor seria ter nascido árvore, pedra, ou água, que se move empurrada pela corrente, rumo ao mar.
Se houver um Deus, o meu Deus será muito diferente. Terá criado a vida, posto o homem na Terra, dado-lhe o livre-arbítrio (embora a Ciência esteja a provar que não o temos tão livre assim, uma vez que a genética é responsável por grande parte daquilo que somos) para agir como quiser. Caso contrário, o homem, não deveria passar pelo tão conclamado Juízo Final, visto na maioria das crenças, pois, coitado, seria apena uma marionete manipulada por um ser superior. Que culpa carregaria diante da manipulação de um ser que lhe é superior? Se assim for, todos os seres humanos já são puros por antecipação. Não deveria nem mesmo haver a Justiça terrena, se todos servem a um Ser Determinista Superior. Eu o abominaria com todas as forças de meu ser, pois, para mim, Deus só poderia ser o mais puro e profundo amor.
Se houver um Deus, penso que apenas observa a trajetória humana na Terra, onde colocou cada homem. A cada um, nessa “outra” proclamada Vida, julgará conforme o merecimento. Levará em conta sua genética, o país em que viveu, as condições que recebeu ao nascer, as oportunidades que teve, a crença em que nasceu e, sobretudo, sua generosidade para com o planeta. Peste, vírus, maremoto, terremoto, furacão e todas as desgraças seriam advindas da própria condição planetária, em suas constantes transformações, pois a morte e tais mudanças também são renovação, não apenas para o bem, mas também para o “mal”.
Não imagino como o espírito possa evoluir, com o corpo cruzando os braços, omisso, vendo tudo como determinado. Sua evolução está no modo como cada ser reage diante das desgraças, quando essas não se perpetuam, pois o sofrimento tende a trazer nosso melhor lado. Mas, se contínuo, a revolta pela miserabilidade torna os homens ainda mais cruéis uns com os outros, com os animais e com a Terra. Acredito firmemente na teoria de que a “generosidade tende a duplicar o amor”.
Se houver um Deus, a Terra é uma escola de vida, onde temos a oportunidade de nos aprimorarmos. E é aí que entra a necessidade do sofrimento, que atinge a prepotência e o egoísmo humano no seu cerne. Se o aprimoramento não vem através de nossa interação com as adversidades, vistas e sentidas na Terra, como iremos aprimorar nosso espírito? Decorando um monte de verborreia encontrada nos chamados “livros santos”, muitas vezes mais bélicos do que o próprio homem?
O que aconteceu com o leão Cecil, ao unificar os corações de um monte de pessoas, em todas as partes do mundo, unindo-os em prol de outros leões e animais, num sentimento maravilhoso de humanidade, é a parte boa de sua morte. Mas, se ninguém se importasse, teria sido o xeque-mate de nossa inutilidade aqui na Terra. Saber que ele iria morrer mais cedo ou mais tarde não justifica a deplorável ação do dentista americano e comparsas. Que morresse conforme os desígnios da natureza.
Se alguém entrar em sua casa, meu amigo, e assassinar sua família, você aceitaria normalmente como ordem divina, já que todos vão morrer mais cedo ou mais tarde, por que são matéria física? Se arrancarem todas as árvores de sua rua, você não se importaria, pelo fato de que elas irão morrer um dia? Se o vizinho matar o seu cão, você não se importará, pois trata-se de matéria física e foi ordem divina? Que Deus é esse que não induz à ordem, se o Universo, apesar de, à primeira vista parecer complexo e caótico, é altamente ordenado?
Você diz que o leão morreu na hora exata. Como prova isso? Como responde ao crescente aumento da vida humana através dos tempos, em razão da melhoria de sua qualidade, sobretudo em função dos muitos avanços científicos (tome a penicilina como exemplo)? Deus separou o homem, bichos e plantas em compartimentos estanques? De ano tal a ano tal, o homem viverá apenas 30; de tal a tal, 50; de tal a tal, 80… E ainda, no Japão e Coreia do Sul nascerão os que viverão mais tempo, na África, sobretudo na Somália, nascerão aqueles que terão o menor índice de vida? Quão cruel é esse seu Deus! Abomino-o! Mais parece o deus hindu (Brahma) dividindo o mundo em castas, além de criar os conhecidos “dalits” (intocáveis), a poeira da Terra, mas também a vergonha da humanidade.
Ainda que não carregue nenhuma crença, eu me preocupo muitíssimo com meu espírito (ou mente). Não para ganhar o paraíso, num escambo maquiavélico (ser bom por recompensa), mas para me sentir melhor como pessoa, pois isso me faz bem, torna-me mais completa e feliz. E olhe que recebo mais da Vida do que mereço. Ajudar, trabalhar como voluntária e sentir-me útil é um bem dirigido, sobretudo, a mim mesma e, por consequência ao planeta, pois bondade gera bondade. Não se trata de algo feito para Deus, pois ele não deve precisar disso para existir, tamanho é o seu poder.
Eu devo continuar o meu trabalho de crescimento espiritual (ou mental) em meu benefício e em prol de meu planeta, pois tenho certeza de que preciso dele para NÃO me transformar num autômato, num ser robótico, numa mera carcaça perambulando pela Terra. Eu quero ser GENTE! De carne e osso, também. Eu quero que esse Deus, se houver, julgue-me por minhas ações e não apenas por meus pensamentos. Ação é vida! Pensamento é a alavanca da ação, se posto em execução. Fora disso não passa de palavras tolas jogadas ao vento.
Mas eu lhe faço uma pergunta. Outros homens deveriam trabalhar para que você viva? O agricultor, o lixeiro, os funcionários dos supermercados, dos laboratórios, das farmácias, dos hospitais, das fábricas de tecido e das usinas de água, num ínfimo exemplo? Já imaginou quantas pessoas trabalharam para que pudesse tomar uma única xícara de café ou chá? Comece pelo operário que, com seu trator, abriu os sulcos na terra e chegue até a caixa do supermercado, que o atendeu. Não se esqueça de passar, se estiver de carro, por todos os homens que contribuíram para que usasse seu automóvel, sem se esquecer dos que trabalharam para que tivesse gasolina ou álcool e dos que fizeram a rua por onde passou, até chegar a seu lar, pelos que trabalharam na confecção do fogão ou micro-ondas, do açúcar ou adoçante, da xícara e dos talheres usados… Infinitos seres humanos trabalham para que você viva, todos os dias de sua existência, e ainda assim acha que não deve trabalhar por outrem, numa visão determinista é egóica de que Deus, Alá, Javé (e não sei mais o quê) tem tudo escrito, nos mínimos detalhes, sendo, portanto, necessário apenas que cruzemos os braços e deixemos tudo acontecer a bel-prazer?
Não, meu amigo, eu não compactuo com a existência desse seu Deus. É mesquinha demais para meus parcos neurônios. E, se assim fosse, ainda estaríamos vivendo nas cavernas, sem crença em Deus, Alá, Javé, Brahma… Mas, se acha que é assim, isso é com você! O que torna a vida ímpar é essa diversidade de pontos de vista, num mundo laico. Sei que tentou me preservar das minhas emoções, mas sem elas eu viro apenas casca. Agradeço-lhe. Eu seria muito infeliz se abraçasse sua crença. Ainda mais porque tenho certeza absoluta de que você, quando adoece, vai ao médico e toma remédio, em vez de deixar sua saúde nas mãos desse ser que determina tudo. Partindo desta premissa, em relação ao que diz sobre a morte do leão, não segue a risca o que prega. Como só acredito em ação, tenho as suas palavras como discordantes. Desculpe-me a sinceridade!
Nota: Religião Brasileira, obra de Tarsila do Amaral
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