Autoria de Lu Dias Carvalho
Na pele de Ram Munda, Marc Boulet adormece entre os dalits. O frio do amanhecer penetra-lhe fundo no corpo. Seus vizinhos acendem uma fogueira com madeira, plástico, papelão e tudo o mais que possa pegar fogo. O plástico queimado enche o ar de um cheiro ruim e queima os olhos com a sua fumaça. Ao lado do fogo, seus companheiros de sina tentam se aquecer. Alguns fumam biri. Outros parecem perdidos no tempo, num outro mundo.
Ao levantar-se, Ram Munda olha seu rosto de relance, no pequeno espelho que carrega, e se espanta com a sua aparência suja e triste, bem parecida com a dos intocáveis. Vai até um mictório (em híndi significa casa da urina) público, que fica perto do estacionamento dos trens. É feito de três paredes finas, sem teto e é aberto para a calçada. O chão encontra-se coberto de cocô. E deve haver uns 10 centímetros de altura de urina represada. A fossa está entupida e o lugar é terrivelmente fedorento. É preciso muito esforço para usar aquele lugar.
Como todo mundo, Ram Munda urina da parte externa para dentro. O jato de urina mistura ao pó e excrementos do chão e volta para seus pés, enlameando-os, unindo-se à poeira que neles se encontra. Sabe que não os pode lavar, para não tirar a cor da pele. Precisa manter o seu disfarce, continuando como se encontra. Ele tem vontade de vomitar. É-lhe impossível defecar naquele ambiente. Sai à procura de um lugar menos imundo, pois ali seria necessário usar botas para entrar. Maior humilhação não pode haver para um ser humano sujeito àquela imundície.
A estação ferroviária começa a ganhar vida com a chegada dos vendedores ambulantes. Na Índia, os trens possuem grades de ferro nas janelas, que permanecem abertas e possibilitam aos mendigos pedirem esmolas através dessas. E Ram Munda opta por pedir esmola dessa mesma maneira. Sente vergonha, mas é preciso seguir em frente. Dirige-se a vários viajantes, um de cada vez, e implora:
– Babu (senhor), me dá dinheiro!
Nenhuma ajuda lhe é dada. Todos o ignoram, ou lhe fazem um sinal para que se afaste. Sabe que são tantos os mendigos, que não mais despertam a piedade das pessoas. Eles fazem parte do cotidiano, e ele é apenas um elemento a mais no cenário. Mandam-no trabalhar. Depois de muito mendigar, ganha vinte centavos de rúpia de um senhor. Leva o dinheiro até à testa, em sinal de respeito, como se tivesse recebido uma doação dos deuses. Sente-se imensamente feliz. E assim, continua esmolando em vários trens, que se preparam para deixar a estação, dirigindo-se para os mais diferentes destinos.
Agora, já cansado, vai para a passarela, onde tira o prato do saco, bota duas moedas dentro e o coloca a seus pés, esperando que lhe joguem moedas. Mas as pessoas ignoram-no, quando não o fuzilam com um olhar de nojo, frieza ou indiferença. O limpador da passarela desaloja-o. Primeiro com a poeira que lhe joga no corpo, ao varrer. E depois com dois baldes de água, para lavar o local. Grita como se estivesse a enxotar um cão sarnento:
– Sai daí!
Sem falar nada, ele obedece com a cabeça baixa. Ainda traz o medo de ser escorraçado, pois mesmo entre os mendigos, há uma máfia que delimita o território para pedir esmolas. Sente sede. Dirige-se a uma torneira, cuja água não é tratada ou fervida. Sabe que está cheia de germes. Mas, como um dalit, não pode comprar água mineral no botequim da estação. Mesmo sabendo que está correndo o risco de pegar ameba, hepatite ou tifo, doenças endêmicas no país, bebe cerca de um litro daquela água, com suas mãos sujas.
Sua esposa vem para vigiá-lo de longe. Passa inúmeras vezes por ele, sem o notar. Sabe que é difícil ser reconhecido em meio a tantos mendigos. São todos seres anônimos e insignificantes. De modo que a solidão é infinitamente maior do que a miséria em si. Ele sente vontade de chorar… e chora copiosamente.
A seguir o capítulo 8…
Nota: Imagem copiada de http://interata.squarespace.com
Fonte de pesquisa:
Memórias de um Dalit/ Marc Boulet
Views: 1