A MORTE DA LOBA

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Autoria do Dr. Ivan T. Large

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Pacientes com as mais diversas profissões sucedem-se na minha sala. O homem sentado agora à minha frente é professor de filosofia, como consta na sua ficha. Mas ele não esconde que tem outra profissão que não consta ne1a: artista transformista. Esse dualismo faz-me reviver uma noite remota, quando um velho professor experimentou o maior desapontamento da sua vida.

É uma noite quente. No canto de uma imensa sala, um potente alto-falante vomita, a todo volume, uma música em língua espanhola, no ritmo endiabrado de uma salsa. Ela conta a história de um sujeito, ao qual um médico teria dado apenas três meses de sobrevida por causa de uma doença incurável. Sem duvidar, nem um segundo, do inexorável prognóstico, nosso condenado resolve aproveitar os seus últimos dias da melhor maneira possível. Consegue nesse prazo, gastar agradavelmente todas as suas economias. No termo dos três meses, o “moribundo”, mais vivo que nunca e aparentemente cheio de saúde, a deduzir pela potência do seu timbre, mas na mais completa penúria, expressa o seu desespero neste refrão, onde interpela veementemente seu médico num tom reprovador: “Oh! Oh! Oh! Oh doutor!”

A infelicidade de nosso “epicurista” não parece muito preocupar um grupo de charmosas moças, a julgar pelo alegre rebolado executado em cadência e valorizado pela minissaia apertada, sob o olhar atento de clientes potenciais. A música alta, a luz pálida, o ar pesado, impregnado de um perfume ou para ser mais preciso de uma mistura de perfumes, a cara dos clientes, os seus olhares desabusados, a atitude debochada das moças insinuando-se no meio dos clientes sentados às mesas cambadas, cheias de garrafas vazias ao lado de copos sujos, onde moscas atrevidas vêm para descansar e saciar a sede. Todos esses ingredientes associam-se para compor um ambiente da mais pura decadência, digno das casas chamadas de “tolerância” ou simplesmente “bordéis”.

De repente, o ambiente muda. As poucas luzes da sala apagam-se, enquanto o foco de um projetor ilumina um palco, onde um apresentador anuncia que vai começar o espetáculo tão esperado da noite. Uma morena aparece, e começa a desabotoar lentamente o seu vestido de cetim vermelho, desvendando as suas formas apetitosas, ao som de uma música de Michael Jackson. Ao final da música, após livrar-se da última peça da sua roupa de baixo, um minúsculo tapa-sexo dourado, em forma de estrela, foge “pudicamente” da cena sob os aplausos frenéticos de uma plateia delirante.

O apresentador interrompe essa manifestação de entusiasmo, anunciando a próxima atração:

– Diretamente das maiores casas de espetáculo do mundo, única, maravilhosa, mirabolante artista de fama internacional: a Loba!

Parecendo mais faminta que famosa, o rosto emaciado recoberto por uma espessa camada de maquiagem, misturada com o suor, pingando em abundância, sob a luz forte do projetor, a Loba, que, na verdade, responde ao nome de batismo de George Gomes, vestida com um traje de noite mais brilhante que uma árvore de Natal, desfila lascivamente, sem despertar o menor interesse de um público vindo para admirar de preferência a sensual magia das formas femininas.

Quais sentimentos poderia um espetáculo de transformismo inspirar aos integrantes da conservadora sociedade afro-latino-americana haitiana dos anos oitenta? Curiosidade a alguns, piedade a outros, nojo e desprezo à maioria. Mas e esse homem? Sim, ele: esse pequeno velho vestido de um terno amarrotado e cerzido, segurando entre os dedos trêmulos, um pequeno copo de cachaça, a caminho dos seus lábios entreabertos de onde sai uma língua saburrenta, a fim de recolher a saliva que pinga no canto da sua boca, fixando, como hipnotizado, a aparição que o deixa ébrio de amor e de paixão? Paixão! Eu disse: paixão? Não pode ser possível!

Como mestre Damoclés Justo, respeitável professor de latim e grego no colégio estadual, homem pobre, mas digno, bêbado inveterado, mas defensor incondicional da moral e dos bons costumes poderia, contrariando as leis básicas da natureza, entregar-se a uma paixão homossexual? Todavia, nessa noite quente, nesse antro de perdição, sob os olhares incrédulos, zombadores, enojados, as evidências parecem contradizer a razão.

Mestre Damoclés é insensível a esses olhares. Não os vê! Insensível aos sarcasmos. Não os escuta! O calor do bordel não o incomoda. Não está num bordel! Está numa floresta encantada. Um vento fresco acaricia seu rosto. O perfume delicado dos jasmins enche agradavelmente suas narinas. Um castelo ergue-se na àfrente. Em cima do castelo, no meio de uma torre imponente, destaca-se uma pequena janela, onde a luz fraca de uma vela ilumina o tenro rosto de um ser que ele admira no silêncio da estrela das suas noites: a Loba, a mais sensual, linda, charmosa mu1her. O quê? A Loba ou mais precisamente George Gomes, uma mulher! Sim, pelo menos nos olhos de mestre Damoclés.

Os olhos de nosso acadêmico não têm mais a acuidade da sua juventude. Uma catarata por aqui, óculos escolhidos no tabuleiro de um vendedor ambulante, sem a devida prescrição de um oftalmologista por lá, sem contar o efeito da cachaça e pronto. A visão do nosso septuagenário não é das mais apuradas. E como a vista é a porta da imaginação, por essa porta defeituosa, a Loba havia penetrado sob a forma sedutora de uma Sofia Loren. E por mais incrível que pareça, nunca, mesmo nos seus escassos momentos de não embriaguez, mestre Damoclés Justo havia duvidado da feminilidade da sua Dulcinéia.

A Loba está no meio da sua performance: mexe sensualmente os lábios atrás de um microfone desligado, enquanto um alto-falante cospe uma música onde uma voz em “play-back” de mulher traída grita palavras de ódio contra o amante infiel. A nossa artista interpreta o papel de mulher raivosa com toda a força de seu coração. Parece um dragão furioso. Com o olhar em chamas, ela ergue um punho vingador na direção do público. Nesse exato momento, a sua abundante peruca negra havendo-se agarrado, por inadvertência, à sua pulseira, segue o movimento brusco do membro vingativo para descrever uma trajetória no ar que termina sobre a cabeça branca do professor apaixonado. Um delírio de gargalhadas levanta o público.

O mestre Damoclês fica mudo de estupefação. Os lábios trêmulos, vendo surgir, desesperado, a faces dura e careteira de um George Gomes, enquanto cai a máscara encantadora da Loba. Uma lágrima amarga escoa dos seus olhos cansados. A “sua” Loba está morta.

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2 comentaram em “A MORTE DA LOBA

  1. Matê

    A Loba: você pintou com cores realistas o ambiente daqueles que são marginalizados
    pela sociedade.

    Abraços Matê

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Matê

      O Dr. Ivan realmente contou com fidelidade esse acontecimento, presenciado por ele.
      Ele é um ótimo retratista de seu tempo.

      Abraços,

      Lu

      Responder

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