A OFICINA DE CONSERTAR GENTE

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Autoria de Lu Dias Carvalhoboneco1

A vida lá fora segue como de costume. Coisa alguma parou a sua atividade. Tampouco a natureza fez uma pausa no seu trabalho diário. As ruas estão apinhadas de gente, nas idas e vindas diárias. O sol caminha exuberante por um céu azul com pouquíssimas nuvens brancas. As flores desabrocham nos quintais e jardins. As árvores baloiçam felizes ao sabor de uma brisa que vem e vai, de acordo com sua vontade. As pessoas confabulam, sorriem, compram, comem, embora algumas andem apressadamente, como se tivessem muito ainda a fazer. Outras caminham em passos lentos, parando aqui e acolá, sem nenhum compromisso com o tempo. Será que existe outra vida afora esta? Será que em algum lugar da cidade habita o sofrimento? Sim, pois a vida sempre mostra a sua duplicidade.

A mulher acompanha o marido no PA de uma Oficina de consertar gente. Muitas são as pessoas necessitando de restauração e poucas são as vagas. A primazia é daquelas que podem pagar pela reforma, sem depender de plano algum, embora os donos da Oficina de Gente sempre neguem isso, falando que todos são iguais. Mas todos sabem que não é bem assim, pois os donos de tais oficinas e seus operários não querem mais receber dos chamados Planos de Conserto. Dizem que eles pagam uma miséria e que não justificam o tempo com os reparos feitos, no que concordo plenamente com eles, pois, o trabalho dos mestres e de seus auxiliares precisa ser feito com maestria e muito amor. Eles lidam com uma matéria-prima delicadíssima: o corpo humano. Contudo, os bonecos humanos, que durante anos a fio vêm pagando um Plano de Conserto, abrindo mão de muitos prazeres da vida, não têm culpa alguma. É o sistema que permite que tais planos tenham compromisso apenas com o lucro pecuniário, sem nenhuma preocupação com a qualidade da restauração de seus assegurados, pagando uma mixaria às Oficinas de Conserto que se veem enraivecidas com o descaso. Leis rígidas deveriam penalizá-los, para que seus assegurados não viessem a pagar o pato. Num país que tem a ética por bandeira, a saúde jamais estará a serviço do capital doentio que abocanha tudo com sua boca desmedida e mandíbulas ferozes, de modo que os artífices e os ajudantes de tão preciosa restauração trabalham com prazer e dedicação plena.

A mulher e seu homem encontram-se ainda no PA, aguardando a bendita vaga que não aparece. Ali, os bonecos humanos não têm direito à alimentação e tampouco ao banho, mesmo que a espera dure uma semana, pois, segundo o parecer da Oficina de Conserto, ainda não se encontram legalmente internados. O que não deixa de ser uma cruel ironia, pois o banho é muito necessário aos doentes, muitos deles com as roupas íntimas molhadas pela dor excessiva, e a comida deveria ser balanceada para eles, dentro dos critérios de cada caso. O soro desce dolentemente pela veia do marido. No compartimento ao lado, cercado por uma cortina azul, dona Suely, com fortes dores nos pulmões e falta de ar, também espera por vaga. Em mais dois leitos a situação é a mesma. Lá fora, no corredor, um grande número de bonecos aguarda por consultas, alguns deles serão indicados para a internação. Pobres bonecos humanos!

Gemidos agudos varam a noite. Irmã e filha adolescente rodeiam o leito da mulher com rosto de cera e olhos profundos, perdidos na vastidão de seu sofrimento. Somente a injeção de morfina dá um alento para a dor que a consome em vida. Uma jovem e bonita mulher, Cida, entrou no PA aos gritos. Um quisto no ovário dobrava-a em duas. Medicada, dormiu como um anjo. Recebeu boas novas: poderia voltar para casa. Nos outros leitos, dois bonecos já desgastados pelo tempo dormem profundamente sob o efeito de remédios. Também são liberados. Mal saem, outros ocupam seus lugares, num vai e vem sem fim. O marido só faz dormir, aguardando tranquilamente o desenrolar de seu caso. Vez ou outra solta um suspiro profundo, nascido do mais íntimo de seu ser. Sua paciência e tranquilidade acalmam o coração aflito da mulher, ansiosa para que tudo se resolva logo. Mas há tantos bonecos humanos precisando de conserto, em casos tão desesperadores, e são tão poucas as prateleiras onde poderão ficar, que as palavras de ordem são “esperar… e … esperar”.

A mulher refugia-se em seus pensamentos, como uma forma de minimizar sua dor, ao ver tanto sofrimento naquela Oficina de Conserto. Ela se condói com a fragilidade e impotência dos bonecos humanos. Apresentam-se em todas as idades, tipos físicos e classes sociais. Ali, todos se igualam no infortúnio e na busca pela restauração da saúde. Ela conclui em seu coração:

– O ser humano não é nada! Absolutamente nada! Todo o espírito de superioridade que carrega ao longo da vida é vão e inglório. Quem sabe seja essa uma verdadeira lição de vida!?

Nota: Imagem copiada de www.viaeptv.com

6 comentaram em “A OFICINA DE CONSERTAR GENTE

    1. LuDiasBH Autor do post

      Cristiane

      Muito obrigada!
      O Vírus da Arte agradece a sua visita e a convida a voltar sempre.
      Será um grande prazer!

      Beijos,

      Lu

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  1. Glaucia Mara Santos Pinheiro

    O, Lu. A Oficina de Consertar Gente perdeu seu sentido humanitário, infelizmente privilegia o lucro financeiro. Resta-nos rezar para encontrarmos profissionais que ainda honram o que fazem. Beijos, Glaucia.

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Gláucia

      É verdade!
      É triste ver como o capital vai tomando o lugar do ser humano.
      O lucro é a bandeira.
      Que mundo maluco é este nosso!

      Beijos,

      Lu

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  2. célia

    É um texto comovente, como é a realidade do local, que vc deu o nome de OFICINA DE CONSERTO. Só vc, com a sua inteligência, sagacidade, para encontrar o nome certo para o hospital.

    Beijinhos

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Celita Linda

      Escrever é a melhor forma de desabafar.
      A palavra é o meu remédio.
      Depois lhe passarei outros detalhes via e-mail.

      Beijos,

      Lu

      Responder

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