Arquivo da categoria: Flagrantes da Vida Real

Casos do cotidiano

O SALVAMENTO NO PARQUE

Autoria de Lu Dias Carvalho

parmun (

O nosso país, apesar de seu tamanho territorial e de suas belezas naturais, é ainda muito pobre no lazer direcionado às classes mais pobres, sobrando para as famílias que vivem com um salário mínimo, apenas os maltratados parques com seus brinquedos enferrujados, seus barquinhos destrambelhados, suas montanhas russas rangentes e mais algumas outras gambiarras. Apesar disso, os parques exercem um grande fascínio nas famílias carentes, que pululam com seus rebentos de um brinquedo a outro, principalmente após o pagamento mensal.

É contagiante sentir a alegria dos pais com suas crias, comendo pipoca, quebra-queixo, chupando picolés gigantescos, correndo entre um brinquedo e outro. Jumentinhos ajudam a compor o quadro, carregando no lombo os molecotes. O pai vai puxando a rédea, enquanto a mãe segura ao lado o seu tesouro. E no ar, uma multidão de balões coloridos completam as alegorias. Retratistas dos anos 60 escondem-se sob o manto negro de sua parafernália, para clicar a meninada e os casaizinhos apaixonados.

De uma feita, fui mostrar para uma prima do interior, o Parque Municipal de Belo Horizonte. Assentamo-nos perto de um lago cheio de barquinhos de pedais e de barquinhos a remo. Um casal, acompanhado de um garoto de 5 a 6 anos, esperava impacientemente a sua vez. O responsável pelo barco ancorou-o bem pertinho da margem, para pegar sua esdrúxula carga.

Pai e filho, dois palitos na magreza, tomaram a dianteira do barco, enquanto a mãe, gorduchona, assentou-se na outra ponta, atrás. E lá foi o pobre barquinho gemendo com sua carga, para o meio do lago, tendo o pai a comandar o remo. O lado da mulher ficava cada vez mais rente à água, enquanto os dois gravetos pareciam suspensos no ar. Num dado momento, a água não se faz de rogada e encheu o barco, levando tão gentil carga para o fundo. Primeiro, desapareceu a gorduchona, depois, sumiram os dois magricelas.

Dois salva-vidas pularam na água e pegaram as duas tripinhas, pai e filho, jogando-os para fora do lago. Voltaram imediatamente para salvar a senhora gorducha, que tentava manter a cabeça para fora da água. Enquanto isso, os espectadores dobraram em número e em gritos. Os dois rapazolas lutavam arduamente para tirar a mulher com sua saia rodada. Trouxeram-na até á beira do lago, mas não conseguiram levantá-la para fora. Era peso em demasia para os dois. E quem segurasse na mão da vítima, era capaz de ser puxada para a água. Três homens grandalhões correram para ajudar. Pegaram os braços roliços da senhora, puxando-a para fora, enquanto os salva-vidas levantavam-lhe a traseira.

Tudo teria terminado muito bem, se a maldita saia rodada não tivesse subido para a cabeça da mulher, deixando lhe as coxas de fora, enquanto um volumoso sutiã segurava-lhe as mamas e uma calçola mantinha as partes pudicas escondidas dos olhares curiosos. Foi a apoteose. Gargalhada geral.  Confesso que também não consegui esconder o riso. Espanto-me sempre com a nossa incapacidade de segurar o riso em certos momentos tão constrangedores para o outro.

(*) Imagem copiada de http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/12/15/interna_gerais,337183/oasis-entre-predios-parque-municipal-nasceu-antes-de-bh.shtml

Views: 0

A TORTA DE LIMÃO E O MOÇO

Autoria de Lu Dias Carvalho

pudi

Sábado à tarde. Véspera do Dia das Mães. Shopping abarrotado de gente. Sacolas esbarrando umas nas outras. Praça de alimentação repleta. Alarido azucrinante de crianças. Vontade de tomar um cappuccino. Café e Arte lotadíssimo. Um casal deixa sua mesinha. Ocupo o espaço aguardando a garçonete.

À minha frente assenta-se um rapaz de olhos tristes e dedos longos. Pede uma torta de limão à garçonete que corre de um lado para outro, tentando atender os inúmeros clientes. Ele aguarda seu pedido folheando um livro sobre arquitetura. Degusto vagarosamente meu cappuccino, enquanto checo o celular.

A mocinha aproxima-se balançando as largas ancas. Numa bandeja traz um pratinho com o pedaço de torta de limão. Deposita-o delicadamente à frente do moço de olhos tristes. Ele contempla o pedaço generoso de torta por alguns segundos. Rodopia o pratinho, escolhendo a melhor posição para começar a comer. Cheira a guloseima e, com o garfo à mão, retira um pequeno bocado. Fecha os olhos, deixando que ele se dissolva em sua boca. Posso notar que um “hummm” atravessa seus lábios num frouxo ruído, acompanhado de um leve balançar de cabeça, que traduzi em “Que delícia!”.

O moço de olhos tristes parece embebedar-se com aquele pedaço de manjar dos céus, que traz uma delicada camada cremosa branquinha, quase diáfana, a cobrir-lhe o dorso. Numerosas casquinhas raladas de limão dão aroma, sabor e ornamentam a delicada obra-prima, algumas delas salpicando o pratinho branco de porcelana. Na parte inferior da fração e em uma de suas laterais, uma camada dourada mais consistente serve de suporte.

O rapaz de olhos tristes come lentamente, como se nada mais no mundo lhe importasse. Seus olhos, quase sempre fechados, flagram-me duas vezes olhando em sua direção. Desvio-me para outro lado, fingindo desatenção. Mas a verdade é que eu estou hipnotizada com a cena e não me desgrudo do moço e de sua torta de limão.

Minhas pupilas começam a dar alarme. Isso mesmo! As meninas dos meus olhos principiam a ficar gulosas, espiando o pratinho do moço de olhos tristes. O olfato entra em ebulição, captando um cheirinho extremamente sedutor. As papilas gustativas encharcam minha boca de água. E, para incrementar a avidez, o estômago envia-me sinal de que está faminto. E o moço de olhos tristes e dedos longos ali, degustando sua torta que não acaba nunca, fechando e abrindo os olhos, como se fossem um leque.

Mal o moço de olhos tristes raspa educadamente o último vestígio de sua torta de limão, limpa a boca e vira-se em direção à saída, aceno para uma das atendentes. Peço-lhe que me traga um pedaço daquela mesma iguaria. Aquele fora o último, avisa-me ela. Indica-me uma infinidade de outros tipos de torta: amendoim, chocolate, morango, maçã, maracujá… Nada há que possa suprir o desejo de degustar um pedaço de torta de limão.

Durmo e sonho com o moço de olhos tristes e dedos longos e sua torta de limão. Ele tenta colocar um naco na minha boca, mas o pedaço sempre cai ao chão. Acordo, ainda mais exasperada, com a boca salivando pela bendita iguaria. Sou a primeira cliente a chegar ao Café e Arte. Com ansiedade dirijo-me à atendente:

– Moça, dois pedaços de torta de limão para mim, por favor!

Views: 0

A ESCORRÊNCIA DA BELA RITINHA

Autoria de Lu Dias Carvalho

rita

Ritinha chegou à casa de meus avós ainda no frescor de sua adolescência, trazida por meu avô, em uma de suas viagens às origens, no sertão mineiro. Contou-nos ele que a mocinha, filha de um casal de agregados de certo compadre seu, necessitava de tratamentos mais avançados, só encontrados na capital. Apesar de seus 15 anos, ela ainda não menstruara e, por isso, tinha dores de cabeça que a deixavam, durante três a quatro dias, sem poder ver a luz do sol. Enquanto eu, meninota de 14 anos, há dois anos recebendo, mensalmente, tão sanguínea visita, misto de satisfação, se me julgava moça feita com direito a namoricos, e tristeza, por me obrigar a usar certos aparatos tão incômodos para quem ainda gostava de subir nas mangueiras e coqueiros de nosso sítio. Por isso, ora me sentia penalizada com a situação da mocinha, ora a tinha na conta da garota mais feliz do mundo por não ter que lidar com o dilúvio vermelho.

Depois de dois meses de tratamento, o fluxo sanguíneo de Ritinha desceu intempestivo, trazendo muitas cólicas para ela e uma grande alegria para toda a nossa família, como se o “fluxo radiante” dissesse respeito a cada um de nós. Comemoramos as boas novas com uma garrafa de vinho do Porto guardada para uma ocasião especial. Até mesmo meu priminho Nando, ainda nos seus parcos sete aninhos, acompanhou com inusitada alegria o debute de Ritinha no mundo da mulher. E veio a primeira ablução, e outra, e mais outra, de modo que o fluido carmesim de Ritinha passou a correr suavemente pelo canal da vida, sem nenhum embargo. As dores de cabeça escafederam-se e com elas a timidez da ilustre adolescente.

Ainda me lembro nitidamente de como Ritinha chegou à capital. Mirrada, ela mais parecia uma franguinha de asas quebradas. Fazia o possível para que ninguém a notasse. Respondia apenas ao que lhe era perguntado, quando não podia balançar a cabeça como lagartixa, se a resposta não fosse “sim” ou “não”. Porém, após a primeira regra, a menina-mulher desabrochou junto com seus birrentos ovários. Virou outra pessoa. Crescia e engordava a olhos vistos e se tornava falante e esperta. Foi quando todos na família perceberam que ela tinha uma linguagem bem peculiar.

Ritinha passou a ser o centro de atenção da casa. Ficávamos em alerta, sempre que ela abria a boca, pois, em cada frase proferida, pelo menos duas palavras exigiam maior trabalho mental para a sua compreensão. Ela transformava substantivos masculinos em femininos, verbos irregulares em regulares, resumindo todos eles em duas pessoas: primeira do singular e terceira também do singular. Só usava, mal e mal, o presente e o pretérito perfeito do modo indicativo. O plural inexistia na língua de Ritinha. As palavras traziam a mesma escassez impressa na sua vida de adolescente incompleta, sem fluxo sanguíneo, até chegar ali. O mais comovente é que ninguém ousava corrigir a mocinha, com medo de quebrar o encantamento que sua linguagem causava em todos nós, os ditos civilizados. Tampouco alguém ria. Ficávamos apenas ansiosos pela próxima palavra ou frase. Encantada, cheguei a criar um dicionário com as palavras usadas pela gentil e ingênua mocinha.

Seis meses após a chegada da doce Ritinha, iniciou-se o ano escolar. Sem que soubéssemos, minha avó matriculou nossa maravilhosa estrangeirinha num grupo escolar próximo à nossa casa. Aos poucos, ela foi perdendo a magia e o encantamento, até se transformar em um membro dos ditos civilizados. Aí então, Ritinha virou gente comum para sempre. Que enfado!

Eu nunca consegui perdoar minha avó por tamanha maldade.

Nota: Retrato de Madalena Doni/ c. 1506, Rafael Sanzio

Views: 1