Autoria do Prof. Pierre Santos
Hoje trago para os meus leitores o significado de certas manifestações de comunicação e de arte medievais como códice, saltério, iluminura, miniatura, Livro de Rezas, Livro dos Evangelhos, Livro de Horas, volumen, incunábulo, enfim de tudo que se relaciona a essa forma de comunicação escrita e iluminada (a mesma coisa que ornamentada) a qual, no início, era feita pelos monges nos mosteiros românicos da Idade Média.
A magnífica arte da iluminura, que teve seu início na baixa Idade Média, atravessou todo o período românico e, dentro daquele mesmo espírito primevo com que apareceu, foi dar os seus últimos frutos dentro do contexto do chamado Gótico Internacional ou Tardio, nas regiões europeias boreais principalmente. Todas aquelas aspirações que embalaram o estilo gótico foi conhecer seu crepúsculo na arte miniatural dos tão famosos Irmãos Limbourg, de resto os derradeiros iluminadores do gótico, os quais, por sinal, eram nórdicos, autores do último Livro de Horas do estilo, talvez o mais bonito de todos.
Os Irmãos Limbourg foram os responsáveis pelo esgotamento, em sua região, de uma tendência que se cansava, ao mesmo tempo em que dão abertura à afirmação de outra, que logo em seguida tomaria corpo a partir da obra de Mestre de Flémalle. Aí temos, portanto, o elo entre o Gótico Tardio e a Arte de além Alpes. Contudo, é bom que se frise: acabava com os Irmãos Limbourg aquela espécie de comunicação à maneira medieval; entretanto, ainda teríamos Livros de Horas e outros, mas com diferentes características, durante a Renascença e o Barroco, mais elaborados, mais completos, com técnicas superiores, todavia sem a singeleza das anteriores que encantava.
Referi-me acima aos monges copistas, cuja profissão teve na época muita razão de ser e progrediu bastante. Vejamos, pois, como tudo aconteceu. Desde o início da era românica, naquele momento em que o apelo sedutor do Cristianismo atuava com veemência e a hoste dos fiéis ia aumentando mais e mais, os dirigentes do culto se viram na premência de dotar as comunidades de locais apropriados e devidamente grandes, que pudessem abrigar as multidões durante a realização dos ofícios e das orações. Os arquitetos corresponderam à expectativa, ajudados pela população de cada localidade, e a Europa se cobriu de norte a sul de belos templos românicos. Simultaneamente, construíram-se também os mosteiros nas mais variadas regiões, para abrigar significativa parte do sacerdócio, guardião da base a da história da religião.
Àquela altura, tanto os monges, que recebiam nos monastérios grupos numerosos de fiéis em peregrinação, como os párocos das igrejas urbanas, começaram a sentir a falta de um substrato material em que a plebe pudesse apoiar-se, para entender e acompanhar a liturgia. Desta necessidade nasceu a idéia de se definir, por escrito, as peças necessárias na composição litúrgica dos ofícios e dos mistérios do culto. Esse trabalho, como naquele instante não podia deixar de ser, ficou desde o início sob a responsabilidade dos mosteiros.
Os monges para tanto mais habilidosos foram se especializando na função de elaborar e copiar o material compreendido de orações, atos, salmos e cânticos que eram usados nos rituais e ficariam contidos num códice (codex em latim, espécie de livro), que a rigor formava um verdadeiro Livro de Rezas, inicialmente dispostos de modo muito simples, mas que com o tempo foram sendo sofisticados em suas capitulares (capitular era a primeira letra de um texto, sempre bem maior do que as demais letras e muito bem trabalhada) e em suas iluminuras (que ornamentavam e ilustravam as páginas principais do códice).
Os primeiros trabalhos ainda foram feitos em forma de rolos de tiras de papiro, que atingiam até seis metros de comprimento; quando enrolados, tinham altura próxima a seis centímetros; a escrita e as ilustrações se faziam no sentido da abertura, tudo dividido em páginas, e não no sentido do fim do rolo. Logo se percebeu que tal formato não se prestava aos objetivos; ato contínuo, começaram a preparar um códice livresco com vários cadernos costurados para formar o conjunto, sendo que cada caderno levava o nome de volumen. Nesses códices, que eram em sua formação o Livro de Rezas, encontramos a origem do Saltério, do Livro dos Evangelhos e do Livro das Horas, sobre os quais falaremos oportunamente.
Contudo, havia uma realidade angustiante: a grande maioria da população era de pessoas analfabetas. Entretanto, em cada comunidade sempre havia muitas pessoas que eram alfabetizadas, algumas até cultas. Estas eram escolhidas para líderes de grupos. Digamos que, numa paróquia, cerca de trezentas pessoas podiam acompanhar os rituais; essas eram divididas em dez grupos de trinta e cada um tinha o seu líder, que era encarregado de ensinar-lhes as rezas e os cânticos, os quais eram decorados por todos.
Os copistas dos mosteiros recebiam dos párocos encomendas de certo número de códices do Livro de Rezas, que ficavam guardados nas sacristias, para serem usados pelos sacerdotes e pelos líderes, seja durante os ofícios litúrgicos, seja durante os encontros para instruções dos grupos. Acontecia, porém, que muita gente da turba tinha o interesse despertado para o aprendizado da leitura. Aí, os líderes tornavam-se os mestres, e os códices, cartilhas. Isso era uma coisa muito linda, porque muita gente assim aprendia a ler e a ir além dos códices, que até então eram muito simples.
O arranjo ali foi perfeito: os monastérios passaram a ter uma digna e constante ocupação; os monges, uma digna profissão, que só fazia crescer e dar-lhes boa renda; e boa parte da multidão iletrada, um modo possível de aprender a ler, enquanto o pároco ficava com a certeza e a tranquilidade de que os cultos estavam sendo bem acompanhados. Algo, entretanto, incomodava os dirigentes da igreja: naqueles códices de estrutura mais simples só podiam ser incluídos alguns poucos salmos, e só os mais importantes, enquanto eles são em número de cento e cinquenta, dos quais a metade era cantada diariamente, em vários rituais e em várias partes da liturgia, sendo a outra metade reservada para ocasiões especiais. Além disso, os Evangelhos, matéria tão importante para a propagação e compreensão da fé, ficavam de fora
Assim, já adiantado o século VIII, resolveu-se criar o saltério, espécie de códice que contivesse os cento e cinquenta salmos e outras peças, que ali eram dispostos de acordo com sua utilização, divididos em partes litúrgicas e obedecendo à ordem estabelecida pelas Horas canônicas. Os copistas não se limitavam a inscrever apenas as letras dos salmos, não raro precedidas por ligeira explicação de sua natureza e objetivo, mas quase sempre as faziam acompanhar-se da pauta musical correspondente, para evitar distorções de canto. Tudo isto, naturalmente, era desenhado sobre pergaminho, que substituiu o papiro no qual se registraram os primeiros códices, porque mais duradouro.
Ilustração:
1. Reis Magos, Códice de origem francesa, séc. XIII, manuscrito em velino, tipo pergaminho.
2. Frade pintando um manuscrito do séc. XI.
3. Pentecoste, do Saltério de Ingeborg, rainha da Dinamarca, 1200, Museu Condé, Chantilly
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Professor Pierre
Sempre fui encantada com o trabalho dos monges copistas, sobretudo pela paciência que parecia acumular ao longo dos anos, pois os trabalhos eram cada vez mais minuciosos.
Fico pensando nesses homens debruçados horas a fios sobre seus afazeres, que elaboravam com tanto amor e dedicação.
Nos tempos de hoje a paciência tornou-se um artigo de luxo.
Como sempre, seus textos são primorosos, deixando seus leitores ávidos pelo próximo.
Lembre-se sempre de que “a quem muito foi dado, mais será cobrado…”.
Portanto, ficaremos sempre à espera de mais uma de suas aulas.
Abraços,
Lu