Autoria de Lu Dias Carvalho
Caravaggio trouxe um realismo para a pintura em suas ardentes representações tanto de temas sagrados como seculares. Pintando diretamente sobre suas telas, usando efeitos exagerados de luz e sombra, ele interpretou respeitáveis santos e humildes pecadores, através das lentes do sofrimento e da emoção humana. A arte de Caravaggio foi revolucionária, sua vida foi trágica e seus seguidores foram inúmeros (David Gariff)
O que Caravaggio desejava era a verdade. A verdade tal como ele a via. Não nutria preferência alguma pelos modelos clássicos nem respeito pela beleza ideal. Queria romper com os convencionalismos e pensar a arte por si mesmo. (E.H. Gombrich)
Em arte tudo o que não for tirado da vida é frivolidade. (Caravaggio)
Pelo horror que sentia diante dos ideais tolos, Caravaggio não corrigia nenhum defeito dos modelos que parava na rua para fazê-los posar. Vi algumas de suas pinturas que foram recusadas por pessoas que lhes haviam encomendado. O reino da feiura ainda não havia chegado. (Stendhal)
Caravaggio era um pintor preocupado com a verdade tal como a via, de modo que representar os modelos clássicos ou ter qualquer forma de compromisso com a “beleza ideal” não faziam parte de seus objetivos. Tanto é que desprezava aqueles que se recusavam a retratar a fealdade. Considerava-os fracos e indignos de serem levados a sério. Por isso, desde cedo procurou afastar-se das convenções e repensar a arte de uma forma diferente, rejeitando a beleza idealizada da arte renascentista, desprovida de realidade, de verdade natural e de honestidade emocional. Pouco lhe importava que a natureza retratada fosse feia ou bela, interessava-lhe apenas a verdade.
O pintor era intransigente no estudo que fazia da natureza e, se a realidade da vida era crua, ainda assim deveria ser retratada. O pintor recusava-se a seguir as normas estabelecidas pelo Concílio de Trento que exigiam que a representação pictórica das Escrituras Sagradas tivesse como objetivo edificar o povo ignorante, mas sem perder a dignidade e a nobreza da arte. Ele se colocou contra o ideal de beleza do Renascimento, ao mostrar o mundo de uma forma diferente e extremamente realista, chocando muito de seus contemporâneos.
Como acontece com quase todos os gênios, Caravaggio foi incompreendido por muitos de seus contemporâneos que achavam que ele não tinha respeito pela beleza e pela tradição, tendo como único objetivo chocar o público. Por isso, alcunharam-no de “naturalista”, “gênio do mal”, o “anti-Cristo da pintura” e de “il tenebroso”. Ele não copiava os modelos tradicionais, pintava os modelos vivos sem lhes retirar as cicatrizes ou as marcas do tempo. A verdade é que seus detratores não foram capazes de perceber a seriedade com que ele executava seu trabalho, tanto é que, quatro séculos depois, sua obra continua a encantar gerações, pois a sua contribuição para a arte da pintura jamais poderia ser ignorada.
Segundo os estudiosos da obra de Caravaggio, é nos quadros religiosos que ele deixa a sua grande contribuição à história da arte, com seus temas impregnados de verdade, onde é revelada a dimensão humana do sofrimento, criando uma vigorosa mistura entre o terreno e o espiritual, o real e o místico, sendo capaz de captar o momento exato da dor, expondo-a em toda a sua crueza. Na sua tela, Judite e Holofernes, aparece pela primeira vez o fundo preto (tenebroso), destacando-se sobre o mesmo as figuras iluminadas por um processo de luz artificial, elementos que se tornaram típicos de sua obra.
Caravaggio trabalhava com efeitos de luz e sombra exagerados. Suas figuras são vistas em perspectiva reduzida, movimentos diagonais e fortes toques de cor em oposição aos temas principais. Através da técnica usada seus personagens refletem uma intensa emoção, embora o seu estilo de pintura pareça muitas vezes confuso e desorientado, eles são verdadeiros, poderosos e ousados. Foi o primeiro dos pintores a adotar o estilo “tenebrista”, cujo objetivo era destacar a escuridão e não a luz. Sendo que em sua obra destacam-se as trevas e a violência. Em várias de suas telas são mostrados espadas, punhais e facas, assim como decapitações e sangue. E, segundo seus biógrafos, embora ele cumprisse os prazos de entrega de suas obras, não aguentava trabalhar por períodos longos, precisando da companhia de seus tortuosos amigos.
Muitas telas de Caravaggio foram rejeitadas sob o argumento de que eram muito realistas e alguns patronos religiosos argumentavam que certas obras eram blasfematórias, mas essa não era bem a verdade, pois o pintor esforçava-se apenas para retratar fielmente o mundo, de modo que suas figuras tivessem o maior compromisso possível com a verdade. Se a sua franqueza resultava numa representação ousada da realidade, era assim que tinha que ser no seu compromisso com a verdade.
A arte de Caravaggio — apesar de incompreendida no seu tempo — angariou muitos seguidores pela Europa, os chamados “caravaggisti” que imitavam seu estilo, originando escolas de seguidores, cuja obra é definida como “caravagesca”. Entre eles, podemos destacar grandes nomes da pintura como Diego Velázquez que ficou muito sensibilizado com o estilo do pintor, com as descobertas feitas por ele no campo da pintura e o modo como abriu mão das convenções em prol da observação desapaixonada da natureza. Rembrandt, assim como Caravaggio, via na verdade e na franqueza muito mais valor de que na harmonia e na beleza. Embora tenha sido apreciado por poucos de seus contemporâneos, artistas subsequentes viram nele um dos mais geniais mestres.
Os contrastes entre luz áspera e quase cegante, e sombra, sempre profunda, carregam a obra de Caravaggio de grande religiosidade e intensidade dramática, trazendo à arte sacra um sentimento de realidade. Suas figuras parecem reais e palpáveis, como se suas ações estivessem acontecendo no momento em que o observador as vê. A cena destaca-se com uma honestidade tocante. A técnica do “chiaroscuro”, usada pelo artista, embora exibida um século antes por Leonardo da Vinci, foi aprimorada por ele.
É interessante conhecer o recurso científico usado por Caravaggio para produzir o seu jogo imprescindível de luz e sombra. Ele usava um quarto com paredes negras (câmara escura) no qual inseria fachos de luz nos locais que desejava colocar em evidência. Para a época, a sua experimentação era fantástica, bem à frente de seu tempo.
Embora os puristas criticassem-no por não ter educação formal, inclusive faltando-lhe o uso do esboço, isso não o preocupava. Ele simplesmente desenhava direto sobre a tela, pintando por cima, não fazendo uso da tradicional intervenção do desenho, resultando numa obra admirável. O artista achava que a introdução de uma ideia preconcebida na composição tornava-a inverídica. Tanto os academicistas quanto a Igreja ficaram escandalizados com sua postura. O seu talento para as naturezas-mortas era extraordinário, tanto é que o biógrafo Giovanni Pietro Belloni escreveu que Caravaggio foi o primeiro pintor a transformar uma natureza-morta em um gênero plástico autônomo. Cesto de Frutas é a única obra sobrevivente em se tratando de frutas.
Enquanto os pintores de então só conseguiam reproduzir certos temas em ambiente natural, Caravaggio retratava-os em locais escuros e sem outros elementos, certo de que a luz e as cores haveriam de dar-lhes formas em contraste com as sombras. E, apesar das rígidas normas que cerceavam a liberdade artística na época, — principalmente por parte da Igreja — o pintor botou no lugar dos santos personagens humanos retirados das ruas.
No seu tempo, Caravaggio trabalhou com os mesmos temas em voga, religiosos e mitológicos, mas com a diferença de que transformou a visão do mundo sobre a arte. Dava a objetos e personagens a mesma relevância, questionando a visão renascentista de antropocentrismo. A partir do século XX suas inovações passaram a ser compreendidas com profundidade e sua obra passou a ocupar um lugar de destaque na história da arte. Tanto a sua vida pessoal quanto a sua obra continuam inspirando a arte contemporânea em seus vários campos.
Caravaggio trouxe para a pintura o mesmo contexto social no qual estava inserida a sua vida. Fez uso da luz artificial, optando antecipadamente pelos efeitos e reflexos a serem registrados, de modo que seus personagens saltam da escuridão, captados pela luz, estabelecendo o papel de cada um na trama representada, sem disfarçar a realidade que foi atentamente observada por ele. Luz e sombra foram uma constante na vida do grande pintor, tanto na sua arte quanto na sua vida pessoal.
Existem apenas 62 telas de Caravaggio até agora, reconhecidas como autênticas. A sua primeira tela conhecida é Rapaz Descascando Fruta (acima) e dela fez inúmeras cópias para se manter.
Nota: Rapaz Descascando Fruta
Ano: 1593
Material: óleo sobre tela
Dimensões: 75 x 64 cm
Localização: Long Collection, Roma, Itália
Fontes de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
A história da arte/ E. H. Gombrich
Los secretos de las obras de arte/ Taschen
Revista Veja/ Maio/ 2012
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Lu,
Belo texto. Realmente, os gênios são incompreendidos, pois muitas vezes transcendem aos paradigmas da época em que vivem. Luz e sombras, numa pintura genial.
Abraços,
Beto
Beto
Este é o paradoxo dos gênios: situar-se bem além de seu tempo.
Por isso, levam uma vida tão sofrida.
Abraços,
Lu