Autoria de Lu Dias Carvalho
Aproximando-se da aldeia para onde iam, deu ele a entender que ia para mais longe. Mas eles o constrangeram, dizendo: Fica em nossa companhia, porque é tarde e o dia já declinou. Ele entrou para ficar com eles. (Lucas 24:28-29)
Esta cena religiosa é uma das mais belas pinturas de Caravaggio. Narra a passagem bíblica em que Cléofas e Pedro (possivelmente), entristecidos com a morte do Mestre, resolvem caminhar até a aldeia de Emaús. Durante o trajeto, um desconhecido agrega-se à companhia dos dois. Ao chegar a Emaús, o pequeno grupo detém-se em uma estalagem para comer. Antes da ceia, os dois discípulos surpreendem-se ao ver o desconhecido abençoar o pão. A seguir, descobrem que se trata do Cristo ressuscitado, que repete o mesmo gesto feito na Última Ceia.
Na composição, que se estrutura em torno do gesto eucarístico do Mestre, Caravaggio retrata quatro personagens: Cristo, os dois apóstolos e o estalajadeiro, todos a meio corpo. A cena é mostrada no exato momento em que Jesus abençoa os alimentos. Para qualquer um dos personagens que se olhe, seus gestos apontam ao observador a figura de Jesus.
Cléofas, de barba preta e vestes rotas, sentado de costas para o observador, à esquerda da tela, faz menção de se levantar, segurando os braços da cadeira com suas mãos fortes e rudes. Uma rasgadura no seu casaco mostra um pedaço do tecido branco de sua camisa, técnica usada por Caravaggio para acentuar o escorço (Aur.: Art. Plást. Desenho ou pintura que representa objeto de três dimensões em forma reduzida ou encurtada, segundo as regras da perspectiva.). Cléofas é o único apóstolo mencionado pelo nome na versão de Lucas.
Pedro, à esquerda de Jesus ressuscitado, abre os braços em forma de cruz, lembrando o martírio do Mestre. Seus cabelos estão ralos e sua barba esbranquiçada. A concha em suas vestes identifica-o como peregrino. Sua mão esquerda parece precipitar-se para fora da tela e a direita para dentro. O que leva a acreditar que se trata do apóstolo Pedro é a presença de uma concha em suas roupas.
Cristo encontra-se no centro da composição, de frente para o observador, com os olhos voltados para a mesa, enquanto ergue o braço direito para abençoar o pão. É representado como um jovem forte, imberbe, com os cabelos cacheados caindo sobre os ombros, contrastando com o aspecto envelhecido e esfarrapado dos dois apóstolos. Sua sombra projeta-se na parede, às suas costas, criando uma auréola que evidencia ainda mais a sua figura divina. Não se trata de um Cristo distante e inalcançável, mas sim de um Cristo que pode ser visto, ouvido e abraçado. E tudo na composição aponta para ele.
O hospedador, que figura entre Cristo e Cléofas, observa sereno e atentamente o Mestre, enquanto apoia sua mão esquerda no cinto, sem compreender o que se passa ou quem sejam aquelas pessoas. Sua tranquilidade contrasta com o espanto e a afobação dos dois discípulos, ao descobrirem que é o Mestre quem está ali entre eles.
Sobre a mesa estão: uma cesta de frutas, a carne dentro de um prato, duas jarras, sendo uma de louça e outra de vidro e um cálice. Todos os objetos projetam sombra na mesa, sendo que a cesta com frutas projeta uma sombra em forma de peixe, símbolo dos primeiros cristãos. E todos os elementos possuem uma simbologia. O pão e o vinho referem-se à Eucaristia. As uvas referem-se ao vinho. A maçã machucada e os figos já estragados simbolizam o pecado original, ou seja, a Queda do Homem, enquanto as romãs simbolizam o triunfamento de Cristo que, ao ressuscitar, acabou vencendo o mal. Alguns veem um rabo de peixe na sombra que a cesta com frutas projeta na mesa, à direita, considerando-o o símbolo dos primeiros cristãos.
A cesta de frutas em primeiro plano, traz a sensação de que poderá cair da mesa a qualquer momento, oscilando na sua beirada. A toalha branca sobre a mesa, o guardanapo no colo de Pedro e o lenço amarrado no braço direito do hospedeiro dão luminosidade à composição. A visão frontal e a parca profundidade da cena, assim como o lugar vago bem em frente ao Mestre, fazem com que o observador sinta-se convidado a sentar-se à mesa ou se sinta na cena inserido.
Caravaggio transpôs a cena para o seu tempo, ambientando-a numa taberna romana. E mais uma vez criou polêmica ao representar Cristo jovem, gordo e um pouco feminino, sem barba, tendo à frente, sobre a mesa, frutas que estariam fora da estação. O realismo com que tratava os temas religiosos, como apóstolos que se parecem com trabalhadores, angariou a reprovação veemente do clero.
Na obra, Caravaggio usa sua técnica concebida, o tenebrismo, que consiste no uso de um fundo escuro, algumas vezes completamente negro, onde faz a incidência de focos de luz sobre os detalhes da pintura que quer destacar.
Curiosidades:
1.Caravaggio pintou uma segunda versão da Ceia em Emaús (hoje na Academia de Belas Artes de Brera , Milão), em 1606, onde acrescenta mais uma personagem: a mulher do estalajadeiro. Em comparação com a primeira, os gestos das figuras são muito mais contidos, tornando a presença mais importante do que o desempenho. Esta diferença possivelmente reflete as circunstâncias da vida do pintor, naquele momento (ele havia fugido de Roma como um fora da lei após a morte de Ranuccio Tomassoni), ou se trata apenas da contínua evolução de sua arte.
2. Ceia de Emaús é uma das primeiras aparições de Jesus após a ressurreição e à descoberta do túmulo vazio. Relata uma refeição que Jesus teve com os dois discípulos após o encontro na estrada, tornando-se um tema muito popular na arte. O episódio está descrito em Lucas 24:13-35, onde se lê também a expressão “fica conosco, Senhor” (em latim: Mane nobiscum Domine), que inspirou diversos textos, orações e canções.
3. Entre outros artistas, que pintaram o jantar, estão Jacopo Bassano, Pontormo, Vittore Carpaccio, Philippe de Champaigne, Albrecht Dürer, Benedetto Gennari, Jacob Jordaens, Marco Marziale, Pedro Orrente, Tintoretto, Titian, Velázquez e Paolo Veronese. O jantar também foi tema escolhido por um dos mais bem-sucedidos falsários de Vermeer, Han van Meegeren.
Ficha técnica:
Autor: Caravaggio
Data: 1601
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões: 141 x 196 cm
Localização: Galeria Nacional de Londres
Fonte de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
A história da arte/ E. H. Gombrich
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Leitura de imagem muito elaborada, achei perfeita!
Maura
Fico satisfeita ao saber que tem valido a pena embrenhar-me nas pesquisas, para levar o melhor possível aos leitores. Muito obrigada por sua avaliação. Foi um grande prazer receber a sua visita e comentário. Volte sempre e fale sobre este espaço para seus amigos.
Abraços,
Lu