Recontada por Lu Dias Carvalho
Certo juiz era conhecido em todo o município pela maneira como encaminhava as questões jurídicas, que lhe eram destinadas, sempre tirando proveito em benefício próprio de todas elas. Qualquer causa que lhe caísse às mãos, favorecia sempre o lado que lhe pagasse o maior suborno. Em assim sendo, numa contenda, o pobre era sempre o desfavorecido, uma vez que não tinha meios de pagar a soma pedida.
Certo senhor, dono de medianas posses, caiu na vara do dito, que alegou que seu processo era muito difícil, e só iria para frente mediante uma quantia altíssima em dinheiro. Fora disso, perduraria por anos e anos na gaveta, até perder a cor. Revoltado, o pobre homem não teve alternativa senão pagar, caso contrário ficaria sem a posse de suas terras, única fonte de alimento para ele e sua família. Ao guardar tão alta quantia em seu cofre, o magistrado parcial, ganancioso e astuto, murmurou entre risos:
– Os meus ganhos aumentam cada vez mais graças ao diabo. É por sua causa que existem discórdias, provocações, rivalidades, baixarias e agressões dentro da espécie humana. O diabo é o meu parceiro mais importante, pois quanto mais desentendimento e vilania houver, maior será meu lucro. Cada julgamento tem o seu preço. Portanto, que se desarmonizem, atraquem-se e matem-se… Desde que me paguem um bom preço pelo julgamento, sendo o meu favorecimento em prol de quem der mais. Essa é a minha lei!
Mal acabara de gabar-se de sua conduta, o juiz foi surpreendido com a presença de um indivíduo sarcástico, louvando a sabedora de “Vossa Excelência”. Irritado, o magistrado queria saber como ele entrara ali, sem sua permissão, antes que fosse encarcerado e seus bens repassados para ele, pois era quem fazia a lei, mandava e desmandava. O homem respondeu-lhe que seu nome era Diabo, mas que carregava outros apelidos, como Arrenegado, Cão, Maligno, Lúcifer, Satanás, Sarnento, Coisa Má, Capeta, Belzebu, entre tantos outros, não lhe importando qual deles fosse usado.
Ao ser perguntado o que viera fazer ali, o Diabo respondeu que estava à cata de almas recheadas de pecados. O magistrado logo pensou numa parceria com o Tinhoso, de modo a aprender seus métodos e duplicar seus ganhos. Começaria acompanhando-o na caça às almas. Queria ver como ele realizava tal proeza. O Maligno relutou a princípio, mas permitiu-lhe segui-lo, contudo, alertou-o de que aquilo poderia voltar-se contra ele. O juiz, não levou a sério a admoestação, pensando nos lucros que teria com as lições aprendidas.
Os dois passaram a perambular pela cidade. Logo de cara, encontraram um homem empurrando um burro com uma pesada carga, e, que não arredava pé do lugar. Nervoso com a pirraça do animal, o dono xingou-o, dizendo que fosse para o Diabo. O juiz logo queria que o Sarnento levasse o burro, mas esse alegou que o dono falou aquilo, apenas movido pela impaciência e, ademais, só lhe interessavam as almas. Mais à frente, encontraram uma mãe brigando com o filho, e, num acesso de raiva, ela mandou que o meninote fosse para o Diabo. O magistrado viu ali uma alma ganha, mas o diabo argumentou que a fala da mãe era da boca para fora, e não refletia seu sentimento.
Juiz e Capeta continuaram a andar pelos recantos do lugar, sempre à espreita de quem pudesse ser apanhado. Chegaram ao Mercado Municipal. Num canto sujo, estava uma senhora velha e acabrunhada, exibindo uma pobreza extrema. Ela se aproximou do magistrado e pediu-lhe uma esmola. Esse pediu à mendiga que ficasse longe dele, com seu fedor. Ela, porém, respondeu-lhe que aquela pestilência era o perfume da miséria a que ele a submetera, depois de negar-lhe justiça e retirar seus poucos bens. E completou dizendo:
– Não há um só dia em que eu não clame pela justiça divina. Peço a Deus que envie sua alma amaldiçoada, cheia de improbidade, cobiça e crueldade, para o Diabo.
Lúcifer argumentou que as palavras da velha eram sinceras, portanto, o magistrado teria que ir com ele. Assim, pegou-o pelos cabelos, entrando os dois num buraco aberto pela terra, a caminho do Inferno.
Nota: ilustração copiada de www.leieordem.com.br
Fonte de pesquisa
Contos e Lendas da Europa Medieval/ Gilles Massardier
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