O CRISTIANISMO E A FIGURAÇÃO PLÁSTICA (2ª. Parte)

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Autoria do Prof. Pierre Santos

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Arte Catacumbária

Compreendida a aurora da arte cristã nas fases catacumbária e de libertação e considerada a situação política do novo culto, de existência oculta e secreta face às leis do Estado durante a fase inicial, somente a seguinte, a de libertação, consegue efetuar as primeiras tentativas na arte de construir. Realmente, o cristianismo teve as suas iniciativas confinadas nos subterrâneos do solo romano, enquanto à flor da terra continuava a processar-se e a esmagá-la a arte pagã. Eram duas civilizações que se opunham: uma, embora em decadência, ainda poderosa, mas chafurdada no vício e no descrédito de seus deuses; outra, apenas surginte, mas em si trazendo a seiva de tudo quanto é novo e sadio, e municiada com as armas do espírito que faltavam àquela. Mas, por ironia da inevitabilidade das substituições estéticas, “uma vai desaparecer em um halo de pesadelo – escreve Alfred Leroy – e a outra vai fundar as bases de uma nova era”

Assim, ainda não se pode falar em arquitetura nos séculos I a III, quando os cristãos se reuniam para suas rezas em casas comuns, para tanto doadas por conversos de melhor nível econômico e adaptadas de maneira simples às necessidades do culto. Os dirigentes não tinham como conseguir recursos para construções mais arrojadas, nem lhes seria permitido realizá-las. Também ainda não se pode falar em formas adultas de criação artística, porquanto a arte de então, destinada à decoração das catacumbas, era movida por um sentimento de singeleza e devoção, sem quaisquer outras pretensões, senão as de atingir a prece pelos mortos, transcrita numa linguagem simbólica transbordante de simplicidade e encantamento. Por outro lado, não se pode pensar nas catacumbas como forma de organismo arquitetônico.

As catacumbas limitavam-se a profundos, estreitos e úmidos corredores cavados, por assim dizer, vegetativamente, conforme as necessidades imediatas e as imposições do terreno, sem iluminação e arejamento, quebrando-se aqui e ali sem obediência a quaisquer medidas e tomando as mais inesperadas direções por sob a Via Ápia Antiga. Se fôssemos enfileirar numa reta esses corredores em geral de três metros de altura, em cujas paredes e de ambos os lados são cavados os loculi, sepulturas para um cadáver, teríamos uma catacumba de mais de mil quilômetros de extensão (o cálculo é de Flexa Ribeiro), assim mesmo só na parte já explorada. Isto nos faz pensar na incalculável multidão de fiéis que, nos primeiros séculos e nos períodos de mais intensa perseguição, foram barbaramente martirizados nas arenas romanas, em nome da religião cristã. É verdade que houve muitas fases de maior tolerância, por parte das autoridades romanas, para com o novo culto, durante as quais a vigilância da guarda romana antenava um pouco o afã de perseguição aos cristãos. De qualquer maneira, ao penetrarmos nesses hipogeus, seja os de São Calixto, de Santa Priscila, de São Sebastião, de Santa Domitila, de São Pretestado ou quaisquer outros, sempre o fazemos com um profundo respeito humano, um aperto muito grande no coração e um vazio inexplicável em nosso inconsciente, em memória dos mártires ali enterrados – tal o significado assumido pelo martírio em nosso sentimento em face daquele descalabro.

 Após o período de perseguição, os cristãos continuaram ainda a enterrar seus mortos ali, pela santidade do lugar, até por volta do final do século V, quando a inumação subterrânea foi proibida e as catacumbas tornaram-se lugares tão somente de peregrinação até avançado o século VII, tendo em seguida caído no esquecimento, para serem redescobertas no século XV e então estudadas arqueologicamente. Mas isto não diminui o impacto que o vultoso número de mortos dos primeiros séculos causa no mais profundo de nós.

As manifestações artísticas da aurora do Cristianismo, no seio das famosas catacumbas e mesmo nas casas onde os cultos se realizavam, sobre terem desempenhado extraordinário papel na formação da arte cristã, construindo-lhe a base, exerceram com sua emocionante singeleza uma influência substancial em toda a arte medieval. Nesse período teve origem a simbologia cristã, a princípio traduzida em simples garatujas sem nenhuma habilidade, depois desenvolvida e amadurecida relativamente ao seu contexto. Todas as referências religiosas – mistérios, dogmas,  rituais,  prescrições de comportamento, cenas bíblicas, intenções ritualísticas, todas mesmo – eram codificadas num específico símbolo (de simb, palavra grega que significa símbolo, sinal de reconhecimento, introdução, senha de identificação entre pessoas para as quais seja o mesmo familiar). Desta maneira, os símbolos do culto se elaboraram esotericamente por intermédio do enigma, da cifra, do ideograma ou do anagrama, dissimulando em si os conteúdos doutrinários.

Inúmeros símbolos foram então criados: a âncora, significando fé profunda; a Orante, figura geralmente feminina, com os braços erguidos, em atitude de oração pelos que ficaram na terra; a história de Jonas e a baleia, que o devora e depois o vomita numa praia, devolvendo-o à vida, dando a entender o dogma do sepulcro e da ressurreição; o Pastor com suas ovelhas, representando o Filho de Deus que apascenta as almas; a cesta de pães e o tabuleiro de peixes, significando o milagre da multiplicação de víveres; ânfora de óleo, instrumento da ablução, lembrando a necessidade da purificação tanto do corpo como da alma, etc.

O Peixe, o mais usado dentre os inumeráveis e constantes símbolos então surgidos, presta-se bem por sua facilidade interpretativa a exemplificar essa formulação ideogramática. Sendo a tradução da palavra grega peixe m, ou seja, em maiúsculas peixe Ma, é o acróstico anagramático, como se vê pela letra inicial de cada palavra, da legenda: crisgre que assim se pode traduzir para o Português: Jesus Cristo Filho de Deus Salvador. A coincidência do acróstico facilitava a memorização do símbolo, o qual, por isso mesmo, gozava de total aceitação em todas as partes por onde o novo culto se expandia.

Ao lado desses símbolos, começaram os primeiros cristãos, por carência mesmo de tradição, a transplantar modelos pertencentes à iconografia pagã, somente onde lhes era possível encontrar um corpus artístico constituído e bem realizado, mas os transubstanciavam e adaptavam-nos às necessidades doutrinárias. Exemplo típico é a representação do Bom Pastor, inspirada numa estátua grega do século V a. C., o Hermes Quirióforo. Entretanto, os símbolos ideográficos, os quais acabariam por assimilar os modelos pagãos, representavam a rigor o que a nova religião tinha de mais original e autêntico e entram na elaboração, para o Cristianismo, de uma linguagem plástica própria. Esta se desabrocharia no correr dos anos nos grandes temas tratados pela Arte Cristã, apreendendo dos símbolos o mais amplo conteúdo de espiritualidade, leveza e grafismo, sentimento, representação e espontaneidade.

Ilustração:
3. Catacumba de Sta. Priscila, Via Ápia.
4. Arcossólio catacumbário típico, lugar de inumação e prece.

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Um comentário em “O CRISTIANISMO E A FIGURAÇÃO PLÁSTICA (2ª. Parte)

  1. LuDiasBH Autor do post

    Prof. Pierre

    Neste belo texto, onde nos dá uma aula magnífica sobre o passado do Cristianismo, quero salientar o trecho em que diz:

    “Entretanto, os símbolos ideográficos, os quais acabariam por assimilar os modelos pagãos, representavam a rigor o que a nova religião tinha de mais original e autêntico e entram na elaboração, para o Cristianismo, de uma linguagem plástica própria. Esta se desabrocharia no correr dos anos nos grandes temas tratados pela Arte Cristã, apreendendo dos símbolos o mais amplo conteúdo de espiritualidade, leveza e grafismo, sentimento, representação e espontaneidade.”

    Os símbolos contribuiram e muito para a expansão da nova fé.

    Abraços,

    Lu

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