Autoria de Lu Dias Carvalho
O conhecimento sobre os objetivos dos artistas da Idade Média é um facilitador na compreensão de suas obras. O ponto central é o entendimento de que a eles não interessava criar uma parecença convincente com a natureza ou dar vida a belas obras. Interessava-lhes tão somente repassar aos cristãos iguais a eles os conteúdos bíblicos. Exigir deles qualquer outro objetivo seria desconhecer a época em que viveram, época essa em que a fé cristã passou a assumir um papel cada vez maior no Ocidente, direcionando a vida das pessoas. Como já vimos, a arte é uma consequência dos fatos ocorridos num determinado período da história da humanidade, quer seja como adesão a esses ou como crítica.
A primeira ilustração acima intitulada “Cristo Lavando os Pés dos Apóstolos”, reproduzida de um livro dos Evangelhos que foi ilustrado (ou “iluminado”), é um exemplo do papel que os artífices medievais exerciam no que diz respeito à arte. O artista retratou a passagem bíblica (João:13, 8-9) que narra o gesto de Cristo que, após a Última Ceia, lava os pés de seus apóstolos. Ao artista somente interessou a interpretação do diálogo bíblico. Sentiu que não era necessário apresentar a sala onde a cena aconteceu, pois, conforme a visão religiosa da época, qualquer coisa que não fosse estritamente necessária desviaria a atenção dos fiéis do significado maior do acontecimento. Assim, as principais figuras são colocadas em primeiro plano, diante de um fundo dourado, plano e brilhante, retratando uma edificação, o que dá um destaque ainda maior aos gestos dos personagens da cena.
Na composição vemos a gesticulação de São Pedro, à esquerda, pedindo a Cristo que não o deixe lavar seus pés e em resposta vê o gesto sereno de seu Mestre. Atrás de Jesus encontra-se um apóstolo com uma bacia nas mãos, enquanto outro, logo atrás, descalça a sandália. Os demais discípulos, surpresos, amontoam-se atrás de S. Pedro. Todos os olhares dos personagens convergem para o centro da cena, onde se encontra Jesus, com a finalidade de mostrar que ali acontece algo de grande importância. Ao pintor não interessou o formato estranho da bacia, tampouco a elevação esquisita da perna de S. Pedro, a fim de mostrar o pé fora da água. Tudo tinha como único objetivo repassar a mensagem de humildade ensinada por Jesus Cristo.
A segunda ilustração também apresenta um lava-pés num vaso grego, pintado no século V a.C. Trata-se do herói grego Ulisses que, após 19 anos ausente de seu lar, volta para casa disfarçado de mendigo, carregando um cajado, alforje e tigela, mas é reconhecido por sua velha ama, enquanto lhe lava os pés, após ver que sua perna direita trazia a cicatriz de um antigo ferimento. Ao analisarmos as duas cenas, concluímos que foi na Grécia Antiga que se deu vida à arte de representar as “atividades da alma”, ou seja, a possibilidade de o artista expor seus sentimentos e emoções. E foi exatamente essa herança grega que permitiu que os artistas que serviam à Igreja medieval fossem capazes de também mostrar as “atividades da alma”.
As obras de escultura pertinentes à Idade Média também apresentam a mesma clareza do conteúdo vista na pintura, como mostra a terceira ilustração intitulada “Adão e Eva depois da Queda”, presente numa parte saliente de uma porta de bronze, sob encomenda de uma igreja alemã, e criada pouco depois do ano 1000 d.C. (séc. X). A cena apresenta Deus aproximando-se de Adão e Eva após a queda. Contém apenas as imagens necessárias para contar a história. Nada há que desvie a atenção do observador. Os gestos são precisos: Deus aponta para Adão que aponta para Eva que aponta para a serpente. A transferência da culpa e a origem do pecado ficam claras numa cena tão simples. Nem mesmo notamos a falta de proporções entre as figuras e a feiura vistas nos corpos dos dois desobedientes.
Ainda que seu trabalho predominante fosse na arte religiosa, os artistas medievais também trabalhavam para os barões e senhores feudais, construindo castelos e decorações. Acontece, porém, que os castelos eram destruídos nas guerras, enquanto as igrejas ficavam a salvo. Havia maior cuidado e ardor com a arte religiosa, enquanto as decorações de aposentos privados passavam por constantes trocas, muitas vezes sendo jogadas fora. Um exemplo de decoração que chegou até os nossos dias é a famosa tapeçaria Bayeux.
Exercício
- Qual era o objetivo do artista medieval? Por quê?
- Por que as obras religiosas resistiram ao tempo e os castelos e as decorações não?
- Anônimo: A TAPEÇARIA DE BAYEUX
Ilustração: 1. Cristo lavando os pés dos apóstolos, c.1000 d.C. / 2. Ulisses reconhecido por sua velha ama, séc. V a.C. / 3. Adão e Eva depois da queda, c.1015 d.C.
Fonte de pesquisa
A História da Arte / Prof. E. H. Gombrich
Views: 56