MESTRES ANTIGOS E ORIGINALIDADE (Aula nº 23)

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Autoria de Lu Dias Carvalho

                                                    

Os mestres do passado — egípcios, chineses ou bizantinos —, em sua maioria, não traziam consigo a noção de “originalidade” como vemos hoje. Um artista medieval da Europa Ocidental não seria capaz de compreender o porquê de se inventar maneiras diferentes para construção de uma igreja ou de representar as Escrituras Sagradas, por exemplo, se as existentes serviam prontamente para tais fins. Tampouco ele se sentiria incomodado ao ter que representar algo em conformidade com o que já havia sido feito. Um mecenas medieval, ao fazer uma encomenda, não queria que ela fugisse ao senso comum, ou seja, ao modo como vinha sendo representada. Não lhe interessava a criatividade do artista, mas que executasse a obra o mais parecida possível com as já existentes. Assim sendo, a criatividade era pouca exigida do artista. As duas ilustrações acima, às quais chamaremos de “A” e “B”, explicam melhor o assunto.

A ilustração “A” refere-se a uma página de uma Bíblia cristã, criada na corte do imperador medieval Carlos Magno. Apresenta a figura de São Mateus a escrever o Evangelho, pois era comum que livros gregos e romanos retratassem o autor na folha de rosto. A imagem do evangelista escrevendo tinha que ser uma cópia o mais fiel possível daquela já conhecida. O corpo do santo apresenta-se envolvido em uma toga branca em conformidade com a maneira clássica. Sua cabeça está modelada em várias tonalidades de luz e cor. Essa observância mostra-nos que o artista medieval preocupou-se muito em apresentar uma composição bem feita de um modelo já conhecido e venerado. Enquanto isso, o pintor da ilustração “B” provavelmente tinha diante de si o mesmo modelo antigo, ou muito parecido, de São Mateus, relativo aos primeiros templos cristãos, o mesmo que usara o pintor da ilustração “A”.

A ilustração “B” apresenta o evangelista sentado, segurando um tinteiro de chifre na mão esquerda que repousa sobre um suporte medieval apropriado para a escrita, enquanto segura uma pena com a direita. Apesar de diferentes, as duas ilustrações retratam o mesmo tema: São Mateus a escrever o Evangelho. Contudo, algo muito especial difere uma composição da outra — a originalidade. Enquanto o pintor da ilustração “A” tentou ser fiel ao modelo original o máximo que podia, o da figura “B” buscou representar o santo de uma maneira diferente, o que era extravagante para sua época. Ele retratou o evangelista de acordo com a sua percepção, sem nenhum compromisso com a fidelidade ou com a tradição cristã.

O fato de o criador da figura “B” não limitar sua composição a uma mera cópia, mas, sim, transmitir através dela seu sentimento e devoção, não pode classificá-lo como um pintor ruim, incapaz de reproduzir o modelo que certamente lhe fora apresentado na encomenda. Tampouco a representação de São Mateus com olhos arregalados e mãos imensas faz dele um pintor ignorante ou inepto. Seu objetivo, ainda que fugisse à regra comum à época, era o de que o santo repassasse uma expressão de intensa concentração, imbuído que estava da importância de seu trabalho. Essa tensão é repassada através do modo como pintou a túnica e o fundo da composição, desenhando linhas sinuosas e dobras ondulantes. Ao fugir da cópia, buscando a originalidade, artistas como o da ilustração “B” tornaram-se os responsáveis pelo surgimento de novos estilos e, no caso em questão, por um novo estilo medieval.

O Prof. E. H. Gombrich escreveu com propriedade que “os egípcios haviam desenhado principalmente o que sabiam existir, os gregos o que viam e na Idade Média o artista aprendeu também a expressar em sua composição o que sentia”.

Exercício

  1. Que tipo de artistas foram importantes no surgimento de novos estilos?
  2. Qual das duas pinturas o impressionou mais? Por quê?
  3. Explique com suas palavras a frase do Prof. Gombrich.

Ilustração: 1. São Mateus, c. 800 d.C. / 2. São Mateus, c. 830 d.C.

Fonte de pesquisa
A História da Arte / Prof. E. H. Gombrich

8 comentaram em “MESTRES ANTIGOS E ORIGINALIDADE (Aula nº 23)

  1. Marinalva Dias Autor do post

    Lu
    Durante muito tempo os artistas ficaram a serviço do Estado, da religião e das elites. A arte existe para reproduzir o visível e tornar visível aquilo que está além de nossos olhos, sendo ela um reflexo da época e das culturas vividas. Seus mestres são mediadores do passado e do presente. Ela deve ser livre de qualquer imposição, pois só assim permite a livre expressão da criatividade.

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    1. LuDiasBH Autor do post

      Marinalva

      Como iremos ver mais à frente, os artistas detinham uma posição social muito baixa, ficando à mercê das encomendas que recebiam. Não tinham condições de rejeitar qualquer serviço, portanto, viam-se submetidos às normas impostas. Na Idade Média eles também ainda não tinham ciência da própria importância. Viam com normalidade o fato de trabalharem em nome da fé cristã. Achavam que tudo deveria ser como era. Ainda irá demorar muito tempo até que eles tenham a compreensão de seu papel no mundo, cientes de que a arte deve permitir a “livre expressão da criatividade”.

      Beijos,

      Lu

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  2. Antônio Costa

    Lu

    A segunda pintura a mim revela a necessidade de ruptura com o ”status quo”, manifestado na despreocupação com os traços das pequenas figuras sobre o monte, numa fusão do artista com o ambiente em traços que induz movimentação frenética, associados a uma fisionomia revoltante, os olhos arregalados. Parece que o artista vive um estado mental exaltado, extravasado através de sua a pintura. O “A” é o feijão com arroz do ganha-pão, o círculo celestial sob a cabeça o denuncia. Quanto à frase do Prof. Gombrich, para mim expõe um caminho de libertação dos povos, que culmina na capacidade de sentir e poder manifestar-se.

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    1. LuDiasBH Autor do post

      Antônio

      A segunda pintura realmente rompe com toda as convenções impostas pela arte cristã. Uma das três pequenas figuras no monte é o esboço de um anjo com um pergaminho na mão. Todo o quadro “induz à movimentação frenética”. Quando estudarmos Vincent van Gogh teremos o prazer de estudar seu “estado mental exaltado”, semelhante ao do artista em questão.

      Abraços,

      Lu

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  3. Hernando Martins

    Lu

    Sabemos que a arte cristã na Idade Média tinha uma finalidade didática a fim de fortalecer a fé cristã e expandi-la entre os povos. Os temas abordados nos trabalhos artísticos eram de cunho religioso, importantes para fortalecimento e sedimentação da fé cristã, lembrando que a população, na sua grande maioria era desprovida de recursos materiais e intelectuais. Por isso, a igreja exigia dos artistas que as obras fossem simples,didáticas e objetivas, para facilitar o entendimento,de acordo com seus interesses.

    Analisando a obra A, pintura de S. Mateus a escrever o Evangelho,o artista seguiu com fidelidade a encomenda. Pintura simples com cores vivas para chamar a atencao dos fiéis, porémseguindo a tradição imposta pela religiosidade. A criatividade do artista nesse caso esta implícita, porque ele é um profissional e está produzindo um trabalho encomendado com as características exigidas.

    A obra B, também de S. Mateus a escrever o Evangelho, mostra o artista descomprometido, livre de imposições,propiciando o surgimento o uso da criatividade, algo imprescindível para o surgimento do novo, da originalidade. Analogicamente podemos falar que assim como a água numa hora é líquida, noutra é sólida e noutra é gasosa, a arte também consegue transcender possibilidades de criatividade infinitas, desde que tenha liberdade ampla e irrestrita.

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    1. LuDiasBH Autor do post

      Hernando

      É interessante observar que, se tais normas cristãs, assim como aconteceu com a arte egípcia, não fossem quebradas por artistas corajosos na busca pelo novo, certamente a arte teria demorado três mil anos para chegar ao Renascimento. Como disse, o artista da obra “A”, embora criativo (qualidade inerente a todo artista), preferiu seguir direitinho as diretrizes cristãs, o outro, possivelmente sem nenhum compromisso com tais requisitos, preferiu retratar o que sentia. Como diz Gombrich, são exatamente esses artistas que quebram as regras os responsáveis pelo surgimento de novos estilos. Veremos isso nas aulas que virão. Gostei da sua analogia.

      Beijos,

      Lu

      Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      José Geraldo

      Sou eu quem agradece o carinho e a generosidade de pessoas como você. De que me adiantaria pesquisar horas e horas tentando repassar um pouco do que aprendi, se do outro lado não houvesse uma boa recepção? Absolutamente nada! O nosso curso está indo a todo vapor, a cada dia entram novos participantes. Teremos muitas coisas fantásticas sobre arte pela frente. O Renascimento é um show à parte.

      Amiguinho, mais uma vez obrigada por participar de nosso curso de História da Arte.

      Abraços,

      Lu

      Responder

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