Autoria de Luiz Cruz
O roxo invadiu a Serra de São José. Os cristãos encontram-se na Quaresma e as quaresmeiras explodem em flores. São diversos tons de roxo, tamanhos e formas curiosas. Partindo do roxo purpurado escuro, há uma variedade de cores para encher os olhos e a alma. Tons rosa, vermelho, branco, amarelo e até o laranja forte da Cambessedesia tiradentensis, planta endêmica criticamente ameaçada de extinção. A combinação é perfeita, enquanto os altares das igrejas setecentistas são encobertos por tecidos roxos do tempo quaresmal, a serra também se colore com o roxo dessas flores.
Na Quarta-feira de Cinzas é realizada a Missa de Cinzas e os fiéis cristãos vão à igreja para receber a benção e a cruz de cinzas da queima das folhas do coqueirinho, conhecido também como aricanga – Geonoma schottiana. Essa planta ocorria por toda serra e ficou bastante comprometida pelo uso indiscriminado ao longo dos anos. Atualmente são encontrados exemplares em alguns de seus pontos estratégicos e de difícil acesso. O coqueirinho é utilizado na Procissão de Domingo de Ramos. A igreja de onde sai a procissão é toda enfeitada com suas folhas e troncos e a igreja que a recebe também. Cada participante da procissão leva uma folha da planta. Após a cerimônia de saudação a Cristo entrando em Jerusalém, as folhas de aricanga são levadas para casa, onde ficam atrás de quadros de imagens sacras para proteger os lares e são também utilizadas para abrandar tempestades, trovoadas, raios e ventanias fortes. Elas são queimadas e Santa Bárbara é invocada para acalmar o tempo ruim. Uma parte delas fica guardada em um dos cômodos da Matriz de Santo Antônio até o ano seguinte, quando são queimadas e suas cinzas utilizadas na missa de Quarta-feira de Cinzas. Os fiéis são abençoados e recebem a cruz de cinzas na testa. Nos últimos anos houve exagero no uso do coqueirinho, além das folhas, sendo que muitos pés foram cortados. Recentemente, a aricanga, utilizada nas cerimônias de Tiradentes, é colhida na região de Emboabas, distrito de São João del-Rei.
Há pouco tempo, buscar rosmaninho (Hyptis carpinofolia) para as Festas de Passos e para a Semana Santa era um programa imperdível para a meninada de Tiradentes. Fazíamos isso todos os anos, e ainda fazemos este programa com nossos filhos, para manter a tradição. O rosmaninho, que se alastra também em solos pobres e áreas de pastagens, dá um toque mágico no período quaresmal. Suas folhas são colocadas no piso das igrejas, dentro das Capelas de Passos e são atiradas ao chão por onde as procissões passam. Seu perfume deixa-nos mais leves e remete-nos ao tempo da paixão de Cristo. A arnica da serra (Lychnophora passerina) também é uma planta essencial nas cerimônias sacras. Suas flores têm tons roxos e são colocadas nos altares e andores. Os fiéis levam para casa seus galhos e fazem garrafadas com álcool, utilizadas para limpeza de ferimentos, picadas de insetos e contusões – trata-se de um antiinflamatório.
A orquídea Cattleya loddigesii é uma planta que, à primeira vista, faz-nos lembrar a Quaresma. Sua bela e delicada flor em roxo claro é utilizada para enfeitar o andor de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos, que percorre as tricentenárias ruas de Tiradentes, perfumadas pelo rosmaninho e ao som fúnebre da Orquestra e Banda Ramalho. A imagem de roca que fica em seu altar lateral da Matriz de Santo Antônio é montada para as procissões do Depósito de Passos e a do Encontro. Após todos os preparos, a imagem recebe em sua mão uma palma feita com a Cattleya loddigesii. Essa é uma planta praticamente extinta na área. As flores, utilizadas para a palma do Senhor dos Passos, são doadas por pessoas que as cultivam especialmente com este objetivo. O pesquisador Ruy José Volka Alves realizou ampla pesquisa sobre essas espécies e publicou o Guia de Campo das Orquídeas da Serra de São José, obra fundamental para se entender a importância das orquidáceas.
O manjericão e o alecrim, cultivados nos quintais, também enfeitam e perfumam os andores de Nossa Senhora das Dores, do Senhor dos Passos e o esquife com a imagem do Senhor Morto, que percorre as ruas em procissão, na Sexta-feira da Paixão, após a cerimônia do Descendimento da Cruz. Essas plantas são amplamente utilizadas em Portugal. Herdamos dos portugueses o uso de tais plantas aromáticas nas cerimônias religiosas.
As plantas da serra contribuem muito para que as cerimônias sacras da Semana Santa de Tiradentes tenham um caráter especial, que envolve nossos sentidos, especialmente o olfato e a visão. Não podemos nos esquecer dos repiques e dobrados fúnebres dos sinos que ecoam pela serra afora. Mas, para que possamos manter este uso tradicional tão antigo e arraigado em nossas memórias, precisamos preservar a Serra de São José, que é um monumento natural e histórico. Além do comércio ilegal, os incêndios florestais e o amplo uso da área como pastagem de gado contribuem para o comprometimento de sua flora e, consequentemente, de sua fauna. Destaque-se que a Serra de São José figura no mapa de “Áreas Prioritárias para Conservação da Flora de Minas Gerais”, da Fundação Biodiversitas, como área de “Importância Biológica Extrema”.
Fotos: detalhes do andor da Procissão de Depósito de Passos e da Procissão do Encontro.
Referência: CRUZ, Luiz Antonio da. Recortes de Memórias. Tiradentes: IHGT, 2015.
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