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Autoria do Prof. Rodolpho Caniato

Tiriricas em nossos canteiros têm muita coisa em comum com os preconceitos que povoam nossas cabeças. Às vezes, nossas concepções sobre o Mundo e as pessoas parecem estar dominadas por um verdadeiro “tirirical”, arraigado ao “solo” de nossas cabeças.
O Prof. Paulo havia dado muitas aulas naquele dia, que havia sido muito cansativo. Quando o cansaço abatia-o, ele se lembrava de algumas dúvidas que frequentemente preocupam quem ensina. Quanto será que fica de tudo aquilo que se pretende ensinar? Como se dá o processo da construção do conhecimento na cabeça dos alunos? Como, quanto e de que forma esse processo depende do professor? Ele se dirigia para os fundos do colégio onde o aguardava o Fusquinha que o levaria para casa. Próximo ao estacionamento havia uma pequena horta, onde trabalhava “seu” Antônio, caboclo simpático e bom de prosa. Embora “seu” Antônio fosse homem de poucas letras, era uma dessas pessoas que vai acumulando com os anos uma sabedoria colhida ao longo da estrada da vida. Eram cativantes seu jeito simples de pensar e seu linguajar caboclo, mas sabido e alegre. Dessa vez, no entanto, ele estava meio jururu, com o semblante contrafeito. Com aspecto cansado, de cócoras sobre os próprios calcanhares, fazia seu “picadão” de fumo de rolo, usando um velho e gasto canivete. A palha para o cigarro aguardava presa no vão da orelha.
Vendo o desconsolo do velho amigo, o professor aproximou-se dele, disposto a ouvir as razões de sua contrariedade. Sem parar de fazer seu cigarrinho de palha, “seu” Antônio contou-lhe o “aconticido”. Duas semanas antes, o diretor do colégio havia-lhe entregue um envelope com preciosas sementes, trazidas do exterior, como coisa rara. Havia lhe recomendado que caprichasse no plantio. Escolhido o local para o canteiro, ele cavoucou o solo para remover a tiririca, aquela erva-daninha quase onipresente. Muitas horas foram gastas naquele árduo trabalho. Finalmente o canteiro foi tomando forma e a terra de sua superfície foi deixada fina e macia para receber as preciosas sementes. Tudo estava pronto para a delicada tarefa de colocá-las no solo e cobri-las com uma camada de terrinha fina misturada com húmus. A missão havia sido finalizada com um generoso regador de água. Agora era só esperar a germinação das sementes.
Os dias foram se passando. Diariamente, a semeadura recebia água e o olhar de uma ansiosa expectativa de “seu” Antônio. Com tantos cuidados dispensados, logo deveriam aparecer as tenras e minúsculas folhinhas daquele esperançoso plantio. Depois de muitos dias de grande expectativa, finalmente começaram a aparecer as primeiras folhinhas, delicadas e minúsculas, que ainda não dava para reconhecê-las. Aumentavam a cada dia sua expectativa e ansiedade. Finalmente o canteiro começou a ficar coberto pelo verde novo de minúsculas folhas. Mais regas e cuidados. Já era possível reconhecer a multidão de folhinhas. Possível!? Era tudo tiririca! Aquela germinação tão cuidada e esperada das boas sementes dera lugar a um eito de tiriricas, um verdadeiro tirirical.
Era natural a decepção de “seu” Antônio. Tanto trabalho e dedicação investidos para prevalecer a erva-daninha. Só depois de alguns dias começaram a parecer umas minguadas folhinhas diferentes e desconhecidas. Finalmente brotavam também, aqui, acolá, umas poucas folhas novas. Começava a aparecer algo das tão esperadas sementes. Mesmo assim era decepcionante ver uma brotada muito maior da tiririca que das boas e desejadas sementes. A essa altura “seu” Antônio havia completado seu cigarro de palha e já o “pitava” pela metade. Sua tristeza e seu desaponto eram bem justificados. Era muito trabalho e muita dedicação para ver a tiririca sair na frente, muito mais vigorosa que as sementes tão bem plantadas, desejadas e regadas de água e trabalho.
O Prof. Paulo havia ouvido toda a história e, já sentado sobre um velho tronco, dispunha-se a ajudar o velho amigo a superar sua decepção. Logo lhe pareceu ver uma forte analogia entre o que sentia o semeador e o que muitas vezes sente o professor. Disse a “seu” Antônio que entendia sua decepção, pois com os professores acontece algo parecido. Passou então a fazer uma correlação entre a semeadura de seu amigo e o trabalho dos mestres:
– O professor não faz canteiro, mas também “semeia”. Não semeia sementes de plantas, mas ideias que devem germinar e crescer na cabeça de seus alunos. Acontece que essas cabeças, quando chegam à escola, já trazem muitas “sementes” que foram tomando seu “solo. Muitas delas são como tiriricas, difíceis de serem extirpadas. As tiriricas, que o senhor cavoucou com seu enxadão, estão há muito tempo naquele solo do seu canteiro. Estão bem adaptadas às suas condições. Quando seu enxadão arrancou-as, muitos bulbos ficaram, e acabaram por transformarem-se em mais tiririca. Sem querer, seu enxadão contribuiu para maior disseminação daquela erva daninha. Teria sido necessário fazer uma extirpação completa da tiririca. Isso realmente é muito difícil.
O professor respirou fundo e continuou, enquanto “seu” Antônio ouvia tudo atentamente:
– As cabeças dos alunos, quando chegam à escola, já trazem, em seu “solo”, uma multidão de sementes que vão “germinar” independentemente da vontade do professor e do que ele vai “semear”. Muitas dessas “sementes” já foram “semeadas” pela família e pelo meio em que vivem, desde a idade mais tenra. Muitas delas são como “ervas-daninhas”, na forma de preconceitos e outras deformações. No seu caso, “seu” Antônio, o senhor pode esperar para ver a brotada do que semeou e também do que não semeou. Mesmo mais fracas, em desvantagem, talvez por serem estranhas ao solo, suas sementes, apesar de tudo, brotaram. Na maior parte das vezes, o professor não vê a “brotada” das que se empenhou em plantar. Às vezes nem quer ver o resultado, pois as “sementes” usadas são fracas, chochas, e não chegam a vingar diante de tanta “tiririca”. Mesmo quando semeiam boas sementes, elas sofrem a concorrência das tiriricas que sempre estão mais adaptadas e há mais tempo ao “solo”. Não bastam só o trabalho e suas boas intenções. Tem que saber mais sobre como funcionam as “tiriricas”, além de saber escolher as sementes e fazer com que sejam mais adaptáveis ao “solo” das cabeças, onde pretendem “semear.” Claro que muitos tipos de sementes exigem um especial cuidado na preparação do “solo”. Outras, que insistem em “plantar” podem ser inoportunas ou mesmo inadequadas para qualquer tipo de “solo”. Algumas são até inúteis, apesar do tempo e dos recursos que os professores gastam ao semeá-las.
A essa altura, o “picadão” de “seu” Antônio se havia reduzido a um toco, quase lhe queimando os beiços, tão surpreso estava com a inesperada explicação de seu amigo professor. Ele nunca imaginara que pudesse ter algo em comum com os professores, com seus problemas e suas decepções.
Nota: O semeador, obra de Vincent van Gogh
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