O Professor Hermógenes, um dos precursores da ioga no Brasil, escreveu mais de 30 livros sobre a saúde física e mental. Neste texto retirado de seu livro “Yoga para Nervosos”*, alerta-nos para o perigo que traz a identificação com as coisas.
Onde está vosso tesouro aí está o vosso coração (Cristo em: Lucas 12-34).
Conheci um homem rico que sempre adquiria carro do último tipo, o mais caro. Adorava o carro como um apaixonado qualquer à sua amada. Dava-lhe tratamento extremamente cuidadoso. O brilho do carro era-lhe uma obsessão. Uma noite, o carro estacionado, estando ele no cinema, algum malvado fez um risco no lindo capô. O pobre homem “adoeceu de raiva”. Não é apenas uma expressão popular. Adoeceu mesmo. De raiva de quem fizera aquilo, e de dor, por ver estragado seu carro. O risco não fora apenas no automóvel, mas em seus próprios nervos, pois, a rigor, o carro não era dele – o carro era ele mesmo.
Aquele pobre homem abastado é o símbolo da identificação. Sua tranquilidade, sua saúde, sua felicidade dependiam “dele” – do carro. Era, portanto, uma pessoa muito vulnerável. Semelhante a milhões de outros seres humanos. Era vulnerável como seu carro. Enguiço, sujeira, arranhão, batida, a que todo automóvel está sujeito, atingia-o em seu psicossomatismo, isto é, faziam-no sofrer mental e organicamente.
A identificação mais normal, isto é, mais generalizada é aquela às coisas externas e mais ou menos vulneráveis quanto um automóvel. Os homens “normais” continuam a fechar os ouvidos doidos à sapiência de Jesus: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a Terra” Continuam sem ver que põem seus queridos tesouros “onde a traça e a ferrugem corroem e onde os ladrões escavam e roubam” (Mateus 7.19).
Podemos nos identificar a um objeto, a outro ente humano, como a namorada, ao filho, a um emprego ou à ribalta. Somos identificados às coisas quando nos sentimos infelizes com a perda, o desgaste ou a corrupção de tais coisas. A felicidade de muitos está ligada, às vezes, a acontecimentos em si insignificantes, como a vitória do time de futebol ou do partido político, mas também à manutenção de um emprego ou posição de destaque social ou artístico, ao triunfo das ideias ou ideais que professam.
O “normal” é o indivíduo sentir-se miserável e perdido só por que caiu doente. Muitas senhoras esnobes danam-se quando a cronista deixou de citar seu nome na coluna social. Aquilo que quando nos fala nos dá infelicidade é objeto de nossa identificação. Somos identificados ao que ansiosa e desastrosamente queremos conservar, melhorar, desenvolver. Somos uns perdidos de nós mesmos porque nos identificamos a uma variedade sem conta de coisas, posições e pessoas. Nossa segurança e paz dependem de tudo isto com que nos identificamos.
Segundo o Yoga, uma das maiores fontes de sofrimento é o identificar-nos com os níveis mais densos e materiais de nosso ser. Os que se identificam com o corpo – e somos quase todos – costumam dizer: “eu estou doente”. O yoguin, já desidentificado com o corpo, usa outra linguagem e diz: “meu corpo está doente”. O yoguin, em sua sabedoria, diz que seu corpo morre, pois sendo realmente um agregado de substâncias, algum dia se desfará, mas afirma que ele, em Realidade, é o Eterno, o Imutável, o Imóvel, o Perfeito e, portanto, jamais morrerá. Pode haver medo da morte para quem assim pensa?
Enquanto o homem comum adoece com os arranhões em seu carro ou em sua saúde, o sábio, desidentificado do grosseiro e do falível, mantém-se imperturbável, identificado que é com o incorruptível e imortal. Enquanto o pobre homem identificado é joguete ao sabor das circunstâncias incontroláveis na tempestuosa atmosfera da matéria, o yoguin vivendo no Espírito, não se deixa apanhar nas malhas da ansiedade e não cai presa da “coisa” (pânico).
Uma das principais vias do Yoga ou união é o desidentificar-se com o mundo de Deus e identificar-se com Deus do mundo. Este caminhar é libertação pelos resultados. É iluminação quanto ao processo psicológico. À medida que avança nesta desidentificação, o homem vai se tornando cada vez mais invulnerável aos acontecimentos, às coisas, aos fatos e às pessoas.
Um imaturo vai ao cinema e goza e sofre respectivamente com as vitórias e derrotas do herói ao qual se identifica. Seus nervos, glândulas e vísceras são fundamente sacudidos pelos acontecimentos do mundo mítico criado pela fita. Uma pessoa de espírito crítico e amadurecido, conhecedora da técnica e arte cinematográficas, sabe “dar o desconto”, e assiste ao filme, dizendo para si mesmo: “não é comigo”; “eu não sou aquele personagem”; “tudo isto é ilusão”.
O mundo que nos rodeia só é realidade na medida em que nos identificamos com ele, pois nos impõe dor ou prazer, pesar ou alegria, confiança ou medo… Desde que conheçamos o que é realmente o mundo, começaremos a sentir a equanimidade do espectador de mentalidade evoluída, sem sofrer nem gozar, sem tentar fugir ou buscar, sem medo, sem ódio e sem tédio.
*O livro “Yoga para Nervosos” encontra-se em PDF no Google.
Nota: Imagem copiada de clipartguide.com
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