Autoria do Prof. Rodolpho Caniato
O calor durante aquele dia havia sido abrasador, mais que de costume. Além do calor e do ar abafado, os dias anteriores, naquelas vésperas de verão, haviam feito acumular no horizonte nuvens escuras, muito baixas, carregadas e ameaçadoras. Eu e meu pai havíamos trabalhado o dia todo na enxada, debaixo daquele sol inclemente, carpindo nosso parreiral, fonte de renda e sustento. Embora fosse época das chuvas, já havia muitos dias sem elas. As nuvens pareciam mais carregadas e ameaçadoras. Uma chuva de pedra (granizo) poderia destruir nossa pequena produção de uva “niagara rosada”.
Acerca de um quilômetro de nosso sítio passava a estrada de Ferro. Nossos horários eram regulados pela passagem dos trens da “Paulista”. Duas vezes ao dia passava um trenzinho chamado de “misto”. Era constituído pela locomotiva e por dois vagões: um para pequenas cargas e um de passageiros, só de “segunda”. Era uma espécie de “cata caipira”, que parava nas pequenas estações, para as pessoas fazer compra ou ir ao médico “na cidade”. A passagem desse trenzinho “misto” das 16:45 era a “senha” para que eu deixasse o trabalho e saísse para uma série de outras tarefas obrigatórias. Começavam por “engatar” a carroça, cortar e trazer para o piquete a carroçada de capim, espalhá-lo e depois recolher nosso pequeno rebanho, que ficava num pasto mais distante, onde ainda havia um pedaço de mata Atlântica. Era constituído por duas vacas leiteiras, a Pombinha e a Medalha, seus bezerros, algumas vacas “solteiras”, novilhas e o touro. Desengatada a égua “Branquinha” da carroça, nela eu galopava “em pelo” na direção do pasto para trazer o gado. Meu cachorro, o Duque, amigo inseparável, corria na frente.
Naquele dia, antes que eu chegasse ao pasto distante, desabou um temporal. Já era o fim da tarde. A noite parecia se antecipar pela escuridão da tempestade. Ao chegar próximo ao pasto, já chovia forte em meio a trovões e relâmpagos. Não havia sinal do gado. Com o barulho assustador do temporal, o rebanho refugiara-se no meio do mato. Eu não conseguia achá-lo. Eu e minha montaria corríamos pra cima e pra baixo, em meio à tempestade e à chuva. Minhas pernas, de calças curtas, já estavam arranhadas pelo mato, além de molhadas pela chuva e pelo suor de minha montaria. Aflito de tanto procurar, sem encontrar meu gado, voltei para casa, abatido e frustrado. Quando cheguei à cocheira encontrei meu pai de semblante contraído. Antes que eu esboçasse qualquer explicação, ele ordenou: “Não me volte sem o gado!”. Aquela ordem, naquele tom não deixava dúvida. Era imperioso voltar e trazer o rebanho. Nossas duas vacas leiteiras tinham que amamentar seus bezerros presos na cocheira e delas era nosso indispensável leite da manhã seguinte. Desconsolado e aflito, fiz meia volta e galopei na direção do pasto. A escuridão só era rompida pelos repetidos relâmpagos. Eu e minha montaria estávamos mais cansados, molhados e arranhados. Além da aflição, meus fundilhos ardiam pela cavalgada no lombo molhado e sem arreios da égua.
Fiz muitas tentativas de encontrar meu rebanho que, com certeza, assustado, havia se abrigado nalguma grota mais escondida. Aflito, cheio de desconforto naquela noite tempestuosa, parei numa clareira e apeei exausto. Sentei sobre os calcanhares para descansar os fundilhos e pensar no que fazer, enquanto segurava as rédeas de minha égua ofegante. Nesse momento senti, além do desconforto do corpo molhado e arranhado, uma grande solidão e abatimento. Era um sentimento como jamais eu havia experimentado. Meu cachorro, que sempre corria na dianteira, também ofegante, deitou-se a meu lado, depois de me lamber a cara molhada de lágrimas e da chuva que caia. A solidão, que eu nunca havia experimentado, veio também acompanhada da confortadora presença desses dois seres que estavam comigo no mesmo cansaço, naquela noite de tempestades, dentro e fora de mim. Estavam junto a mim e de alguma maneira solidários naquela situação. Eles não me abandonaram. Essa noite me reservaria uma experiência importante e inesquecível: solidão e solidariedade. Abracei com gratidão, tanto minha égua, a Branquinha, como meu inseparável amigo, o cachorro Duque, pela confortadora companhia que me proporcionavam.
De repente, um estalo na mata. Pulei no lombo da Branquinha, enquanto o Duque se pôs a rosnar. Mais um relâmpago e pude identificar a cabaça de nosso touro, saída numa clareira do mato. Ali estava meu rebanho. Logo tangi o touro que, erguendo a cauda, se pôs em desabalada corrida pela encosta, na direção de casa. Logo foram saindo do mato, atrás dele, os demais integrantes de meu pequeno rebanho. Em meio à noite escura, debaixo de chuva, os relâmpagos me deixavam ver, vez por outra, o rebanho correndo para casa. Na frente ia o touro. Logo a seguir vinham as novilhas, muito ágeis. Atrás, muito pesadas, com úberes cheios, iam nossas vacas, a “Pombinha” e a “Medalha”, esperadas por seus bezerros fechados e famintos na cocheira. Minha aflição era substituída pelo júbilo de haver conseguido encontrar o gado e cumprir minha tarefa, mesmo em meio ao temporal que desabava.
Fechando nosso “cortejo” vinha eu, cansado e esfolado pela procura no mato, mas aliviado e orgulhoso por haver passado por uma “prova”. Junto à cocheira estavam meu pai preocupado com minha “prova” e minha mãe aflita pelos riscos e pelas minhas aflições que ela adivinhava. Ainda foi preciso concluir a tarefa, soltando os bezerros para que mamassem. Chovia, mas agora estava todo mundo em casa e garantido nosso leite da manhã seguinte. Os cuidados de minha mãe, a sopa quente e a cama, nunca me haviam parecido de tanto conforto e aconchego. Adormeci com o barulho da chuva em nosso telhado destituído de qualquer forro.
Nota: Campos com Nuvens de Tempestade, obra de Vincent van Gogh
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