Autoria de Lu Dias Carvalho
Nada há de esquemático ou calculado na graça de Galateia. Ela habita um mundo mais brilhante de amor e beleza — o mundo dos clássicos, tal como era concebido. (Prof. E. H. Gombrich)
O prestígio de Rafael era tamanho que chegou a chefiar uma equipe de escultores, pintores e arquitetos, para que o ajudassem a executar o grande número de encomendas recebidas. O riquíssimo banqueiro Agostino Chigi foi um dos que puseram o jovem pintor a seu serviço, contratando-o para decorar sua suntuosa residência de verão — a Farnesina. É fato que ele necessitou da ajuda de sua equipe para fazer grande parte do trabalho, mas é dado como certo que o afresco O Triunfo de Galateia (ou Galatea) que apresenta a ninfa com seus alegres amigos foi pintado unicamente por ele. Composição rica e complexa e também muito admirada em todo o mundo.
Contam algumas fontes que Agostino Chigi teve um motivo especial para a escolha desta pintura mitológica. O fato é que se encontrava interessado em se casar com a filha do marquês de Mântua, Margherita Gonzaga que, como Galateia em relação a Polifemo, rejeitava-o. Ele esperava que tudo terminasse como algumas versões do mito que conta que a ninfa acabou aceitando o amor do ciclope. O tema mitológico da obra encomendada pelo banqueiro foi baseado num verso de um poema do florentino Angelo Poliziano que coincidentemente também havia inspirado Botticelli em sua belíssima obra intitulada “O Nascimento de Vênus”.
O poema de que falamos descreve a paixão que o disforme ciclope Polifemo sentia pela ninfa marinha Galateia. Na composição ela escarnece da canção de amor que ele canta em sua homenagem, enquanto foge sobre as ondas, acompanhada de um séquito festivo de outras ninfas e divindades marinhas, ao encontro de seu verdadeiro amor — Ácis. A imagem do gigante não aparece nesta obra, mas, sim, em outro lugar do salão decorado da residência do banqueiro.
No afresco vemos a ninfa Galateia de pé dentro de um carro feito de concha, puxado por uma parelha de golfinhos, abrindo caminho em meio às ondas, sendo que seu manto está esvoaçando para trás, cobrindo-lhe metade do corpo, deixando visível a pureza de seus contornos e a elegância de seus movimentos. Para compor seu rosto — segundo algumas informações — Rafael modificou ligeiramente um antigo retrato de Santa Catarina de Alexandria.
Três meninos — os pequenos Cupidos — armados de arco e flechas miram a jovem Galateia, tentando acordar o seu amor, enquanto duas divindades marinhas sopram búzios e dois casais entregam-se aos prazeres amorosos. Um tritão aprisiona sua ninfa em seus musculosos braços, enquanto um centauro carrega a sua amada nas costas. As formas anatômicas das figuras masculinas lembram as de Michelangelo. Galanteia e seu séquito (nereidas e tritões) são divindades do mar.
Embora muitos movimentos aconteçam em volta de Galateia, ela continua sendo a figura de maior destaque da pintura — o centro da composição. Assim como segura as rédeas de sua carruagem, tem também o controle de toda a situação. Tudo parece convergir para seu belo rosto que inspira delicadeza e inocência e que se localiza bem no centro da composição, o que dá à obra um grande equilíbrio. O tritão à sua esquerda assim como a ninfa à sua direita direcionam o braço em direção a ela, assim como as setas dos cupidos acima e as rédeas dos golfinhos. O arranjo das figuras na composição mostra a genialidade de Rafael.
Na parte superior da composição, à esquerda do observador, encontra-se um cupido que traz suas flechas guardadas. Ele representa o amor platônico. Ao direcionar seu olhar para ele, a ninfa dos mares mostra a sua preferência pelo amor espiritual. O tritão mensageiro do mar está montado no seu cavalo marinho, soprando uma concha. Ambos olham na mesma direção e assemelham-se nas poses e cores às esculturas de mármore da arqueologia romana. À frente um tritão faz soar uma trompa. Parte de seu braço e da trompa já se encontram fora da composição. O céu mostra-se carregado e há a presença de muito vento, como indica o manto de Galateia e o da outra ninfa.
Na obra de Rafael Sanzio cada figura corresponde a uma outra figura e cada movimento dá origem a um contramovimento. Os pequenos Cupidos — deuses do amor — apresentam movimentos recíprocos, assim como o que nada rente à embarcação corresponde ao que se encontra no topo do quadro. O mesmo se dá com o grupo de divindades marinhas que circulam a ninfa. Há dois casais entregues a jogos amorosos, um à esquerda e outro à direita da ninfa. À frente de Galateia há uma divindade que toca búzios e outra atrás dela.
O carro de Galateia (feito de uma gigantesca concha) é impelido da direita para a esquerda. Ao ouvir a cantoria de amor do gigante Polifemo, ela volta o rosto para a sua direita e sorri. Tudo converge para seu meigo rosto: as linhas do quadro, a começar das flechas dos Cupidos até as rédeas que ela mantém nas mãos, recurso esse que dá a sensação de um movimento contínuo em toda a obra, deixando-a totalmente equilibrada. As figuras são arranjadas maravilhosamente na composição. Não é à toa que Rafael tenha conseguido realizar aquilo que a geração mais antiga tentara obter: uma perfeita e harmoniosa composição de figuras movimentando-se livremente.
Ao longo dos tempos vários autores citaram em suas obras o amor de Galateia e Ácis e a paixão do ciclope Polifemo pela ninfa dos mares — autores clássicos como Homero, na Ilíada (séc VIII a.C.), Esíodo (séc. VIII a.C.), Teócrito (séc. III a.C.), Callímaco (séc. II a.C.), Propérzio (séc. I a.C.), Horácio (séc. I a.C.) e Virgílio, na Eneida (30 a.C.); também autores medievais como Dante Alighieri (1300), Berchorius (1340), Francesco Petrarca (1370) e Giovanni Boccaccio (1472).
Curiosidade sobre a Lenda de Galateia
Galateia — filha de Nereu e Dóris — é uma divindade marítima cujo nome significa a “donzela branca”, vivia nas costas da Sicília. Passava seu tempo brincando nas ondas do mar em uma carruagem puxada por golfinhos. Certo dia a jovem foi vista por Polifemo — um dos temíveis e monstruosos ciclopes, gigantes de um só olho, que habitavam aquela ilha. Ele acabou se apaixonando por ela. Por sua vez, a ninfa Galateia caía de amores pelo pastor Ácis — filho do deus Pã e de uma ninfa —, sendo seu amor plenamente correspondido.
Quando Galateia e Ácis repousavam junto ao mar, o ciclope Polifemo flagrou-os. Ácis tentou fugir, mas o ciclope esmagou-o com uma pesada rocha. Galateia reviveu seu amado, convertendo-o em um rio de águas límpidas, apelando para a mãe deste — uma ninfa dos rios. Em seguida lançou-se ao mar, indo viver nas ondas que tocam as areias com suas espumas brancas, sem jamais retornar à terra.
Ficha técnica:
Ano: 1512
Tipo: Afresco
Dimensões: 295 × 224 cm
Localização: Villa Farnesina/ Roma
Fonte de pesquisa:
O Livro da Arte/ Publifolha
A História da Arte/ E. H. Gombrich
Tudo sobre Arte/ Sextante
Grandes Mestres/ Abril Coleções
Os Pintores mais Influentes do Mundo/ Girassol
Rafael/ Cosac e Naify
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Lu
O grande número de elementos mitológicos era material valioso nas mãos dos artistas, facilitando o atendimento aos seus pagadores e inspirando a arte. Na verdade, quando nos damos conta da presença mitológica na arte a gente passa a vê-la com outros olhos.
Antônio
A Mitologia sempre esteve presente na história da humanidade. O homem em sua sede de saber nunca aceitou desconhecer algo. Na ausência da Ciência ele criava mitos para explicar a existência de tudo. É mesmo um assunto fascinante.
Abraços,
Lu