Autoria de Lu Dias Carvalho
Meu amigo Samuel, nome fictício, pôs-se ontem a se lembrar de certas passagens de sua vida. E, como senti que ele estava tão para baixo quanto o céu plúmbeo daquela tarde, fiz-me toda ouvidos. Dentre as muitas histórias, uma me deixou em frangalhos.
Estava ele com sete anos de idade, quando o pai luxurioso caiu de amores por uma sirigaita, abandonando a esposa e uma penca de cinco filhos. Sua mãe, revoltada, ruminava vergonha e ódio por todos os poros. Já havia visitado pomba-gira, tranca-ruas e seu séqüito. E, nesse nefasto dia, estava recebendo a visita de uma cartomante de muita fama e valia nas redondezas, em coisas do coração.
A pitonisa chegara cedo à sua casa, pronta para filar a bóia da pobre mulher de coração esfacelado, mas ainda lutando para trazer o sujeito de seu sofrimento de volta. A egrégia visita foi a primeira a servir o prato no fogão à lenha. A mãe, vitimada pelo desamor, fez um prato para cada filho, recusando-se a comer.
Samuel, sempre bom de garfo, acabou de comer primeiro de que a insigne ledora de cartas. Como a comida, feita no capricho para agradar a dona do destino da mãe, estivesse uma gostosura, ele pediu humildemente:
– Mãe, eu quero mais!
Sua mãe fez ouvidos moucos, dando o pedido por não feito, preocupada em agradar aquela que pensava dona de seu destino. Bom seria para o coitadinho, se a história parasse por aqui. Mas não, o pior estaria por vir.
Assim que a sibila saiu, deixando grande desconsolo ao dizer, que o traidor não voltaria tão cedo, a menos que se fizesse tal e tal trabalho, a mãe do Samuel pegou uma enorme bacia de alumínio e despejou nela toda a comida que havia nas panelas. E gritou
– Samuel, moleque guloso, venha aqui! Vai comer tudo, para aprender a ter educação na frente de visita.
A mãe enlouquecida colocou a bacia, cheia de comida até às bordas, no seu colo, enquanto ele tinha os olhos esbugalhados de surpresa e medo. Foi comendo, comendo, comendo, até perder a noção do que fazia, com arroz e feijão espalhando-se por todo lado. Poucas horas depois, começou a vomitar e a ter diarreia. O pequeno banheiro tornou-se fétido e o ar se encarregou de levar o cheiro para a pequena casa e o quarto, onde a mãe dormia meio ébria.
Sua mãe acordou com o mau cheiro e seu choro, e ficou mais colérica ainda, ao ver a sujeira do banheiro. Pegou o cinto que o marido infiel havia deixado em casa e começou a bater nele, talvez pensando que estivesse subjugando o traiçoeiro marido. Chegou até mesmo a chamá-lo pelo nome do pai.
Foi impossível conter o choro de Carlos, apesar dos quarenta e dois anos que o separavam de tal acontecimento. Penso que trazia aquela cena vívida em sua memória. Espero que suas lágrimas tenham lhe lavado a alma para sempre.
Ele me confessou antes de ir embora:
– Minha mãe morreu louca. Louca de amor por meu pai.
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