Nós, humanos, temos o péssimo hábito de achar que as pessoas e as coisas devem ser exatamente como imaginamos ou queremos que sejam, esquecendo-nos de que cada um de nós se encontra num grau espiritual ou cultural diferente do outro, ou vê a vida por um prisma muito diferente. O indivíduo que se encontra num patamar mais elevado é o responsável pela descida de alguns degraus em direção à compreensão do outro. Ao invés de impor seus argumentos, deve primeiro entender o porquê de o outro pensar assim ou assado, para depois contestar ou aceitar seus argumentos.
O nosso pensamento relativo à arte não é diferente. Basta acompanharmos a mudança de seus estilos através dos tempos para sermos capazes de compreender a intolerância que críticos de arte e público tiveram em relação às mudanças perpetradas na sua longa caminhada até os nossos dias, quer fossem elas relativas a formas, cores, elementos utilizados, etc. Um exemplo interessante e bem ilustrativo diz respeito à descrição de cavalos a galope na arte, tempos atrás, quando os olhos do artista, incapazes de captar a velocidade desses animais, descrevia-os como julgavam ser.
As pinturas e gravuras esportivas, até antes de as máquinas fotográficas captarem com precisão os cavalos galopando velozmente, mostravam-nos como os vistos na composição ilustrativa acima, trazendo as pernas dianteiras e traseiras esticadas ao mesmo tempo, o que não tinha nada a ver com a realidade, fato este até então desconhecido dos artistas e do público. Pensando bem, se esses animais se movessem como na pintura acima, estariam a voar ou se estatelariam com a barriga no chão.
Após a comprovação sensacional da fotografia, ao mostrar que os cavalos movem suas pernas alternadamente em razão do impulso seguinte e cientes de tal informação, os artistas passaram a aplicar em suas obras a nova descoberta. No entanto, tal mudança redundou em reclamações por parte do público ignorante e desatualizado sobre a descoberta fotográfica, passando a criticar enfaticamente as mudanças introduzidas, dizendo que as pernas dos animais, ao correr, mostravam-se incorretas nas obras dos artistas.
Inconformados também se mostraram críticos de arte e público, quando artistas, fugindo às formas e cores tradicionais, mudaram o formato ou colorido da natureza. Onde já se viu um céu amarelo ou um gramado azul? — questionavam eles. Ainda não se mostravam cientes de que a arte em seu poder criativo tinha licença para fazer tais mudanças, pois o que conta é a sensibilidade do artista e não a sua rejeição às noções preestabelecidas e a todos os preconceitos. É ele quem escolhe o caminho a tomar.
O Prof. E. H. Gombrich ensina-nos que, ao admirarmos uma obra de arte devemos “tentar esquecer tudo o que ouvimos… e olharmos o mundo como se estivéssemos acabando de chegar de outro planeta numa viagem de descoberta…”. Não resta dúvida de que os velhos hábitos e os preconceitos são os maiores inimigos, não apenas em relação ao modo como pensamos a arte, mas também como gerimos nossa própria vida.
Os temas bíblicos também geraram (e ainda geram) muitas contendas ao serem inseridos na arte. Os artistas de antigamente se viam enredados por uma infinidade de convenções que deveriam seguir, conhecidas por todos eles, mas que acabavam por tolher-lhes a criatividade. A aparência física de Jesus Cristo — desconhecida para qualquer ser humano — sempre foi, por exemplo, um deus nos acuda, quando um pintor “ousava” fugir das regras convencionais.
Todos sabem que foram os artistas de um longínquo passado os responsáveis por criar as obras cristãs com as quais a humanidade se acostumou. Tudo foi fruto da criatividade desses homens, mas, mesmo assim, ainda existem pessoas nos dias atuais que consideram uma blasfêmia desapegar-se desses modelos tradicionais — fruto da criação de artistas de um remoto passado — e dar existência a outros diferentes.
O brilhante e revolucionário pintor italiano Michelangelo Merisi — conhecido como Caravaggio — foi um dos artistas que tiveram que conviver com uma situação de intransigência da religião, após a entrega de uma encomenda de um quadro intitulado “São Mateus” que tinha por objetivo ornamentar o altar de uma igreja em Roma (Itália), no ano de mais ou menos 1600. O relato desse fato encontra-se na próxima aula.
Exercício
1. O que a autora do texto quis dizer com “O indivíduo que se encontra num patamar mais elevado é o responsável pela descida de alguns degraus em direção à compreensão do outro”.
2. O que o Prof. E. H. Gombrich quis nos ensinar com suas palavras?
3. Para você, como seria a aparência física de Jesus Cristo?
Ilustração: Corrida de Cavalos em Epsom, 1821/ obra de Théodore Géricault.
Fonte de pesquisa:
A História da Arte/ E. H. Gombrich
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