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RAM MUNDA (13) – VISÃO SOBRE OS INDIANOS

Autoria de Lu Dias CarvalhoCapa de Ramun

Depois de viver seis semanas como um dalit, a visão do escritor francês, Marc Boulet, sobre o povo indiano não é das melhores. Para ele, os indianos acham-se especiais em tudo, superiores aos estrangeiros. Embora não possuam a xenofobia vista em outros povos, mas uma grande indiferença e espírito de superioridade. Eles se consideram mais civilizados do que qualquer outro povo, e acham a cultura indiana a melhor do mundo, de modo que, qualquer outra está abaixo dela. Sentem pelo estrangeiro um grande desprezo. Veem-no como um bárbaro, um dalit (intocável). Todo aquele, que não pratica o hinduísmo, aos olhos dos hindus, não é civilizado e seus costumes ficam abaixo dos costumes dos dalits.

Os estrangeiros são repugnantes, porque comem o cadáver de um animal sagrado, a vaca. Destacam o fato de os ocidentais, ao defecarem, limparem-se com papel, em vez de se lavarem. Por isso, eles continuam sempre sujos. Criticam também o fato de os estrangeiros assuarem o nariz em um pano, que guardam no bolso, para uma nova utilização, pois os indianos não usam lenço. Eles apertam as narinas, uma de cada vez, e expulsam o muco do nariz. Fazem isso em qualquer lugar público, até mesmo no meio da rua, quando se sentem à vontade, sem se preocuparem com os micróbios lançados na atmosfera. O mesmo eles fazem com os excrementos. Consideram que conservar matérias impuras no interior do corpo não é auspicioso. E, diante de tal justificativa, abaixam a calça na rua. Não há preocupação com a limpeza coletiva, apenas com a individual. Sentem um grande desprezo pelas castas pobres. E sempre dizem pertencer a uma casta superior à que pertencem. São mentirosos, portanto.

Os indianos são metidos a sabichões, a donos da verdade. Não possuem respeito pelo estrangeiro, mas sim pelo máximo que puderem extrair deles. Chamam-nos de “macacos vermelhos”. Também evitam o contato com esses, para que não possam se sujar. É visível o desprezo que dedicam a quem não é como eles, ou que difere de seus costumes. Na Índia come-se sem talher, com os dedos da mão direita. A mão esquerda é usada para lavar o ânus. Não se concebe a ideia de o estrangeiro usar as duas mãos para o mesmo fim. Dizem que os hábitos alimentares e higiênicos dos estrangeiros causam repugnância. E que eles tornam impuro tudo o que tocam. Por isso, recusam-se a usar um utensílio usado por um estranho.

O estrangeiro é muito visado em todo o país. Não pode passear sem ser parado a todo o momento por mendigos, traficantes, fedelho com endereços de encontros amorosos, vendedores ambulantes, homens “santos”, barqueiros, barbeiros, astrólogos, sacerdotes que benzem… Há sempre alguém importunando, querendo vender alguma coisa, ou oferecendo algum tipo de serviço. Apesar da falsa impressão que um estrangeiro possa ter sobre o recato dos indianos, esses adoram falar sobre sexo e dizer palavrões. Coçam os testículos publicamente e os ajeitam o tempo todo, como um desejo de mostrar virilidade. E se julgam os tais na arte do amor. No entanto, a sexualidade dos indianos carrega problemas, como os encontrados em qualquer outra civilização: impotência, brutalidade nas relações, ausência de intimidade, casamentos de conveniência, etc.

Marc Boulet acha que Gandhi deve ter pregado a não violência como sistema de vida e luta, talvez porque achasse os indianos muito violentos. E esses, além de não aceitarem tal ideal, também não aceitaram banir a intocabilidade. Gandhi não tem mais nada a ver com a Índia de hoje. São tantas as castas e tantas as origens que, imagina Marc Boulet, é difícil para um indiano se definir em termos de cidadania, de nacionalidade. Pertencem a uma região, ou a uma religião, ou a uma casta. É normal que um indiano não se sinta como um membro da União Indiana.

Os indianos não pronunciam três expressões: Desculpe!/ Obrigado!/ Por favor! Não é um povo cortês, é descortês mesmo, grosseiro. E não se melindra com nada, tampouco sabe o porquê de ter que se pedir desculpas. Nunca acha que esteja incomodando. E, mesmo que estivesse, isso não tem a menor importância. O próprio hinduísmo insiste nos deveres do indivíduo em relação a si mesmo, sem se preocupar com o outro. O que torna as pessoas egoístas.

Nota:
Os pareceres aqui expostos foram tirados do livro Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet.

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RAM MUNDA (12) – VERDADES SOBRE A ÍNDIA

Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun XII

Marc Boulet, ao viver Ram Munda na pele de um dalit, percebeu que as coisas não são bem como lhe ensinaram antes. Ao preparar-se para a sua metamorfose, procurou conhecer a fundo a cultura indiana, através de livros, filmes e informações. No entanto, alguns conhecimentos obtidos não correspondem em nada à verdade  que sentiu na própria pele. Por exemplo, ele aprendeu que os indianos eram tolerantes e não violentos. Compreende agora que a tolerância indiana, de que tanto falam os ocidentais, não passa de um grande engano, um engodo. Na verdade, o que eles sentem é uma profunda indiferença pela sorte do outro. Ignoram-no! Simplesmente recusam-se a enxergá-lo, principalmente quando não pertence à própria casta.

O modo como os poderosos tratam os mais pobres é de uma violência vista em poucos lugares do mundo. Dificilmente eles os veem. E, quando isso acontece, tratam-nos como escravos, coisas sem valor algum. Pois o respeito e a piedade pelos mais fracos não existem no aclamado país da espiritualidade chamado Índia. Os pobres e miseráveis são sempre oprimidos e esmagados. Mesmo quando os indianos praticam a caridade, fazem-no pensando na própria evolução e não no outro. Nem nesse momento eles enxergam os miseráveis.

A submissão, o descaso e a miséria quando explodem no território indiano são de uma ferocidade inimaginável. A violência contra os considerados intocáveis  é pregada nos textos sagrados, na intolerância do sistema de castas e no egoísmo hindu. Qualquer coisa é motivo para que apanhem, sem que ninguém os socorra. Tudo que fazem é visto como insulto às castas mais ricas. A polícia é brutal. Nem os loucos passam imunes. E para quem não sabe, na Índia, a violência parece ser a resposta para tudo. Os indianos estão sempre repetindo: “Quero bater em você!”. Trata-se de um povo excessivamente violento, brutal e sem generosidade.

Marc Boulet observa que os hindus (praticantes do hinduísmo) de casta elevada são incoerentes na busca pela pureza, pois a conduta deles é totalmente orientada pela religião. Embora sigam uma dieta vegetariana e sem álcool, sendo que os mais ortodoxos não comem nem cebola e alho, considerados impuros, a maioria consome drogas à base de cannabis. Existe também um grande número de hipócritas, que comem carne de cabra ou de frango, e se embriagam às escondidas. Sem falar no grande número de trapaceiros, sempre querendo obter vantagem, passando o outro para trás. Trata-se de um povo excessivamente materialista.

Os brâmanes, a casta dos poderosos, são fechados e intolerantes, embora assumam uma aparência honesta e civilizada. É verdadeiro que fomentam a violência contra os intocáveis, que têm horror a eles. São cruéis e perversos. Acham-se poderosos e são prepotentes.

É muito comum encontrar eunucos pelas ruas de Benares. Usam muita maquiagem, cabelos compridos e sáris coloridos. E rebolam ao andar. Se alguém assovia para um eunuco e lhe pergunta se tem bur (gíria referente à vagina), é comum que esse levante o sári e o saiote para mostrar o sexo: dois lábios finos e vermelhos, de três a quatro centímetros de comprimento, como se fossem costurados sobre a bacia reta e chata. Não possuem pênis, testículos e pelos. Dizem que eles não usam cuecas, para poderem exibir o sexo, quando as pessoas aborrecem-nos. De modo que, assim, possam caminhar em paz.

Gurus abundam na Índia. Em cada cruzamento é possível ver, no mínimo, um guru, um filósofo ou um santo. Verdadeiro ou impostor. A maioria deles é uma fraude, vive a tirar dinheiro dos incautos, principalmente dos turistas. O país também é farto em adivinhos, curandeiros e astrólogos. E ali nada se faz sem uma consulta prévia a eles. Jogam com a credulidade dos indianos nas forças sobrenaturais. Em suma, a superstição abunda por toda parte.

Surpreendente para Marc Boulet é o julgamento que os indianos fazem sobre os ocidentais, em relação às mulheres. Dizem que os ocidentais não respeitam as mulheres, ao olharem diretamente em seus olhos e se sentarem perto delas. A moral indiana proíbe qualquer gesto que possa despertar a sexualidade, de modo que as relações sociais entre homens e mulheres ficam no campo do estritamente necessário. A tradição hindu reza que a mulher é apenas um vício concentrado sob o umbigo e um instrumento do diabo para tentar os homens. Ela é comparada ao jogo e ao álcool. E, para eliminar esse vício é necessário que se case na puberdade.

As famosas Leis de Manu, que governam a sociedade hindu estipulam que “Deus atribuiu à mulher a cólera, a desonestidade, a malícia e a imoralidade (…) Do nascimento até a morte, ela depende de um homem: primeiro de seu pai, depois de seu marido e, após a morte desse, de seu filho (…) Não tem o direito de possuir bens.” .

Antigamente as viúvas eram sacrificadas na pira funerária do marido. Os britânicos aboliram esse costume, ainda comum nas aldeias afastadas. Normalmente, se há cadeiras, os homens sentam-se nelas, enquanto as mulheres assentam no chão. Eles comem antes delas e as trancam em casa. Isso acontece até entre os intocáveis, onde as mulheres possuem mais liberdade, podendo sair, fumar e beber.

Os maridos batem em suas mulheres pelas faltas cometidas, sem que elas possam se queixar a sua família. Ela pertence ao marido, como se fosse um objeto, e dela ele pode dispor como bem lhe aprouver. As Leis de Manu rezam que “Um marido, mesmo bêbado, leproso, sádico ou violento, deve ser venerado como um deus.”.

O casamento hindu não passa de uma máquina de fazer filhos. A mulher nunca é vista como uma amante, mas como cozinheira e mãe dos filhos. As uniões são arranjadas e endógamas. As tradições ligam a mulher ao marido como o patrão está ligado ao escravo. Com o tempo, o amor e a amizade podem nascer, assim como nascem entre o cachorro e seu dono. A endogamia (casamento entre indivíduos do mesmo grupo, casta…) é vista pelo hinduísmo, como uma maneira de melhorar a raça indiana, de purificá-la de modo que não venha a se degenerar. Na Índia, os seres humanos são acasalados como os animais domésticos no Ocidente: segundo o pedigree, ou seja, a casta. Não se cruza um vira lata com um buldogue, assim como um brâmane não se une a um ferreiro. E caso um cruzamento desses vier a acontecer, dele nascerá um “chandal”, seres que originalmente constituíram a classe dos intocáveis. A condição vivida pelas mulheres incentiva o assassinato. Como o divórcio é uma infâmia para o marido, só a morte da esposa dá uma liberdade honrosa a ele. De modo geral, a mulher é borrifada com gasolina e queimada viva. Na maioria das vezes o motivo é o dote.

Diante do obscurantismo, da bestialidade e da intolerância vistos na Índia, Ram Munda sentiu-se como se vivesse na Idade Média.

Leiam o capítulo 13…

Nota: Imagem copiada de www.historiadomundo.com.br/indiana

Fonte de Pesquisa:
Na Pele de um Dalit / Marc Boulet

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RAM MUNDA (11) – DEIXANDO A PELE DE DALIT

Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun XI

Um policial aborda Ram Munda na calçada. Quer saber o porquê daquelas manchas vermelhas em suas vestes. Imagina que seja sangue, quando na verdade é o nitrato de prata. Como o nosso personagem (Marc Boulet) é daltônico, ainda não havia percebido a similaridade das cores. Leva-o até sua guarita, onde pede que levante o seu short marrom. Um suor frio escorre por sua espinha, com medo de que o homem peça-lhe para baixá-lo, pois, por baixo do lungi sua pele é branca. Mas não o faz. Diz apenas que ele não tem sangue. A seguir inspeciona o seu saco de andarilho. O medo aumenta, pois há dinheiro francês nele. O homem da lei nada percebe e o deixa ir embora.

Marc Boulet (Ram Munda) está transtornado pelo pavor. Medo de ser preso, temor de ser expulso, medo de apanhar, receio de que a sua identidade seja revelada e de que seu sacrifício tenha sido em vão. Foi informado de que vez ou outra há batida policial, e, que eles prendem todos os novatos. E os prendem até por dois anos e, para comer, dão dois pãezinhos diários, depois de baterem muito neles. Os policiais indianos odeiam indigentes, são extremamente malvados. Levanta-se do local e observa o Ganges de longe, brilhando como um colar de esmeraldas, indiferente ao sofrimento daquela gente.

Milhares de banhistas fazem suas abluções, dizendo palavras mágicas. Homens evacuam em um canto. Alto-falantes confusamente espalham cânticos religiosos e músicas de filme híndi. Búfalos negros espalham-se nas águas lamacentas, que batem na margem. Dezenas de meninos soltam pipas vermelhas e verdes. Cachorros copulam. Cabras ficam escornadas nas escadas. Macacos saltam de galho em galho ou entre a multidão, sendo que é preciso não olhar diretamente em seus olhos, pois podem atacar. Abutres giram no alto do céu. Golfinhos saltam no rio. Cadáveres de animais flutuam por toda parte. O odor dos excrementos é insuportável. Intocáveis lavam roupas neste esgoto imenso, a céu aberto e, depois, estendem-nas nas margens.

Nada há que fascine Ram Munda, ali! Sai a procura de um pan, que é excelente para matar a fome dos pobres. Faz salivar e entorpece o estômago. Ficou sabendo que realmente houve a batida policial e muitos mendigos foram retirados dos locais turísticos e presos. Percebeu que havia menos mendigos no rio Ganges no dia seguinte. Ele encontra um rapaz intocável, quando se dirige a um local, em que se distribui comida aos pobres (uma papa de arroz e lentilha). Fica sabendo que mesmo nesses lugares, o alimento é oferecido primeiro aos de castas consideradas superiores. O que sobrar fica para os aborígenes. Ram Munda não sabe dizer o que ficou de Gandhi no país, fora os nomes de ruas e retratos empoeirados nas escolas, templos e órgãos públicos da Índia.

O escritor Marc Boulet impressiona-se com a ausência dos direitos humanos no país indiano. Compreende que essa ausência dá-se em função do sistema de castas do hinduísmo. É um sistema social desumano de homens e sub-homens, que envenena a Índia em nome de Deus. E pior, os ocidentais só veem ali o espetáculo ritualístico, esquecendo-se da realidade por trás desse. Combatem o racismo e o antissemitismo no mundo, mas são tolerantes em relação ao sistema de castas. Consideram-no um patrimônio cultural indiano, assim como o Taj Mahal. Esquecem-se de que, mesmo como estrangeiros, são também considerados intocáveis. Ele não suporta essa desculpa cultural para o “castismo”. Reflete que o mesmo ponto de vista pode justificar o antissemitismo, como parte da cultura europeia. Pois tudo pode ser justificado.

O “castismo” é um sistema segregacionista assim como foi o “apartheid” na África do Sul. Em ambos, a cicatriz fica tatuada na pele até a morte. Assim como o pigmento que dá cor ao homem, a casta é indelével. Não há esperança de ascensão social. Os direitos e deveres são diferentes, de acordo com a origem do nascimento. Não se pode negar que a violência indiana brota com a discriminação das castas, exigida pelo hinduísmo. Não adianta os humanistas condenarem o abuso policial, sem condenar o hinduísmo. Ali, a expressão “direitos humanos” não tem sentido algum, pois não há respeito mútuo entre os cidadãos.

Seis semanas depois de sua metamorfose Marc Boulet liberta-se da pele de Ram Munda. Acabou! Agora está em casa ao lado de sua mulher. Abraçam-se e choram. Após cuidar de sua higiene, sente-se renascer como um homem de verdade, que vai ser respeitado por outros homens. Retorna a Paris. No patamar de sua casa encontra dois vagabundos sob a cobertura, tentando se proteger do frio. Pede-lhes licença para passar, mas não os enxota, o que teria feito antes de sua metamorfose.

Ram Munda continuará vivo dentro dele, para sempre.

A seguir o capítulo 12…

Nota: Imagem copiada de globomidia.com.br/entretenimento/pobre#

Fonte de pesquisa:
Na pele de um dalit/ Marc Boulet

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RAM MUNDA (10) – ENCONTRO COM UM SADHU

Autoria deLu Dias Carvalho

  Ramun X

O desejo de tomar álcool muitas vezes nasce da vontade de nos desligarmos das coisas que nos incomodam, e de não sermos capazes de vislumbrar uma saída em curto prazo, ainda mais quando se leva uma vida miserável, pior do que a de um bicho. Procura-se a todo custo amortecer a consciência, apagar qualquer contato com a realidade massacrante.

Ram Munda encontra-se no limite de suas possibilidades. Já não vê sentido algum na vida e no que faz. A depressão leva-o a sentir vontade de morrer. Não apenas vive na pele de um dalit, mas também na alma de um deles. Sua existência é inútil. Não é nada, e sabe que não tem valor algum. Sabe que é um miserável, e, que não pode escapar da sua condição de intocável. Sua vontade é a de embriagar-se, de modo a suportar a sua metamorfose. Agora entende o porquê de o alcoolismo ser tão comum entre os dalits. Percebe que o álcool sintético é feito de água, um pouco de álcool e detergente. As pessoas bebem-no de uma só vez. Algumas tapam o nariz e fecham os olhos. O objetivo e se embriagarem, fugirem da vida que levam.

Ao esmolar, ao longo de um trem, Ram Munda é detido por dois policiais com seus cães. Apesar da miséria extrema, a mendicância é proibida em 15 estados indianos. Absurdo! São previstos de seis meses a dois anos de prisão para quem não obedecer as normas, sendo acompanhado por um programa de reintegração. Mas os mendigos sempre burlam a lei. A fome fala mais alto. A lei não pode estar acima da luta pela vida.

Deitado na calçada, Ram Munda compara a sua vida de intocável com uma gota de água do Ganges. Nada a detém. É levado mesmo contra a vontade. É inútil se debater, pois será levado para o oceano, onde se fundirá com o universo. Aí sim, estará livre. Moscas carnívoras usam-no como pista de pouso. Elas sugam tanto o suor, quanto a carne. Enxotá-las, assim como viver, é um esforço inútil. Ele se pergunta se Buda também era incomodado por elas há mais de 2.000 anos, quando pregava por ali.

Perto de Ram Munda está assentado um sadhu ( o chamado “homem santo”, asceta). Benares atrai-os como moscas. Teoricamente, todo hindu pode se tornar um sadhu, mas eles, quase sempre, são recrutados entre os brâmanes. Embora tenham lhe dito sobre as penitências que todo “homem santo” faz, ele mesmo nunca viu um só deles praticar alguma. O sadhu acende um biri atrás do outro, pois, incompreensivelmente para o francês, também possui os seus desejos terrenos. Usa o fósforo do vizinho intocável. Mas não lhe oferece chá ou maçã que traz consigo. É avarento e egoísta.

Ram Munda acha que o hinduísmo torna as pessoas egoístas, pois é uma religião cruel, discriminadora e egocêntrica. Ignora a relação com o próximo. Exige o desapego na ação, mas exacerba o individualismo. Todo esforço feito deve redundar em prol da própria pessoa. E não é diferente com o sadhu que encontra em seu caminho. O hinduísmo é uma fé centrada no ego, por isso, ele passa a imaginar que a comiseração de Gandhi estivesse no seu lado cristão, encontrado na sua educação ocidental. O sadhu, ao contrário dos santos cristãos, não tem como meta servir o próximo. Procura salvar, apenas, a sua própria existência, sem jamais pensar nos outros.

Depois de mendigar, Ram Munda assenta-se num estrado, próximo a um pandit (título respeitoso destinado aos brâmanes), que, assentado feito Buda, abençoa os passantes. Ele pede ao falso dalit que não se sente ali, ou seja, perto de onde ele dá as suas bênçãos, para não ser contaminado. Nos ghats, os sacerdotes carregam incenso, potes de óleo, pedaços de coco e uma bandeja de couro com um pó vermelho para aplicar no rosto dos devotos, sob a forma do terceiro olho, o chamado olho do conhecimento. Conversam entre si animadamente, indiferentes à miséria, que se vê espalhada por todo o lugar.

Ram Munda, ao voltar para a estação, encontra um cadáver estendido na beira da calçada, com pernas e braços abertos. Em volta do pescoço tem dois colares de flores. Os passantes jogam moedas e notas sobre o corpo. Mas, antes que o leitor se entusiasme com tamanha generosidade, devo advertir que se trata de um cadáver de macaco, colocado ali por algum espertinho, para usufruir dos donativos feitos ao defunto. Se fosse o de um homem, seria totalmente ignorado e desprezado. Os macacos (na Índia há milhares deles, pardos e de traseiros vermelhos, morando nos telhados dos prédios de Benares), são tratados como deuses. O macaco é o símbolo do deus Hanuman. O rei dos macacos é aliado de Rama. Sua astúcia e força são invencíveis, voa pelos ares, é sábio, cura as doenças e é uma das divindades mais populares da Índia.

A competição entre os mendigos por locais, onde esmolar é execrável. Nem a miséria é capaz de uni-los. Vivem da caridade, mas são incapazes de ajudar uns aos outros, de amar o próximo. Ram Munda compreende que a miséria não aproxima os homens, mas torna-os animais. O instinto de sobrevivência fala mais alto. Fraternidade e compaixão são um luxo, não passível de existir ali. O papel sagrado do mendigo consiste em aceitar as esmolas. Seu dever não é partilhá-las, nem mesmo aceitar a presença de um concorrente. Assim pensam eles.

O Bhagavad- Gita (o evangelho hindu) deixa bem claro que: “Seu dever, mesmo que imperfeito, é preferível ao dever do outro, seja ele excepcional. Melhor é o fundamento em seu próprio dever, o dever do outro é fonte de perigo.”

A seguir o capítulo 11…

Nota: Imagem copiada de www.ehow.com/how_4577354_sadhus-india

Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Edit. Bertrnad Brasil

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RAM MUNDA (9) – UM SANTO DALIT

Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun IX

Ram Munda descobre que a melhor refeição do mundo é aquela  que enche o estômago vazio e leva à mente a sensação de saciação, mesmo numa taverna. Para ter direito a essa comida mendigou, foi humilhado e desprezado como indivíduo. Ao comer, usa os dedos da mão direita, utilizando pedaços de pão, como colher, para pegar a papa, de modo a não levantar a menor suspeita. O uso da mão esquerda denunciá-lo ia. Os hindus nunca a usam para comer. Após o almoço, volta a seu lugar de véspera, na tentativa de fazer amigos. Algumas mulheres cozinham. Ele entabula conversa com um casal e descobre que os intocáveis, na sua imensa maioria, não sabem contar os meses e os anos. Nunca mais volta a encontrar os novos amigos.

Amanhece! Ram Munda resolve ir para o Ganges, onde já se encontram muitos mendigos, que se posicionam no ghat sagrado, esperando esmolas. No entanto, observa que não há compaixão por parte dos doadores. Apenas se conformam com a ordem universal, em que os ricos dão aos pobres. O que importa é o que se ganha através do ato generoso, como numa barganha com o divino. A doação aperfeiçoará o carma do doador e, consequentemente, sua próxima reencarnação. Segundo o hinduísmo, a caridade é um dever do hindu, de modo que os devotos têm que cumpri-lo, ainda que seja com repugnância em relação ao pedinte. Ram Munda é impedido, por um membro da máfia dos pontos, de esmolar no ghat escolhido por ele. Apenas se levanta e sai. Senta-se distante, onde fuma um biri. Não pensa em mais nada. Sabe que apenas existe como um legume ou qualquer outra coisa e nada lhe resta, senão aceitar os fatos.

Baba é um termo honorífico para os santos e anciãos. No subúrbio sul de Benares, Baba Gulla e Baba Detra são os deuses da maconha. Para comer, nesse novo dia, resolve procurar o templo dedicado a Baba Khichari, onde servem uma mistura aos pobres. Ao se aproximar do caldeirão, no fogão de barro, é afastado com um movimento desdenhoso, pelo homem que mistura a pasta viscosa. Mas é preciso aguardar, pois não come nada desde o dia anterior. A seu lado há dezenas de homens de 20 a 30 anos, crianças seminuas e algumas mulheres intocáveis. Não se falam e nem ao menos trocam olhares entre si. Tudo parece ilusão. A fome, o tédio, a sujeira e a falta de dormir tiram-lhes a vontade de conversar entre si.

Quando a papa fica pronta, dois ajudantes do cozinheiro ordenam que eles se assentem, em fila, na calçada, de costas para a circulação de veículos e de vacas. Jogam-lhes pratos de folha de mahua, de modo a não tocar neles. Um dos ajudantes usa uma panela velha como concha, que corresponde a uma porção. A mistura está muito quente, a ponto de lhe queimar os dedos e a boca, pois a fome não permite esperar que o alimento esfrie. Apesar do gosto de queimado, acha a comida (papa de arroz com lentilha) deliciosa. É a fome! Come apenas a metade e já sente o estômago cheio. A partir daí precisa empurrar, pois ninguém se levanta antes de ter comido tudo. Nunca se sabe quando será a próxima refeição. É preciso fazer como os camelos.

O sol forte dos trópicos curte a pele e provoca transpiração excessiva. Caminhar torna-se penoso. A solidão pesa-lhe na alma. É preciso encher o vazio. Foi informado de que há um templo dedicado a Ravidas, para os intocáveis. Trata-se de um santo intocável, originário de Benares. No século XV, ele combateu as superstições e as injustiças sociais perpetradas em nome do hinduísmo. Pregava a igualdade de todos os homens e de todas as religiões. E, apesar de intocável, tornou-se um guru. Sua mensagem era fundamentada na fraternidade, no direito de todos os indivíduos serem respeitados. Foi considerado um revolucionário por seus seguidores. Opunha-se à prática da intocabilidade e declarava:

Não se deve perguntar onde fica o templo de Ravidas, pois isso significaria dizer que é um intocável. E ser intocável significa ser maltratado e desprezado.

O local em volta do templo destila a miséria e o tédio. Não há peregrinos, nem turistas, mas camponeses esfarrapados, casebres feitos de barro, vacas esqueléticas que defecam pelo caminho e cachorros pelados latindo. No templo é informado de que não se passa uma semana sem que um “filho de Deus” seja espancado, queimado ou violado. As castas dos intocáveis não são unidas. Muitas se consideram intocáveis entre si. Eles se dilaceram nas suas próprias entranhas. A mensagem do guru Ravidas continua atual.

A visita ao templo dos intocáveis deu a Ram Munda forças, fazendo-o sentir-se digno de respeito. Ali foi tratado como igual. Chamado de “senhor”. Não se sente mais sozinho, depois de ser tratado como um irmão, pelos fiéis do templo.

A seguir o capítulo 10…

Nota: Imagem copiada de http://curiosidadeseculturas.blogspot.com.br

Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Editora Bertrand Brasil

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RAM MUNDA (8) – QUARTO DIA COMO DALIT

Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun VIII

Ram Munda tem a impressão de estar naquela vida há muito tempo. Já aprendeu todas as manhas do ofício, inclusive acostumou-se a fazer suas necessidades em locais sujos e à vista das pessoas, sem ao menos se sentir constrangido. Sabe que ninguém o olha. Ele não existe aos olhos do mundo. Não passa de uma coisa insignificante aos olhos do mundo.

Cães, ratos e vacas vagam pelas plataformas da estação ferroviária ao lado dos mendigos. É comum ver homens, mulheres e crianças enxotarem com o pé esses animais, disputando o lixo com eles. Ali nada se perde. Os mendicantes estão cobertos por placas de sujeiras, têm os cabelos embaraçados, viscosos e cerdosos. Alguns possuem apenas um pano cobrindo o sexo e um trapo jogado nas costas. Falam sozinhos, possuem o olhar parado, comem restos e dormem no chão duro. Chafurdam em montes de lixo com os animais. São selvagens e solitários. Parecem tomados pela loucura.

Ram Munda, como os demais pedintes, não sente prazer em nada. Basta apenas ir levando a vida, sem nenhum tipo de esperança, à espera do último suspiro. Não há contato entre os mendigos, a menos que façam parte da mesma família. Cada um está apenas voltado para si mesmo, preocupado com a própria sobrevivência, se é que ainda não se transformou em um autômato.

A via-sacra dos mendigos repete-se em todas as paradas dos trens, de modo que os passageiros já se tornaram indiferentes à miséria que se apresenta diante de seus olhos: mendigos esfarrapados, leprosos e monstros humanos com membros disformes (os homens elefantes). A rotina acaba com qualquer forma de compaixão. Os passageiros podem ser divididos nas seguintes categorias:

• os de olhar impassível, e, que ficam mudos ao serem abordados;
• aqueles que levam a mão direita à testa, como se abençoasse o mendigo;
• os que, em tom hipócrita ou agressivo, mandam que o mendigo vá pedir esmola em outro lugar, deixando-os em paz;
• os avarentos que pregam lição de moral.

As populações tribais (aborígenes) formam a classe social mais miserável e mais desprezada da Índia. É desumano ver pessoas que as mandam trabalhar, pois sabem que não têm possibilidade alguma de acesso a qualquer tipo de trabalho. Não lhes é facultada nem a possibilidade de chegarem perto de alguém para pedir emprego.

Nos trens, uma ínfima minoria de milionários esconde-se em compartimentos refrigerados, com janelas de vidro fumê, sempre fechados. A eles nenhum acesso é possível, pois os inspetores não permitem que os miseráveis subam nos vagões.

Ram Munda sente-se aviltado, envergonhado e desgostoso, quando as pessoas nos trens jogam-lhe restos de alimento no prato. Espera que o trem parta, para jogar fora. Sente-se como um legítimo mendigo indiano, imundo e desdenhado pela sociedade. Sabe que essa o odeia tanto, quanto ele tem aversão por ela. A sociedade enxota-o como um cão sarnento e faminto, sem que nunca possa reagir. Sabe que não é um cidadão, mas um farrapo humano ou bicho.

São cruéis e hipócritas aqueles que abençoam os mendigos com as mãos e os aconselham a pedir esmolas em outros lugares. Eles, os miseráveis, não precisam de bênçãos, mas de alimentos para continuarem existindo. A alma não pode ser alimentada, quando o estômago está vazio como um poço seco. É comum encontrar pessoas agressivas entre os viajantes. Levantam a mão e ameaçam o pedinte, fazendo chacota como hienas:

Vai cair fora, ou terei de bater em você?

Não restando alternativa ao miserável, senão ir embora, pois sabe que não possui direitos.

Ram Munda volta à pele de Marc Boulet, no pensamento, e lamenta por ter sido tão indiferente, quando se encontrava com os dalits. Pois hoje tem raiva dos que o rejeitam. Raiva não, ele tem ódio. Gostaria de ter poderes para fazê-los engolir o desprezo que lhe dispensam. Sabe que, apesar de sujo e inútil, continua sendo homem, semelhante a todos os outros humanos, embora nada possa mudar a sua vida. Não se importaria se apenas recusassem a lhe dar esmola. Mas não suporta o olhar de nojo e agressividade, acompanhado de palavras desagradáveis.

Ram Munda apenas se preocupa em comer pão, beber água, fumar biri e dormir o máximo que puder, de modo a perder a consciência, esquecendo-se de que existe. Quando contar a sua metamorfose para os amigos, muitos irão julgá-la divertida, como se fora um baile de máscaras. Não sentirão o principal: seu sofrimento moral. Jamais poderia ter imaginado que ser sujo, rebaixar-se a mendigar, tornando-se um objeto de desprezo, e tornar-se um intocável, fosse tão doloroso. Ninguém poderá imaginar a sua aflição, sua solidão e vergonha.

Na Índia, dentro da sociedade hierarquizada, quem “pede” ao outro é considerado inferior. Ao mendigo só resta a submissão, e calar-se em toda e qualquer circunstância, pois ele não possui o mais elementar dos direitos.

A seguir o capítulo 9…

Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Editora Bertrand Brasil

Nota: Imagem retirada de http://toligadonesse.blogspot.com.br

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