Autoria de Lu Dias Carvalho
Ram Munda tem a impressão de estar naquela vida há muito tempo. Já aprendeu todas as manhas do ofício, inclusive acostumou-se a fazer suas necessidades em locais sujos e à vista das pessoas, sem ao menos se sentir constrangido. Sabe que ninguém o olha. Ele não existe aos olhos do mundo. Não passa de uma coisa insignificante aos olhos do mundo.
Cães, ratos e vacas vagam pelas plataformas da estação ferroviária ao lado dos mendigos. É comum ver homens, mulheres e crianças enxotarem com o pé esses animais, disputando o lixo com eles. Ali nada se perde. Os mendicantes estão cobertos por placas de sujeiras, têm os cabelos embaraçados, viscosos e cerdosos. Alguns possuem apenas um pano cobrindo o sexo e um trapo jogado nas costas. Falam sozinhos, possuem o olhar parado, comem restos e dormem no chão duro. Chafurdam em montes de lixo com os animais. São selvagens e solitários. Parecem tomados pela loucura.
Ram Munda, como os demais pedintes, não sente prazer em nada. Basta apenas ir levando a vida, sem nenhum tipo de esperança, à espera do último suspiro. Não há contato entre os mendigos, a menos que façam parte da mesma família. Cada um está apenas voltado para si mesmo, preocupado com a própria sobrevivência, se é que ainda não se transformou em um autômato.
A via-sacra dos mendigos repete-se em todas as paradas dos trens, de modo que os passageiros já se tornaram indiferentes à miséria que se apresenta diante de seus olhos: mendigos esfarrapados, leprosos e monstros humanos com membros disformes (os homens elefantes). A rotina acaba com qualquer forma de compaixão. Os passageiros podem ser divididos nas seguintes categorias:
• os de olhar impassível, e, que ficam mudos ao serem abordados;
• aqueles que levam a mão direita à testa, como se abençoasse o mendigo;
• os que, em tom hipócrita ou agressivo, mandam que o mendigo vá pedir esmola em outro lugar, deixando-os em paz;
• os avarentos que pregam lição de moral.
As populações tribais (aborígenes) formam a classe social mais miserável e mais desprezada da Índia. É desumano ver pessoas que as mandam trabalhar, pois sabem que não têm possibilidade alguma de acesso a qualquer tipo de trabalho. Não lhes é facultada nem a possibilidade de chegarem perto de alguém para pedir emprego.
Nos trens, uma ínfima minoria de milionários esconde-se em compartimentos refrigerados, com janelas de vidro fumê, sempre fechados. A eles nenhum acesso é possível, pois os inspetores não permitem que os miseráveis subam nos vagões.
Ram Munda sente-se aviltado, envergonhado e desgostoso, quando as pessoas nos trens jogam-lhe restos de alimento no prato. Espera que o trem parta, para jogar fora. Sente-se como um legítimo mendigo indiano, imundo e desdenhado pela sociedade. Sabe que essa o odeia tanto, quanto ele tem aversão por ela. A sociedade enxota-o como um cão sarnento e faminto, sem que nunca possa reagir. Sabe que não é um cidadão, mas um farrapo humano ou bicho.
São cruéis e hipócritas aqueles que abençoam os mendigos com as mãos e os aconselham a pedir esmolas em outros lugares. Eles, os miseráveis, não precisam de bênçãos, mas de alimentos para continuarem existindo. A alma não pode ser alimentada, quando o estômago está vazio como um poço seco. É comum encontrar pessoas agressivas entre os viajantes. Levantam a mão e ameaçam o pedinte, fazendo chacota como hienas:
– Vai cair fora, ou terei de bater em você?
Não restando alternativa ao miserável, senão ir embora, pois sabe que não possui direitos.
Ram Munda volta à pele de Marc Boulet, no pensamento, e lamenta por ter sido tão indiferente, quando se encontrava com os dalits. Pois hoje tem raiva dos que o rejeitam. Raiva não, ele tem ódio. Gostaria de ter poderes para fazê-los engolir o desprezo que lhe dispensam. Sabe que, apesar de sujo e inútil, continua sendo homem, semelhante a todos os outros humanos, embora nada possa mudar a sua vida. Não se importaria se apenas recusassem a lhe dar esmola. Mas não suporta o olhar de nojo e agressividade, acompanhado de palavras desagradáveis.
Ram Munda apenas se preocupa em comer pão, beber água, fumar biri e dormir o máximo que puder, de modo a perder a consciência, esquecendo-se de que existe. Quando contar a sua metamorfose para os amigos, muitos irão julgá-la divertida, como se fora um baile de máscaras. Não sentirão o principal: seu sofrimento moral. Jamais poderia ter imaginado que ser sujo, rebaixar-se a mendigar, tornando-se um objeto de desprezo, e tornar-se um intocável, fosse tão doloroso. Ninguém poderá imaginar a sua aflição, sua solidão e vergonha.
Na Índia, dentro da sociedade hierarquizada, quem “pede” ao outro é considerado inferior. Ao mendigo só resta a submissão, e calar-se em toda e qualquer circunstância, pois ele não possui o mais elementar dos direitos.
A seguir o capítulo 9…
Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Editora Bertrand Brasil
Nota: Imagem retirada de http://toligadonesse.blogspot.com.br
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Rui
Trata-se de um cigarro artesanal, enrolado em folhas secas, vendido a unidade ou em maços, que é usado pelas castas inferiores e pelos “dalits”, que nem castas possuem.
A vida ali não é fácil, ainda assim, os indianos zombam das outras culturas e acham que a deles é a melhor do mundo.
Abraços,
Lu
Li este texto e fiquei muito triste; no meu país nem cão é tão humilhado assim. Aqueles que só abençoam o menino são hipócritas, pois ele precisa que lhe deem comida e não de uma bênção. É muito triste ver crianças e adultos serem humilhados duma forma tão cruel. Vivemos num mundo tão cruel, e o que me irrita é que não precisava ser assim.
Lu o que é biri, é alguma droga?
Abraços Lu
Rui Pedro