AÇÚCAR – REVOLUÇÃO, DITADURA E CIVILIZAÇÃO

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Autoria de Fernando Carvalho*

Se o açúcar fosse denunciado dos púlpitos científicos como um pecado, essa atitude comprometeria seriamente uma cultura industrial que se sustenta, mutuamente, de alimentos e medicamentos. (Robert Atkin)

A revolução do açúcar, pouco destacada na historiografia, ainda vai dar o que falar, especialmente por causa de suas implicações patológicas. Abrange a trajetória do açúcar desde o seu começo como uma estranha droga doce, vinda do Oriente, para consumo de reis e nobres europeus; sua evolução para a condição de fármaco, dando corpo e sabor doce a xaropes; o posterior avanço para a condição de especiaria apreciada pelas elites burguesas; e finalmente o salto para a mesa de refeições. Tal trajetória só foi possível graças a uma produção de açúcar que ganhou escala cada vez maior depois que espanhóis e portugueses trouxeram para o Novo Mundo a cultura da cana de açúcar.

O açúcar extraído da cana já era produzido desde a Antiguidade por indianos e persas. Os árabes apresentaram-no aos europeus, por volta do século X, como sendo uma especiaria exótica e caríssima. No século XIV um quilo de açúcar equivalia a dez cabeças de gado. Poucos séculos depois, os europeus já estavam fabricando açúcar na bacia do Mediterrâneo. Quando o Brasil foi descoberto, os portugueses já eram os principais produtores de açúcar da época. Faziam-no na Ilha da Madeira. Com a entrada em cena do açúcar produzido em larga escala no Novo Mundo, especialmente no Brasil e nas Antilhas, teve início o processo de açucaramento da mesa do europeu.

Na revolução que o uso generalizado do açúcar causou na Europa do século XVI, o Brasil, principalmente o Nordeste, desempenhou papel importante. Sabe-se que antes de 1500 o europeu adoçava seus alimentos e bebidas com um pouco de mel: desconhecia o açúcar. A comilança de açúcar na Europa foi lentamente aumentando ao longo do século XVI. O século XVII marca grande aumento de seu consumo, sobretudo depois que a população começou a consumir bebidas tropicais. O historiador alemão Edmund von Lippmann descreve a evolução do que ele chama de consumo generalizado de açúcar na Europa e cita um professor da época: “Hoje em dia, não há banquete em que não se gastem muitos artigos de açúcar, quase nada se come sem açúcar.”

Em 1633 o médico naturalista britânico James Hurt disse que ao ser usado em grandes proporções, o açúcar provoca efeitos nocivos ao corpo. Seu uso desmesurado e igualmente de outros produtos adocicados aquece o corpo, engendra caquexias e consunções do organismo humano. O aumento do consumo de açúcar causou, logo de saída, uma epidemia de cárie dentária. James Hurt provavelmente foi um dos primeiros a diagnosticar as primeiras manifestações do que seria uma nova era na história da humanidade – a era das doenças causadas pelo açúcar. Segundo Edmund von Lippmann em “História do Açúcar”, o açúcar estraga os dentes, tornando-os negros, provocando às vezes, um hálito terrivelmente desagradável. E Gilberto Freyre em “A Civilização do Açúcar” fala que “A fartura de açúcar acirrou a tendência ao açucaramento da dieta dos portugueses e dos brasileiros”. Na Europa o açúcar, tendo começado a aparecer quase exclusivamente como remédio nos boticários, passando de artigo de farmácia a especiaria, invadiu a cozinha de aristocráticas, burgueses e de toda a população.

 O advento e a expansão do açúcar de um ponto de vista geohistórico foi assim resumido pelo autor de Casa Grande & Senzala: “Com a manufatura do açúcar de cana, o açúcar tornou-se importante na alimentação do homem civilizado”. O aspecto mais imediato dessa revolução foi a substituição do mel de abelha pelo açúcar como adoçante. A revolução do açúcar desencadeou, a partir do século XVII, um processo de açucaramento de tudo que entra pela boca do ser humano. Empenhada neste processo de açucaramento da vida moderna, a sucroquímica vive a descobrir novas aplicações para o açúcar – o produto químico puro mais abundante e barato do mundo. O açúcar pode ser aproveitado na fabricação de plástico, cosmético, fertilizante, inseticida, cimento, adoçante artificial e até mesmo de explosivo.

Durante os séculos XVI e XVII, quando a produção mundial de açúcar ainda se contava em milhares de sacos, aquela fartura, segundo Gilberto Freyre, originou uma tendência ao açucaramento da dieta de brasileiros, norte-americanos e europeus. Hoje a fartura de açúcar produzida anualmente, se aproxima de 200 milhões de toneladas para uma humanidade de menos de nove bilhões de bocas. Na mesa da humanidade essa tendência avançou, inexoravelmente, com a lógica de uma ditadura, num crescendo que vem até os dias de hoje. O médico americano Robert Atkins observou o processo de dois quilos de açúcar por ano passar a oitenta quilos por pessoa em apenas onze gerações. Esta pode ser, talvez, a mais drástica mudança dietética na evolução do homem em seus 50 milhões de anos de existência.

O açúcar não é um alimento inocente. É um agente químico agressor do organismo, um corpo estranho na mesa que transformou o alimento do ser humano de meio de vida em meio de doença e morte. A ditadura do açúcar, uma ditadura de pacote tecnológico, impôs goela abaixo da humanidade a dieta açucarada moderna, a ração patogênica que empurrou o ser humano para a era das doenças crônicas, metabólicas e degenerativas. A historiadora Elsa Avancini referiu-se à sociedade colonial brasileira como uma sociedade montada para a produção de açúcar. Hoje, quinhentos anos depois, o mundo vive o apogeu da civilização do açúcar. Nas palavras do doutor Leão Zagury “uma sociedade estruturada afetivamente em torno do consumo de açúcar”.

 *Autor do livro “O Livro Negro do Açúcar”, presente no Google me PDF

3 comentaram em “AÇÚCAR – REVOLUÇÃO, DITADURA E CIVILIZAÇÃO

  1. Fernando Carvalho

    Amigo leitores e leitoras, aqui é o Fernando, autor do livro.

    Vimos que Gilberto Freyre constatou o “açucaramento da dieta” de europeus e brasileiros. E em 1633 um médico britânico constatou que o consumo de açúcar provocava uma série de doenças. Notem que da Idade Média para trás não se consumia açúcar nenhum. Antes do açúcar entrar na mesa, a humanidade convivia com as clássicas doenças infectocontagiosas. O busilis da questão é a associação entre o “açucaramento da dieta” e o advento das “doenças crônico-degenerativas”. A medicina faz isso? NÃO! Os médicos, nutricionistas e dentistas fazem? NÃO! Agora vejam que chocante, um TRAFICANTE DE AÇÚCAR norte-americano, Jack Taten da “The Sugar Association”, fez e disse: “Se alguém associar o açúcar a essas doenças (crônico-degenetativas), estamos MORTOS”. E no final do século XX as doenças do açúcar passaram a matar mais gente que as doenças clássicas.

    Meu livro não é apenas um livro em si, mas é justamente o instrumento dessa causa que é acabar com o açucaramento da dieta e com as doenças crônicas. Costumo dizer que a 1ª Lei Áurea acabou com os escravos da produção de açúcar. A 2ª Lei Áurea vai acabar com os escravos do consumo de açúcar e com as doenças causadas por ele.

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  2. Lu Dias Carvalho Autor do post

    Fernando

    Que texto interessante, onde você narra toda a história desse pozinho doce, mas amargo para a nossa saúde. A observação de Robert Atkins de que o uso de dois quilos de açúcar por ano passou a oitenta quilos por pessoa em apenas onze gerações é extremamente grave. E pior, são os pobres os que mais fazem uso do açúcar. Você já teve a oportunidade de ver o tanto de açúcar que fica no fundo de um copo de leite com o famigerado Toddy e demais achocolatados? Parabéns por seu alerta!

    Abraços,

    Lu

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    1. fernando carvalho

      Lu,
      dois quilos de açúcar por ano se consumia na virada dos séculos XVI para XVII. Hoje, na África tem países pobres que consomem menos de dois quilos por ano (por pessoa em média). Nós brasileiros estamos consumindo agora mais de 60 quilos de açúcar ao ano. Meu irmão me disse que ele comprava há alguns anos 90 quilos de açúcar por ano para ele, a mulher e dois filhos.

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