Autoria de Lu Dias Carvalho
Embora tenha chegado à Índia em julho, o escritor francês Marc Boulet decide aguardar o fim de outubro para iniciar sua experiência como um dalit. Preferiu deixar passar o tempo das monções, quando a vida dos miseráveis torna-se insuportável, em razão do excesso de chuva. Decide entrar em contato com um intocável, Raj Ram, limpador de latrinas. No primeiro encontro, explica-lhe que estuda a civilização indiana e que gostaria de ouvir sobre os seus costumes. Ele o aborda como um um estudioso.
Raja Ram, pertencente à casta dos dom, conta-lhe que ganha meio salário, fazendo faxina em um hotel e num escritório. Além disso, ainda faz trabalhos por fora, limpando fossas, encanamentos e privadas. O pagamento fica a critério das pessoas, que lhe pagam a quantia que querem pelo serviço. Possui duas filhas vivas. Mas já tivera quatro filhos. Uma menina morreu de tétano e o menino de disenteria. Sua mulher Lakshmi (nome da deusa da riqueza) espera outro bebê. Fala sobre o desprezo que as outras castas sentem por eles. Pelas leis indianas eles são iguais, mas as pessoas continuam a considerá-los intocáveis, de modo que um recipiente que ele usar, pertencente a alguém de outra casta, não pode ser lavado, tem de ser jogado fora.
Conta Raja Ram que antigamente, um brâmane que bebesse água no copo de um dalit, teria que beber urina de vaca, por um longo tempo, para se purificar. Relata que ao comprar pan (tabaco misturado a outros produtos e enrolado numa folha de bétele), se o vendedor souber qual é a sua casta, não lhe dará o objeto na mão, mas o jogará sobre o balcão. O mesmo é feito com o pagamento e o troco. Os de sua casta são sempre atendidos por último e devem ficar longe do balcão. Muitas vezes, o produto é jogado no chão.
Para que o leitor entenda melhor, os intocáveis dividem-se em várias subcastas de acordo com a profissão exercida. Por exemplo, aqueles pertencentes à casta dos dom (exercem a função de coveiros), são tidos como os mais impuros dos intocáveis. Ficam abaixo da casta dos mehtar (varredores de rua). Desprezados por esses. O mais paradoxal nessa mixórdia é que, mesmo pertencendo à casta considerada mais “impura” e abjeta, Raja Ram ainda carrega consigo muitos tabus e considera muitas coisas indignas e impuras. A verdade, segundo MB, é que os intocáveis sofrem com o sistema de castas, mas, mesmo assim, ainda se discriminam entre si, como fazem os seus opressores das castas ricas, dentro de um sistema extremamente complexo.
Raja Ram acredita na reencarnação de uma pessoa numa determinada casta, de acordo com suas boas ou más ações. Por isso, acha que todos os brâmanes são impolutos, donos de uma conduta exemplar em existências anteriores. Em contrapartida, aqueles que cometeram erros graves reencarnam como intocáveis. E que, se vive naquela situação é porque merece, pois foi uma má pessoa na vida passada. Por isso, aceita a sua posição e o que fazem com ele.
O novo amigo de Marc Boulet é um hindu fervoroso. Diz que frequenta um templo na sua comunidade, mas que o sacerdote não é um brâmane, mas um de sua casta. O culto de Shiva é celebrado duas vezes ao dia: ao nascer e ao pôr do sol. Sua esposa Lakshmi, mesmo grávida, levou uma surra por ter batido no cachorro do vizinho. Ninguém fez nada. Na favela há muito tumulto e roubos. Ela alugou o serviço de uma parteira, pois o hospital é muito caro. A parteira que fará o parto diz que sente o sexo do bebê, apenas apalpando o ventre da mãe. Diz que será um menino.
Raja Ram diz que, se for um filho, sua esposa será esterilizada, mas se for menina, não, pois precisa de um filho, para acender a sua pira, quando morrer. Desde já se preocupa com os dotes que deverá pagar pelo casamento das duas filhas. E, como as filhas vão morar na casa dos maridos, ele e a esposa precisam de um filho para não envelhecerem sozinhos. Ao lhe ser perguntado sobre o porquê de se firmar uma união de duas crianças com antecedência, já que a noiva só deitará com o noivo após os 18 anos de idade, responde:
– Por dois motivos. Primeiro, é dever dos pais hindus deixarem os filhos casados, antes de morrer. Segundo, o pai do menino recebe o dote mais cedo, de modo que o montante pago pelo pai da menina é menor na atualidade, em função da galopante inflação indiana.
O dote varia em função da casta e do meio social. É a maior causa de endividamento das famílias que casam as filhas, assim como de divórcios e morte de pais que não cumprem o prometido. Em função do dote, estudos comprovam que a taxa de mortalidade das meninas é bem maior. Os pais alimentam melhor os meninos, de olho no dote. Essa é uma das causas responsáveis por haver mais homens na Índia do que mulheres. A mulher é muito desvalorizada.
A seguir o capítulo 7…
Nota: Imagem copiada de http://www.pime.org.br/mundoemissao
Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Editora Bertrand Brasil.
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