Contava meu avô que certa fazendeira de nome Dulcina Gangá era a matriarca de uma numerosa família. Tudo tinha que passar sob a sua supervisão, enquanto o marido, Leocádio Gangá, não apitava absolutamente nada. Diziam as más línguas que ele não dava nem mesmo nome às vacas, sem a anuência da esposa. Todos abaixavam a cabeça para ela. A importância da senhora Gangá podia ser medida pelo número de pedidos de bênçãos que recebia. Essas vinham desde sua prole copiosa, passando por seu batalhão de servos e chegando às gentes das redondezas. Isso rolava o dia inteirinho de meu Deus, deixando a matrona toda orgulhosa. Era um tal de “A bênção, dona Dulcina!”. Ela levantava a cabeça e, mais poderosa do que um bispo, respondia empertigada.
– Eu te abençoo, criatura de Deus!
Como pode observar o leitor, não era Deus quem abençoava, mas a dita com toda a sua altivez. Mas as bênçãos de dona Dulcina eram banhadas pelo suor de seus servos, que não tinham um descanso sequer. E aqueles eram tempos difíceis em que não se cogitava sobre leis para proteger o trabalhador. Quem dava o preço e estipulava o número de horas trabalhadas era o patrão e ponto final. Assim, corria a boca pequena que os empregados de dona Dulcina “enquanto descansavam carregavam pedras”. Que infelizes! A miserável mais parecia um carrasco com seu chicote. Não podia ver um servo encostar o traseiro no chão que o maldizia e ameaçava mandá-lo embora. Vigiava tudo, desde as plantações de capim até os ovos que as galinhas botavam.
Num certo dia, com o sol de rachar a moringa, a fulana foi para o eito vigiar os trabalhadores que plantavam milho. Ali foi mordida por uma cascavel. Alguns apregoavam que o veneno da rezingona combateria o da cobra, mas outros afirmavam que já era finada. Acertaram os últimos. Para carregar seu caixão foram necessários cem homens, talvez cinquenta, ou quiçá dez, tamanho era o seu peso. Dizem os supersticiosos que a Virgem Madrinha, protetora dos fracos, enchera o ataúde da defunta com as pedras que ela, a esganada, os obrigara a carregar.
Contei este caso para um amigo, filho da cidade mineira de Nova Lima e, segundo ele, o provérbio “enquanto descansa carrega pedra” tem sua origem na Mina de Morro Velho, situada no entorno de sua cidade, tendo ali nascido final do século XVIII, quando se utilizava mão de obra escrava. Os mineiros, todos eles escravos, trabalhavam em dois turnos. Cavacavam em busca de ouro durante um período de seis horas e descansavam outras seis. Mas na verdade não se tratava de um descanso como conhecemos hoje, pois os coitados mudavam apenas de serviço. Aqueles que paravam de escavar eram obrigados a carregar as pedras que haviam tirado da mina.
Views: 340
Lu
É um dito popular muito coerente, acontece com muita gente, todos os dias. As pessoas que trabalham fora normalmente quando chegam em casa, exaustas, ainda têm os afazeres domésticos e os filhos para cuidar! Já passei por isso e posso dizer que enquanto eu descansava, carregava pedra. Ou melhor, não havia descanso, só pedras para carregar!
Marinalva
Não é fácil trabalhar fora e ainda cuidar de casa e da família. Ainda bem que hoje em dia os homens aprenderam que precisam trabalhar em casa, ajudando suas mulheres. Tarefas divididas…
Abraços,
Lu
Lu
“Enquanto descansa carrega pedra”.é muito interessante esse dito popular. Pode ser que a frase começou na Mina de Morro Velho, mas penso que a origem dos fatos foi nas minas de carvão do norte da França. O livro “Germinal” de Émile Zola mostra a vida miserável dos trabalhadores que não tinham descanso e até se alimentavam trabalhando nessa minas. Ele descreve também sobre as primeiras organizações políticas e sindicais dos trabalhadores e detalha a primeira greve provocada pela redução dos salários. Para escrever o livro, ele ficou dois meses trabalhando como mineiro na extração de carvão. Recomendo esse livro aos leitores do blog.
Adevaldo
O livro “Germinal” é muito importante e deve ser lido por todos aqueles que querem conhecer a história dos mineiros (trabalhadores das minas). Há inclusive um filme com o mesmo título. Quanto ao dito popular, imagino que possa ter surgido um parecido na França, que leva à mesma significação. Vou pesquisar sobre o assunto.
Abraços,
Lu
Este provérbio é muitíssimo conhecido, minha mãe dizia que sua avó falava para ela, sempre que parava o trabalho de casa.
Laudinei
Este provérbio é realmente muito conhecido em todas as regiões do Brasil. Agradeço a sua visita e comentário. Volte sempre!
Abraços,
Lu
Lu
Muito interessante a origem deste provérbio. Deve ter nascido mesmo na extração de ouro da Mina de Morro Velho. A escravidão é uma mancha vergonhosa de nossa história.
Nel
A Mina do Morro Velho tinha antigamente um slogan na sua entrada, escrito provavelmente por um dos operários, que dizia: “Aqui tira o ouro e deixa o couro”, o que retrata a vida dos trabalhadores ali.
Beijos,
Lu