Autoria de Lu Dias Carvalho
Partindo Jesus dali, viu sentado na coletoria um homem chamado Mateus, e disse-lhe: Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu. (Mt. 9,9)
A Vocação de São Mateus — também conhecida como Invocação de São Mateus ou O Chamamento de São Mateus — retrata o momento em que Mateus é convocado por Jesus para segui-lo. Ao receber a encomenda da tela que ornaria a capela Contarelli da igreja São Luís dos Franceses, o pintor também recebeu ordens para se basear nos versículos bíblicos (ver acima). Trata-se de uma obra de grandes dimensões em que o pintor combina um tema cristão com uma pintura de gênero (pintura que mostra uma cena da vida diária).
Caravaggio procurou seguir as instruções recebidas, mas sem abrir mão de sua visão realista. Tanto é que ambientou a cena em que Jesus faz o chamado a Mateus num local bem conhecido à época, chamado telônio (Aurélio: Agência onde se fazia o câmbio de moedas entre os judeus no tempo de Cristo.). Mas ao pintar o quadro, tornou o local bem parecido com uma taverna. Há fontes que dizem se tratar realmente de uma taverna romana, levando em conta a maneira como o pintor arruma as figuras.
A composição é realizada em torno de dois planos paralelos, sendo que o superior é ocupado por uma janela coberta com um oleado (muito usado antes do uso universal do vidro) e o inferior apresenta a cena propriamente dita, na qual Jesus chama Mateus para a evangelização. A posição dos pés de Jesus e de São Pedro é indicativa de que eles já se encontram em direção à saída. A composição é formada por dois grupos de personagens:
1º grupo — posicionado à direita. É composto por Cristo (apenas sua cabeça, a mão direita e os pés são visíveis) e São Pedro que se encontram de pé. Os dois representam o mundo espiritual.
2º grupo — posicionado à esquerda. Sentados em torno de uma mesa rude encontram-se cinco elementos, incluindo Mateus, de barbas e com barrete. O grupo representa o mundo terreno.
A composição está dividida em duas partes. Os valores permanentes e corretos formam um retângulo vertical (primeiro grupo), e aqueles temporários e mundanos, reunidos em torno da mesa, formam um retângulo horizontal (segundo grupo). Existe um espaço vazio entre os dois grupos, como a diferenciar os dois mundos: o terreno e o espiritual. É a mão de Cristo que graciosamente faz a ligação entre eles, numa forte simbologia. A mão está quase exatamente como a pintada por Michelangelo em Criação de Adão. No entanto, Caravaggio não copia Deus com os dedos energéticos do Pai, mas em vez disso ele traça a mão frouxa de Adão.
Os cinco indivíduos posicionados ao redor da mesa apresentam idades variadas. Mateus parece ser a figura mais importante do grupo de amigos. Encontra-se elegantemente vestido, traje que condiz com a sua posição de arrecadador de impostos. Seus amigos também estão bem vestidos, de acordo com a época do pintor, e parecem desfrutar de uma situação privilegiada. Usam tecidos brilhantes e luxuosos, contrastando com a simplicidade das vestes de Jesus e de São Pedro, ambos descalços.
Embora Mateus seja a figura principal da composição presente no segundo grupo, o olhar do observador é puxado para as figuras de Cristo e Pedro, pela intensidade da luz que cobre o rosto do Mestre, e alastra-se pelas costas de seu discípulo, emanada deles próprios. A divindade de Jesus é reforçada pelo halo sobre sua cabeça que tem uma parte absorvida por outra fonte de luz. O corpo do Mestre é ofuscado pelo corpo de seu apóstolo Pedro que se encontra à sua esquerda. Apenas seu rosto e a mão que aponta para Mateus estão iluminados. O facho de luz — acima de ambos — parece uma seta a indicar o coletor e futuro discípulo.
O facho de luz, entrando pela parte superior do lado direito, foca Mateus e seu grupo com intensidade, como se quisesse mostrar que ali está o escolhido pelo Mestre. Mateus aponta para si, surpreso com o convite, pois sua única preocupação era coletar impostos. Dois de seus amigos voltam-se curiosos para Jesus e São Pedro, enquanto os outros dois continuam entretidos na contagem do dinheiro, sem perceber a presença de Cristo e de seu apóstolo.
A iluminação é irreal nesta composição. A luz é o elemento responsável por divinizar a cena, ao lado da auréola sobre a cabeça do Mestre. Sem ela a composição perderia todo o seu caráter religioso. Também evidencia o gesto de Jesus que aponta o seu dedo para Mateus. A luz que ilumina a cena não vem da janela, mas de um ponto fora do quadro.
O pintor barroco dispõe a cena do minimamente necessário, pois o que importa para ele são os personagens. O mais jovem do grupo, com o braço direito sobre Mateus, como se buscasse a sua proteção, usa um luxuoso traje e chapéu de plumas, (trata-se de Mario Minitti, amigo do pintor, já visto em outras telas). O outro personagem que se encontra à sua frente parece mais velho e mais intrépido. Encontra-se armado com uma espada e apresenta-se meio ameaçador, virando-se para São Pedro e Jesus.
Curiosidades
- Dentre os personagens, São Mateus foi sempre tido como o homem de barba que aponta para si, como se questionasse sobre ser ele ou não o indicado por Cristo. O seu gesto é traduzido como se ele perguntasse: “Quem, eu?” Uma interpretação mais atual sugere que o homem barbado, na verdade, aponta para o jovem que se encontra de cabeça baixa, imerso na contagem do dinheiro, de modo que a pergunta do homem de barba seria: “Ele?” Outros críticos de arte acham que Caravaggio deliberadamente deixou a composição ambígua, cabendo ao observador a escolha.
- Levi era o nome de São Mateus antes de ele se tornar um apóstolo de Cristo.
- A luz é muito bem manipulada pelo pintor: a janela visível coberta com oleado, muito provavelmente para fornecer luz difusa ao estúdio do pintor; a luz superior, para iluminar o rosto de São Mateus e do grupo sentado; e a luz por trás de Cristo e de São Pedro, introduzida apenas com eles. Pode ser que esta terceira fonte de luz é pretendida como milagrosa. Caso contrário, por que São Pedro não lançou sombra sobre o jovem defensivo à sua frente?
- Caravaggio compôs esta tela com cores vivas, usando contrastes ousados de vermelhos, dourados e verdes e texturas diferentes de veludo e pele macia. Ele também contrasta gestos e expressões.
Ficha técnica:
Data: 1599 -1600
Técnica usada: óleo sobre tela
Dimensões: 340 cm × 322 cm
Localização: Igreja São Luís dos Franceses, Roma
Fontes de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
1000 obras-primas da pintura europeia/ Könemann
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Bela análise da obra de Caravaggio. Tenho uma duvida: essa obra é figurativa, realista ou abstrata? Estou realizando um trabalho escolar.
Gianou Viana
É um prazer receber sua visita e comentário. Volte mais vezes e repasse nosso endereço para seus colegas. Quanto à obra, ela é figurativa. Temos aqui no site um curso gratuito de História da Arte. Basta procura no Índice.
Abraços,
Lu
Lu
Um quadro de rara beleza onde o claro-escuro dá vida às cores e grande força emocional aos personagens. Interessante perceber que o cenário é limitado, com poucos elementos o que faz ressaltar ainda mais a maestria no uso da luminosidade e de sua ausência. Incrível!
Antônio
Caravaggio foi possivelmente o maior mestre do Barroco. Suas obras são inigualáveis, ganhando uma legião de seguidores.
Abraços,
Lu
Que artigo fantástico! Texto leve e direto sobre um gênio!
Essa obra de arte, como todas de Caravagio, sempre me causam espanto! Não sei em que ponto, mas de certa forma, os personagens dispostos à mesa me remetem à Santa Ceia!
Leon
Também acho Caravaggio um dos maiores pintores que já passaram pela Terra. Tive a oportunidade de assistir a uma exposição com suas obras e fiquei fascinada.
Agradeço a sua visita e comentário. Volte mais vezes.
Grande abraço,
Lu
Achei muito interessante. Estava precisando disto pra um trabalho de escola.
Poliana
Que bom saber que pude ajudá-la no seu trabalho de escola. Fale com seus colegas sobre este site, que poderão consultar sobre muitos outros trabalhos.
Abraços,
Lu
Muito bom saber que temos ao alcance um site tão bem elaborado e com excelente conteúdo para os que apreciam a arte, e mesmo aqueles que desejam conhecê-la um pouco mais. A linguagem acessível e o texto didático atraem o visitante do site a querer conhecer mais sobre a arte, pois não há aquele tom “blasé” ou esnobe típico de alguns ambientes ligados às artes, afastando aqueles que tanto precisam aprender a apreciá-la. A arte é uma preciosa dádiva divina, podemos criar, desfrutar e apreciar algo que toca profundamente todos os sentidos e por fim a alma humana, aproximando-nos do supremo artista do Universo – O Eterno, Deus!
Ubiratan
É com muita humildade que recebo este seu comentário tão generoso. Sinto-me plenamente recompensada, pois o meu objetivo é realmente o de produzir uma “linguagem acessível”, com um “texto didático, capaz de “atrair o visitante do site a querer conhecer mais sobre a arte”, sem resvalar pelo “tom ‘blasé’ ou esnobe” capaz de “afastar aqueles que tanto precisam aprender a apreciá-la”.
Meu amigo, no seu comentário você faz uma síntese dos três anos de vigência do Vírus da Arte & Cia., mostrando-me que estou no caminho certo, pois o meu objetivo não é atingir os acadêmicos no assunto, até porque não tenho cabedal para isso, mas tocar o coração das pessoas comuns, sendo que muitas delas jamais pisarão num museu ou exposição de arte, de modo a penetrar neste universo tão mágico, humano e divino que nos oferece a arte. Espero contar com a sua ajuda, para disseminar o meu site nos seus círculos de amigos, pois é assim que ele vem caminhando, como uma minúscula formiga, carregando suas folhinhas por aqui e acolá, de modo a fazer boas provisões na sua jornada, com o compromisso de sempre oferecer o melhor que possa ao leitor.
Como agradecimento pelas suas palavras, emoldurei o seu comentário na primeira página do blog, à direita, a fim de que eu me lembre sempre de que não devo me desviar de tais objetivos.
Grande abraço,
LuDias
Prezada Lu Dias,
Boa tarde!
Fico muito feliz, honrado e agradecido por suas palavras e com tamanha deferência de sua parte ao emoldurar meu comentário. Minha intenção, do fundo do coração, foi exatamente encorajá-la bem como a todos que, de alguma forma lhe ajudam, a prosseguir neste caminho belíssimo que tem trilhado com seu Site.
Vou divulgá-lo sim, com muita satisfação e alegria!
Deus abençoe sua vida e seu precioso trabalho, uma verdadeira “obra-prima”!
Grande abraço!
Ubiratan
Sou eu quem agradece o fato de você ter dedicado um pouco de seu tempo a este site. Espero contar com sua presença muitas e muitas vezes. E desde já agradeço a generosidade da divulgação. Como é bom encontrar pessoas como você (ainda que virtualmente), pelos caminhos de nossa vida, que nos estimulam a dar o melhor de nós.
Mais uma vez, meus agradecimentos!
Abraços,
Lu
Muito bom! Nunca tinha visto um site assim! OBRIGADO!
Gustavo
Fico muito feliz com a sua avaliação.
Será um prazer contar com a sua presença.
Grande abraço,
Lu
Nossa , perfeito .. Apesar de não ter achado tudo aqui , eu achei varias coisas. Obrigado mesmo !
Pedro
Que bom!
Realmente não engloba tudo, o que tornaria o artigo imenso.
Também há dois textos específicos sobre Caravaggio e sua arte.
Veja no índice.
Fico feliz que tenha vindo nos visitar.
Volte sempre e traga seus amigos.
Abraços,
Lu